Baixo orçamento, alta inventividade

A cerimônia de premiação do 39º Festival de Gramado, realizada na noite de sábado em meio ao frio e névoa, privilegiou dois longas cariocas: Uma longa viagem, de Lúcia Murat, e Riscado, de Gustavo Pizzi. Cada um levou cinco prêmios. Isso, somado aos dois Kikitos concedidos a As Hiper Mulheres, nos leva a uma premiação que privilegia filmes de baixo orçamento e alta inventividade, no sentido de propor novas formas de narrativa. Em setembro, o inovador filme de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro será exibido no Festival de Brasília. Em novembro, poderá ser assistido na 4ª Janela Internacional de Cinema do Recife.

Além do prêmio principal, o documentário de Lúcia rendeu mais um Kikito para Caio Blat, que ano passado ganhou pelo papel de traficante em Bróder. Mais dramático do que naturalista, desta vez Blat interpreta Miguel, o irmão maluco-beleza de Lúcia, através de cartas que escrevia para a mãe de diferentes lugares do mundo, nos anos 1970. Ao receber o prêmio das mãos de Selton Mello, Blat foi chamado de “irmãozinho mais novo”, em referência à parceria em Lavoura arcaica.

Riscado, de Gustavo Pizzi, é realmente um belo trabalho de roteiro e direção de atores. A atriz principal, Karine Teles, que já havia sido premiada no Festival do Rio, assina o texto com Pizzi. Eles são casados e têm filhos gêmeos de sete meses. A premiação foi pontuada por declarações de amor. “Minha vida é sua”, disse, para Pizzi. Riscado poderá ser visto em breve no Cinema da Fundação. Vale conferir.

Com estreia comercial anunciada para 2 de setembro, Medianeras – Buenos Aires na era do amor virtual deve conquistar muita gente com um filme pessoal, melancólico e pop. Seu diretor, Gustavo Taretto, não pode receber os prêmios porque está em Nova York, onde cuida do lançamento do filme. Aliás, Medianeras deve se dar bem por lá. E o trabalho de Taretto poderia ser definido como uma derivação portenha da obra romântica de Woody Allen. É importante ressaltar outro ator campeão consecutivo em Gramado: o mexicano Gabino Rodriguez. Ano passado premiado por Perpetuum Mobile, foi o grande trunfo de A tiro de piedra, de Sebastian Hiriat.

Entre os curtas nacionais, a pernambucana Natara Ney reinou absoluta. Experiente montadora, Um outro ensaio é seu primeiro curta-metragem e trata da relação de amor de um casal em que ele empresta seus olhos a ela, que é deficiente visual. Radicada no Rio desde 1993, Natara já havia sido reconhecida em Gramado em 2008, como montadora de Juventude, de Domingos de Oliveira. “Isso só foi possível por um somatório de todas as pessoas com quem já trabalhei: tive muita sorte de ter começado com Paulo Caldas, Lírio, João Falcão e Lula Carvalho”. E dedicou um dos prêmios para o fotógrafo mineiro Paulo Jacinto dos Reis.

Os outros dois pernambucanos em competição, País do desejo, de Paulo Caldas, e Calma, Monga, Calma!, de Petrônio de Lorena, passaram batidos na premiação. São dois filmes corajosos, que arriscam. Erram e acertam. Apontam caminhos. Mas parece que este ano o júri esteve mais preocupado com resultados práticos do que com novos horizontes.

(Diario de Pernambuco, 15/08/2011)

Imigrante acidental

No domingo, um filme do México venceu limitações técnicas e se impôs como um dos melhores do 39º Festival de Gramado. Ao narrar a peregrinação de um pastor de cabras do México aos EUA, A tiro de piedra (2010) de certa forma subverte um tema caro aos dois países: a imigração ilegal. O filme é de uma poética singular, exemplar até, por evitar a abordagem político-social com que o assunto tem sido tratado no cinema.

À primeira vista, seu único problema foi de ordem logística: o rolo 35mm não chegou a tempo ao festival, o que obrigou a produção a exibir uma versão em DVD. Mas qualidade do primeiro longa de Sebastian Hiriat se impôs. O diretor é da mesma região que seu ator principal, Gabino Rodriguez, cujo rosto incomum, recentemente visto em Perpetuum Mobile (2009) e Assalto ao Cine (2011). Sua intimidade com a câmera tem algo de excepcional.

Certo dia, no caminho para casa, Jacinto (o pastor) encontra a chave de um rancho norte-americano. Na mesma noite, sonha que encontra um tesouro, liga os eventos e parte para a estrada. O filme é de fluxo constante: trens, carros, pessoas cruzam a tela, horizontalmente, até Jacinto chegar a seu destino. Impressiona a ingenuidade do personagem. Parece que nasceu ontem e vê o mundo pela primeira vez. Não ambiciona os EUA como os demais mexicanos que querem cruzar a fronteira. Imigrante incidental, avança em direção a seu sonho, sem compreender os riscos que corre.

Perdido em paisagens desérticas ou geladas, Jacinto é um anti-herói alheio à maldade humana, o equivalente a Travis, o esquisitão de Paris, Texas (1986), fonte da qual A tiro de piedra certamente bebe. A música original, baseada na cultura popular mexicana e de roupagem jazz, é outro trunfo.

A noite terminou bem, com o documentário Uma longa viagem, de Lúcia Murat, que gira em torno da juventude dela e de seus dois irmãos. A sessão foi dedicada a Caio Blat, que não pode vir a Gramado. Ele participa do filme interpretando Heitor, o irmão de Lúcia, bicho-grilo que nos anos 1970 deu duas vezes a volta ao mundo. Dotado da rara lucidez dos loucos, Heitor é um grande personagem. E o filme, um dos melhores da última safra

Gramado, noite 3 (domingo)


A tiro de piedra: bons ventos sopram do México

Pedras de gelo caíram do céu. Foi agora há pouco, durante a projeção de Uma longa viagem, documentário de Lúcia Murat. Tome o frio radical da última sexta-feira, e o único fetiche climático que falta em relação ao Rio Grande do Sul é a neve. Coisa que, dizem, não há em Gramado. Por aqui, no máximo, rola geada.

Mas chega de devaneios meteorológicos e vamos aos filmes. Acabam de ser exibidos dois fortes concorrentes ao Kikito. O primeiro, A tiro de piedra (México, 2011), colocou vários pontos de interrogação na minha cabeça. Vou dormir e amanhã tento organizar melhor meus pensamentos. Por enquanto, basta dizer que o filme conseguiu ser maior do que qualquer obstáculo de ordem técnica.

Explico.

Por um erro do distribuidor mexicano, o rolo 35mm não foi enviado ao festival dentro do prazo. O resultado é que, de ontem para hoje, ele ficou retido em algum entreposto da FedEx. A solução encontrada pela produção foi exibir o DVD usado para a seleção, o que baixou significativamente a qualidade da imagem.

O impressionante é que nem a baixa resolução ou as três (!) marcas d’agua com a inscrição “Instituto Mexicano de Cinematografia” conseguiram impedir a impressão positiva provocada pelo filme. Não me lembro de ninguém que apontasse qualquer desmérito no atípico road movie de Sebastián Hiriati. Muito pelo contrário.

Em mim, surgiu um sentimento que tenho quando assisto Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. Perdido em paisagens desérticas, o pastor Jacinto vivido por Gabino Rodriguez é o equivalente ao Travis de Harry Dean Stanton. Anti-heroi, lone ranger feio e esquisitão, que vaga do México para os EUA atrás de algo que não sabe bem o quê. O filme é um grande e ininterrupto fluxo em direção a esse sonho. A música original, baseada na cultura popular mexicana e de roupagem jazz, é outro trunfo.

Depois soube que o diretor pediu para que o júri oficial não assistisse a sessão de hoje. Queria que eles vissem a versão full, em 35mm. Justo.

Logo depois, foi a vez de Lúcia Murat apresentar Uma longa viagem, sua incursão na própria intimidade familiar, em torno dela e seus dois irmãos. Ao apresentar o filme, ela chamou atenção para a suspensão do Longa Doc, edital no qual seu projeto foi selecionado. “Espero que ele volte a existir, pois apoia filmes que fujam do formato televisivo, que procuram experimentar linguagem”. E dedicou a sessão a Caio Blat, que não pode vir a Gramado. Ele participa do filme interpretando Heitor, o irmão de Lúcia, bicho-grilo que nos anos 1970 deu duas vezes a volta ao mundo. Dotado da rara lucidez dos loucos, Heitor é um grande personagem. E o filme, um dos melhores da última safra.

Agora vou descansar, que ninguém é de ferro!