Cinema, amor e aristocracia

iwGbt4jyUK6cY“País do Desejo”, de Paulo Caldas, estreia neste fim de semana no circuito comercial de cinemas. Com atores globais encabeçando o elenco – Maria Padilha, Fábio Assunção e Gabriel Braga Nunes, o filme foi realizado com R$ 2,5 milhões, captados em editais da Petrobras, MinC e Governo do Estado (Funcultura) e conta com distribuição da California Filmes.

A partir de sexta, o filme entra em cartaz em dez cinemas, do Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Amanhã (quinta), às 21h30, haverá pré-estreia no Cinema São Luiz (Rua da Aurora 175 – Boa Vista). Será a primeira exibição no Recife, que serviu de cenário para esta história de amor entre um padre (Assunção) e uma pianista (Padilha), em duas cidades imaginárias: Passárgada e Eldorado. Entre as locações estão um casarão do bairro de Casa Forte, o Teatro de Santa Isabel e o Palácio do Campo das Princesas.

Ainda no elenco estão Conceição Camarotti, Germano Haiut, Lívia Falcão, Nash Laila e Fabiana Pirro. Na produção está a própria Maria Padlha, ao lado de  Vânia Catani / Bananeira Filmes, 99 Produções (PE) e Fado Filmes (Portugal). A fotografia é de Paulo Jacinto dos Reis, o Feijão, falecido logo após as filmagens e a quem o filme foi dedicado.

Com os dois pés no melodrama, “País do Desejo” só não é um corpo estranho no atual panorama de filmes feitos em Pernambuco por conta de sua contundência política, que examina o núcleo de uma família da elite canavieira. Esteticamente, no entanto, o novo longa é um caso à parte. Ao dirigir “Baile Perfumado” com Lírio Ferreira, Caldas se tornou um dos principais nomes da retomada do cinema pernambucano, instituição mundialmente reconhecida, que nos anos 1990 gerou filmes radicais, autorreferentes, marcados pela experimentação, imagens do povo e elementos pop.

Se recentemente, Cláudio Assis reafirmou e reinventou esses princípios de forma magistral em “Febre do rato”, nada disso está em “País do Desejo”. O caminho percorrido por Caldas para contar a história de Roberta, uma pianista doente salva pelo amor do padre José, passa por opções narrativas aparentemente mais convencionais, utilizadas para questionar instituições como a família, a Igreja e a ciência (a Medicina).

A trilha sonora, formada por composições eruditas de Claude Debussy e Erik Satie, reforça o formato clássico. O resultado é um filme sutil e delicado, inclusive na maneira de apresentar a elite coronelista em sua intimidade.

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“País do Desejo”, marca a incursão de Caldas no cinema 100% ficcional, sem elementos ou recursos do documentário utilizados em “Baile”, “O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas” e “Deserto Feliz”. O embrião do novo longa remonta a 2003, quando o escritor Marçal Aquino apresentou à Maria Padilha o argumento parra um thriller, então intitulado “Amor sujo”. O novo título surgiu quando Padilha lia a peça “The land of heart’s desire”, de W.B. Yeats.

Em linhas gerais, o filme trabalha a ideia do amor como o contrário da morte. Seu esforço está no trabalho com os atores e na costura do roteiro, que se desenvolve em horizontes invisíveis. No Festival de Gramado, onde estreou em 2011, “País do Desejo” dividiu opiniões. Alguns não conseguiram enxergar algo mais do que um simples folhetim. No entanto, o surrealismo de Buñuel está ali, pairando nas sombras, nas paredes antigas do casarão e da pequena igreja onde o padre e a pianista choram suas dores.

Ao contrário de outros países, por conta de uma tradição ligada demais à televisão (leia-se, novelas), o melodrama ainda não encontrou seu lugar no cinema nacional. Não temos uma identidade definida, capaz de dialogar com filmes da estirpe de um “Imitação da vida” (Douglas Sirk, em estado da arte) ou qualquer Almodóvar, Mike Leigh ou Fassbinder.

Com 25 anos de carreira, Paulo Caldas experimenta o gênero pela primeira vez. O movimento é arriscado, o que torna o resultado frágil. Principalmente no roteiro, que contou com a colaboração de Pedro Severien e Amin Stepple. Mais um ponto questionável é a escolha de Fábio Assunção, que não convence como o padre em crise com a batina. Em compensação, Haiut está muito bem no papel do pai / coronel repressor. Braga Nunes, como o compreensivo irmão médico, é outro trunfo.

A seguir, Paulo Caldas fala  sobre a gênese do filme e as questões que o levaram a realizá-lo. A entrevista foi concedida em 2010 e originalmente publicada no Diario de Pernambuco, durante as filmagens de “País do Desejo”.

Entrevista // Paulo Caldas: “O que continua me norteando é a pesquisa de linguagem”

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Onde fica o País do Desejo?
O País do Desejo é o Brasil. O povo brasileiro é rico de desejos, essa é uma característica cultural nossa. Mas toda a América Latina tem um pouco desse país.

Como surgiu o projeto?
O argumento vem de 2004, quando Marçal Aquino (“O invasor”, “O cheiro do ralo”) ofereceu o argumento de “Amor sujo” para Maria Padilha, que me convidou pra dirigir. O roteiro vinha sendo trabalhado enquanto fazia “Deserto feliz” e nos últimos três anos foi ganhando corpo. Como Marçal não tinha tempo pra escrever, pois tinha compromissos com Hector Babenco, Beto Brant, Heitor Dhalia, eu assumi o roteiro, que originalmente era um thriller policial que se passava em São Paulo. Era uma história de racismo, com jogatina e morte.

Como essa não era bem a minha praia, já tinha me mudado para o Recife e tinha a ideia de filmar aqui, mudei completamente a história,até o ponto de mudar o título. E a questão do transplante e doação de órgãos foi o primeiro tema que me surgiu. Trabalhei um tempo com Pedro Severien e do meio pra cá entrou Amin Stepple para dar uma energia diferente. Sempre prefiro escrever a três, acho que o ímpar é um formato interessante.

Por que Casa Forte como locação principal?
Por que é um área da cidade menos filmada. Geralmente os filmes são rodados em Olinda, Boa Vista e Boa Viagem, que viraram marcas da cidade. Enquanto a Beira Rio é uma nova cidade que surgiu agora há pouco. Eu nem gosto desses prédios todos, acho que deviam ter sido limitados, mas nós temos o mangue, uma beleza que faz parte desta cidade, que chamo País do Desejo.

O núcleo principal de “País do Desejo” é uma família da aristocracia canavieira, classe social pouco retratada em seus filmes.
Na concepção capitalista, o mundo se divide em dois tipos de pessoas: herdeiros e não-herdeiros. Esse filme trata de herdeiros, pessoas que nascem com destino traçado financeiramente. Faço isso com espírito crítico, faço uma análise irônica, uma visão picante dessa classe. Acho interessante porque o Recife será mostrado como um lugar mais rico e desenvolvido do que realmente é. A periferia está ali, mas não representada do ponto de vista social, mas sim do aristocrático – o empregado que faz parte da família.

A elite brasileira é bastante criticada por artistas e intelectuais, que não querem falar naturalmente sobre essa casta porque muitas vezes fazem parte dela. Nunca vou abandonar a observação critica da sociedade, pois isso move minha vontade de fazer cinema, mas vejo a necessidade de não só de falar mal, de dedicar um olhar terno, porque falamos de pessoas, que tem dificuldades e problemas. Não olho para meus personagens com ódio. No fundo acabo me apaixonando por todos eles, pois seus defeitos é o que os tornam humanos. Há uma ideia de que dinheiro resolve tudo, mas não resolve, de forma nenhuma.

Como se deu a escalação de Fábio Assunção para o papel principal?
Fábio foi indicado por Selton Mello, que me recomendou pensando em sua atuação na minissérie de TV “Os Maias” (2001). Assisti ao DVD e vi nele uma atuação forte, diferente do galã das novelas. Fui para o Rio encontrá-lo e a empatia rolou naturalmente.

Qual a dinâmica de produção do filme? 
O que estamos fazendo é algo muito coletivo, é o cinema de autor e equipe, formato que estamos perseguindo há anos, do desenho de produção pernambucano, agora com a experiência de produção da Bananeira, que é fazer filmes com qualidade internacional e baixo orçamento. E isso está num projeto maior, de uma geração, estamos num movimento de avançar, de tornar os filmes mais viáveis, de filmar mais em menos tempo, sem abrir mão da viagem e liberdade. Nunca estivemos pautados por questões comerciais e permanecemos assim, tentando fazer um cinema livre e mostrar quem somos nós. Por tudo isso, a melhor coisa é poder filmar em Pernambuco.

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