Cine PE – noite três

Em noite esvaziada pela tempestade que assola o Recife, o Cine PE reservou para a segunda-feira uma seleção interessante, marcada por documentários sobre a memória. No viés afetivo em Casa 9, de Luiz Carlos Lacerda; no confronto entre o presente cruel com o passado feliz no curta A casa da Vó Neyde (SP), de Caio Cavechini; com irreverência no curta As aventuras de Paulo Bruscky (PE), de Gabriel Mascaro; com liberdade poética no curta Fábula das três avós (SP); e na homenagem a Zelito Viana, que invocou Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirzman antes de exibir Augusto Boal e o Teatro do Oprimido, seu tributo ao amigo de 50 anos.

O curta digital A casa da vó Neyde, trabalho de estreia de Cavechini, é um ato de coragem por escancarar um problema pouco assumido pela classe média: o crack. O que parecia ser mais um documentário com rostos quadriculados de meninos pobres se revela um dos relatos mais amargos e sinceros do festival. O filme mostra sem pudor o vício de seu tio, um quarentão que mora com a mãe. As imagens do tio preparando e acendendo o cachimbo foram feitas por um amigo do diretor, que não conseguiu presenciar o momento. O contraste com o passado impresso no álbum de família só faz aumentar a ressaca no final da projeção. Dizem que o público do Cine PE dá risada por qualquer motivo. Desta vez, não foi o caso.

Casa 9 faz um inventário mais verbal do que imagético do que foi a experiência libertária naquele local, um sobrado no Botafogo que serviu de quartel para o desbunde artístico em plena ditadura militar. Presente na sessão, Jards Macalé foi de bigode (mas não com o casaco de general da música Vapor Barato), para brincar com o apelido do diretor. “Vim de bigode para relaxar o Bigode”, disse, no palco. Longe de qualquer sofisticação, a contação de “causos” é o que há de mais precioso no filme. A baixa resolução da imagem e o acabamento precário são compensados pelo valor cultural do que está ali registrado. Como o próprio Bigode explicou ontem pela manhã na coletiva para a imprensa, o filme foi feito dentro do “esquema Casa 9”. A presença pernambucana é forte, em depoimentos de Naná Vasconcelos e Lenine – a produção local foi da Ateliê e Eric Laurence.

“Minha geração está começando a contar a sua história, que de outra forma não seria contada. Pois a história é contada pelos vencedores, que hoje é a esquerda que achava que a gente era um bando de drogados alienados. Tenho muito orgulho de ter feito parte dessa cultura hippie, anarquista, que originou discursos como o da ecologia, direitos humanos e contra a homofobia”, disse Bigode.

As imagens de arquivo são poucas, mas preciosas. A mais interessante remete a um piquenique em Londres. “Comprei uma câmera Super 8 em 1969. Eu filmava tudo, aleatoriamente. Foi o nosso primeiro ensaio para o Transa, do Caetano”, contou Macalé, que se disse satisfeito com o filme. “Refleti sobre aquela loucura que vivemos, uma ditadura brava a gente fazendo tudo com a maior liberdade. Éramos um exército de Brancaleone”.

Irreverente, Jards Macalé roubou a cena também na coletiva, ao fazer declarações e aparecer vestido de camisa estampada, calção e chinelos. Lembrou da parceria com Naná em Let’s play that: “a gente colocava o disco Hendrix, Axis bold as love, ficávamos horas tocando aos berros na vila e ninguém nunca reclamou”. E da primeira sessão de ácido, dividido com Gal Costa. “Ela é maravilhosa, quem me dera ela ainda estivesse tomando ácido”. Como contrariar?

(Diario de Pernambuco, 04/05/2011)

Uma casa encantada

Certo dia, o cineasta carioca Luiz Carlos Lacerda voltava para sua casa no Jardim Botânico quando, fugindo do trânsito, pegou atalho pelo Botafogo. “De repente, quando olhei, estava na porta da vila em que morei nos anos 1970”, conta o diretor. Assim nasceu Casa 9, longa documentário que concorre esta segunda na mostra competitiva do Cine PE – Festival do Audiovisual. Através de depoimentos, ele remonta a cena cultural que girou em torno do local, um sobrado onde também morou Jards Macalé, Sônia Braga e Lenine, que, não por acaso, batizou sua gravadora de Casa 9.

Gente assim atrai semelhantes: Clarice Lispector, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Torquato Neto, Gilberto Gil, Gal Costa, Odete Lara, Waly Salomão, Naná Vasconcelos, Helio Oiticica e muitos outros fizeram da Casa 9 um centro cultural. “Comecei a lembrar quantas histórias vivemos ali. Tudo isso iria morrer com a gente?”. A pergunta de Lacerda, conhecido como Bigode, está respondida com o filme, coproduzido pelo Canal Brasil, que tem nesta noite sua primeira exibição pública.

“O Macalé morava na parte de cima quando eu me mudei pra lá. O lugar foi uma vila familiar construída nos anos 1940 por Artur Araripe, o avô do Paulo Coelho, que morou com o pai e a irmã na Casa 12, que foi derrubada em 1974 e construíram um prédio em que veio morar Paulinho da Viola”.

Na casa de Macalé, se hospedava o pessoal da música. O do cinema ficava na casa do Bigode. Um deles foi Robert Freigman, do grupo da Factory, de Andy Warhol, que veio ao Brasil para fugir da guerra do Vietnã. “Na minha casa vinha Nelson, Glauber, Cacá Diegues. Com Clarice escrevi o roteiro de um curta, adaptado de um conto dela, O ovo e a galinha, que foi filmado em 2003 por Nicole Al Granti, sua sobrinha-neta”, lembra Bigode.

A ligação das duas casas rendeu a parceria entre Nelson Pereira e Macalé, que atuou e fez a trilha de Amuleto de Ogun e Tenda dos milagres. Macalé, aliás, revela ao diretor a história por trás de Vapor barato, composta por ele e Waly em 1974. Mas não repassa ao repórter. “A explicação é longa. Tem que ver no filme”.

A turma de Pernambuco chegou depois que Bigode saiu, em 1980. “Veio Lenine, Ivan Santos e Alex Madureira, que na época eram três hippies”, conta. Com eles, vieram Lula Queiroga, Chico César, Bráulio Tavares e outros artistas e escritores do nordeste. “Era uma casa encantada”, conta Queiroga, que na época morava em Copacabana. “Consolidamos nossa amizade ali. Nós éramos os paraíbas que continuaram a história daquela casa. Assim como tem o centro de tradições gaúchas, fizemos um centro de contradições pernambucanas. Tanto que meu sotaque não mudou nada”.

Estirado entre a ditadura militar e a abundância ideológico-criativa, o período 1970-1980 é tema e tanto para quem se interessa por cultura brasileira. Para Bigode, aquele foi um tempo especial. “O mundo encaretou, hoje em dia as pessoas estão entocadas, cada um cuidando do seu umbigo. O planeta virou yuppie”.

E estende a conversa para o cinema feito hoje. “Só se fala em filmes de mercado, os editais pedem para formalizar público-alvo, fazer perspectiva de bilheteria. E os filmes que não conseguem chegar no mercado? Quem vai contar a história do Brasil daqui a alguns anos? Se eu fosse você, Chico Xavier ou Lírio Ferreira e Paulo Caldas? São as novelas da televisão ou o Júlio Bressane, que há 40 anos faz público de 50 mil por filme? O que é mais importante para a cultura brasileira?”. Uma questão e tanto.

(Diario de Pernambuco, 01/05/2011)