Chico Xavier das multidões

Não é à toa que a cinebiografia Chico Xavier entra hoje em cartaz em cerca de 350 cinemas do Brasil. O motivo mais óbvio é a comemoração do centenário de nascimento do médium cuja notoriedade extrapolou os limites da doutrina espírita.Mas não devemos desprezar o potencial da data coincidir com um feriado cristão. Tendo nas mãos um personagem por um lado famoso e querido, por outro alvo de acusações que vão da heresia ao charlatanismo, os executivos da Sony, Downtown e Globo Filmes sabem que têm nas mãos um tema tão lucrativo quanto delicado.

Um dos termômetros para a aposta é meramente censitário. Apesar do país ser majoritariamente católico e ter uma ascensão galopante de protestantes, ele representa a maior população espírita do planeta, algo em torno de 2,2 milhões de pessoas. Não deve ter passado batido para a produção a “zebra” que foi Bezerra de Menezes – diário de um espírito, uma das maiores bilheterias de 2007 (330 mil espectadores).

Esse filão de mercado deve ser explorado mais vezes durante o ano. Inspirado em livro de Xavier, Nosso lar, de Wagner Assis, chega com produção luxuosa: fotografia de Ueli Steiger (O dia depois de amanhã, 10.000 AC, Godzilla), efeitos especiais da Intelligent Creatures (Fonte da vida, Babel e Watchmen) e música original de Philip Glass. Em produção está As mães de Chico, de Glauber Filho (o mesmo de Bezerra de Menezes), onde o ator Nelson Xavier volta a encarnar o personagem.

Por sinal, o DVD duplo com o programa de TV que tornou Chico Xavier famoso nacionalmente (Pinga fogo, de 1971) é um dos títulos mais vendidos da distribuidora Versátil. Não por acaso, é nesse interessante documento que se estrutura o filme dirigido por Daniel Filho (Se eu fosse você 1 e 2). Por isso e algo mais, fica difícil acreditar que a única preocupação dos produtores dessa telelágrima de luxo é divulgar a mensagem de Chico Xavier. Seria muito altruísmo da parte dos donos de um produto que provavelmente será a maior bilheteria do cinema nacional de 2010.

Ao custo de R$ 11 milhões, Chico Xavier foi pensado em cada detalhe para ressaltar os aspectos positivos e minimizar o que há de questionável no biografado. É quase um panfleto em prol do espiritismo, com um forte verniz católico traduzido na relação de admiração mútua entre Chico e o padre Scarzelo (Pedro Paulo Rangel), desde a infância. Já adulto, reconhecido, a recusa do novo pároco (Cássio Gabus Mendes) é mostrada como postura obscurantista, já que o médium, sempre pronto a trazer conforto emocional e dar a outra face à mais vil das criaturas só pode ser um santo. Em nenhum momento o personagem apresenta falhas de caráter. Em compensação, sofre muito.

Ao longo do filme, acompanhamos Chico Xavier em três fases da vida. Na infância (vivido por Matheus Costa), sob castigos da madrinha (Giulia Gam) ele já apresenta sinais de mediunidade. Na idade adulta, na pele de Ângelo Antônio, quando descobre que seus poderes podem trazer alívio para os que perderam entes queridos. E na maturidade, em que Nelson Xavier o incorpora com semelhança assombrosa. Nos bastidores do estúdio de TV, o diretor do programa (Tony Ramos) protagoniza uma subtrama dramaticamente pobre com sua esposa (Christiane Torloni), que perdeu o filho em situação trágica e acredita que o famoso espírita pode ajudar a elucidar o caso. E tome chororô.

(Diario de Pernambuco, 03/04/2010)

Ponto de virada

Apesar do sobrenome em comum, Nelson Xavier levou uma vida inteira para conhecer Chico. Ateu de formação comunista, ele atuou em meia centena de filmes, entre os quais Os fuzis (1964), Eles não usam black-tie (1982) e Narradores de Javé (2003). Após sete anos longe do cinema, ele está de volta no papel que considera ser o mais importante de sua carreira, o qual deve “reencarnar” em breve, no filme As mães de Chico, de Glauber Filho, diretor da cinebiografia de outro ícone do espiritismo brasileiro, Bezerra de Menezes – diário de um espírito (2007).

Chico Xavier, de Daniel Filho, entra em cartaz amanhã, dia de seu centenário de nascimento. Em Paulínia, onde concedeu a entrevista a seguir, o ator falou sobre a construção do personagem e como ele mudou sua maneira de ver o mundo. Quando soube que a reportagem vinha de Pernambuco, uma emoção a mais fez brilhar os olhos do artista, que viveu no Recife por volta de 1962, quando Participou ativamente do Movimento de Cultura Popular. “Foi um dos momentos mais gloriosos de minha vida”, disse, com voz emocionada. Leia mais a seguir.

Entrevista // Nelson Xavier: “Chico me lembrou que o amor tem que estar mais presente”

Você interpreta Chico Xavier com muita fidelidade. Que estratégia você utilizou para construir o personagem?
Eu tentei interpretá-lo, não imitá-lo. Eu e Ângelo Antônio (que vive Chico Xavier na juventude) ensaiamos no sentido de parecer um com o outro, para poder fazer juntos, nos espelhar nele e em nós mesmos. Mas o que me conduziu foi a emoção, foi isso o que me fez sentir identificado com ele. E a única explicação para essa emoção é a presença dele. É uma coisa de contágio, de invasão, de posse. Por exemplo, teve um momento durante as filmagens que uma atriz no papel de mãe que trouxe uma carta do filho morto me disse: ‘ele está do seu lado’. E eu caí em prantos. Foi essa emoção que me conduziu mais do que qualquer outra coisa.

Como você pontua Chico Xavier na sua carreira? É seu grande papel?
É. Porque ele transcende. Nenhum personagem muda necessariamente (o ator). Chico me fez mudar. Me lembrou que o amor tem que estar mais presente na vida da gente. A tolerância tem que excercer sim, viver a paciência, a entrega, a bondade, o amor. Não pode só evocar, tem que viver, assumir. Isso ele fez comigo.

Desde o início você foi pensado para ser o ator principal. Até então, quem era Chico Xavier para você?
Apenas um médium. Quando alguém me chamava de Chico algumas vezes eu respondi ‘é a mãe’. Depois que li o livro com dedicatória do Marcel (Souto Maior, o escritor) dizendo que ele gostaria que eu fizesse o papel, li e fiquei tomado com aquela história sofrida. Fui invadido por uma onda de amor que me balançou. Quando vi estava lidando com um santo. E isso me invadiu a ponto de ultrapassar os limites de um trabalho artístico. Foi tão forte que não tem como negar porque é muito intenso, leva as lágrimas, paro de falar, pois transcende ao filme.

Você já fez mais de 50 filmes e após sete anos, volta a atuar para o cinema, onde viverá novamente Chico Xavier para o longa As mães de Chico
É verdade, tenho feito mais TV. Mas sou o que sou hoje porque quis dirigir cinema, esse foi meu início. Mas fiz pouca coisa ou quase nada porque não tenho lado empresário. Dei cabeçada e deixei pra lá, não sei sair à luta para captar recursos. Tenho um filme que captei e até agora não consegui grana para completar o filme. Lembrar é resistir, espécie de documentário de teatro com depoimentos de torturados políticos.

Antes do filme você seguia a doutrina espírita?
De jeito nenhum. Eu só acreditava que o kardecismo existe. Conhecia desde criança, minha mãe era espírita. Só mudei no sentido de achar que a gente morre e desaparece. Hoje acho que não, continuamos com a identidade, acho que voltamos.

Que momento do filme mais te marcou?
Existem vários momentos, mas o início é o que marcou mais, porque eu rezo e penso na minha mãe. (pausa para chorar) Eu resgatei a relação com minha mãe porque ela sempre quis que eu aderisse ao espiritismo, eu sempre zombava. Por isso, as duas vezes que eu rezo no filme eu não pude deixar de lembrar disso. Ele disse que a mãe, depois de desencarnada, ensinou o caminho.

Outro personagem emblemático que você fez foi Lampião, em seriado de TV de 1982.
Com ele também teve essa coisa de posse. Mas foi diferente, chamei ele de general do povo, ele tinha uma visão radical de fazer justiça com as próprias mãos. E tinha o amor com Maria Bonita. Quando vesti os óculos dele, teve uma semelhança com essa invasão do Chico. Os dois são reais, né? São brasileiros, não são ficção.

Que lembranças você guarda do Movimento de Cultura Popular?
Muita gente boa estava lá, como Germano Coelho e Paulo Freire. A gente via o futuro, éramos inocentes, achávamos que isso ia melhorar o Brasil. Foi um momento muito lindo. A composição de católicos e comunistas tinha dado certo, rendeu um verniz cultural que permitiu um trabalho de conscientização, de alfabetização e de agitação política. O Brasil era outro, não era essa pátria conformista que a gente assiste hoje. Era sociedade viva, querendo mudar. Tinha uma juventude participando do processo político, operários indo pra rua. O MCP que foi modelo para o CPC, era um organismo fantástico.

O MCP vai completar 50 anos. Você acha possível retomar o espírito daquela época?
Eu acho difícil, mas acho que deve ser tentado. O Brasil é outro, está muito conformista. Estudantes não tem organização. A perplexidade da esquerda e 20 anos de ditadura amorteceu a capacidade de resposta do povo brasileiro.

(Diario de Pernambuco, 01/04/2010)

Potencial para comover multidões

Paulínia (SP) – Assim que assumiu a direção do longa Chico Xavier, lágrimas involuntárias escorreram pelo rosto de Daniel Filho. Quinze anos atrás, o mesmo ocorreu com o jornalista Marcel Souto Maior, autor do livro As vidas de Chico Xavier, quando pediu ao médium permissão para publicar o livro. Essas e outras histórias foram contadas ontem, para a imprensa, em coletiva promovida no Teatro Municipal de Paulínia.

Na noite de terça-feira, uma avant-première reuniu cerca de 1.300 pessoas. Com potencial de comover multidões, Chico Xavier tem estreia nacional no dia 2 de abril, data em que o personagem completa 100 anos de nascimento. No elenco, Nelson Xavier, Tony Ramos, Christiane Torloni, Letícia Sabatela, Giulia Gam e Cássio Gabus Mendes.

Souto Maior, que também assina o livro de bastidores atualmente nas lojas, batizou a torrente lacrimal que acometeu a ele e ao veterano diretor de “fenômeno das lágrimas inexplicáveis”. Apesar de se considerar ateu, Daniel Filho disse queXavier e Bezerra de Menezes, o “Kardec brasileiro”, tentaram mais de uma vez fazer contato mediúnico durante a realização do longa.

Não que o filme tenha sido psicografado – todos negam uma obra espírita, mas sobre um homem incomum, cuja vida de abnegação, bondade e dedicação desperta curiosidade imediata. Abençoada pela conjugação de esforços da Globo Filmes, Sony Pictures e Downtown Filmes, se a produção de R$ 11 milhões fosse ditada por espíritos, de quem seriam os lucros? Apesar de Rodrigo Saturnino Braga, da Sony, ter dito que “a única preocupação é divulgar a mensagem de Chico Xavier”, a única filantropia praticada será a fatia de 10% a ser revertida para a Casa da Prece de Uberaba (MG).

Polêmicas em torno do cristianismo estiveram na pauta. “O filme não foi feito para defender a bandeira do espiritismo, ele é mais voltado para os valores de amor e paz que Chico defendia. Quem seria contra isso?”, pergunta Bruno Wainer, da Downtown. A resposta não tardou a vir à tona: a Igreja Católica, que negou a utilização de igrejas como locação, o que obrigou a equipe construir uma nos estúdios de Paulínia. “Meu produtor foi levado pelo braço pra fora da sacristia, quando souberam sobre quem o filme era”, disse Filho.

Diretor de Se eu fosse você e Tempos de paz, Daniel Filho deu à história de Chico Xavier uma carga melodramática que ainda vai gerar muito choro por aí. Há algumas passagens cômicas, que aliviam a carga emocional de sua sofrida biografia e do oficio de realizar contato com os que já se foram ou, para utilizar um termo espírita, os desencarnados. Tendo como âncora um programa de entrevista em que concedeu a ele notoriedade nacional, Xavier é apresentado em três momentos de sua vida: infância, juventude e maturidade. Enquanto flashbacks do passado contam sua história de forma linear e didática, surge uma trama paralela, em que o diretor do programa (Ramos) e sua mulher (Torloni) sofrem com a perda prematura do filho.

É nesse ponto que o filme deve atingir direto o coração de todos os que perderam entesqueridos. “É a consolidação do Chico no imaginário dos brasileiros. Ele permite o retorno do filho que partiu. Isso mexe muito com as mães, que querem refazer o contato uterino”, diz Marcos Bernstein, que roteirizou o livro para o cinema. “O Chico era movido por três sentidos raros e preciosos, o de missão, de doação e de aceitação das dores, as quais agradecia para crescer e voltar melhor. Isso transformou ele num ídolo, num mito”, acredita Souto Maior.

Questões mais polêmicas como sua vida sexual, processos judiciais e a permanente desconfiança dos católicos e da mídia são tratados de forma sutil e com desfecho quase sempre favorável ao protagonista, interpretado com impressionante semelhança por um Nelson Xavier de peruca e óculos Ray Ban. “Foi uma das coisas mais arrebatadoras que já fiz na vida”, diz o ator, que desde o princípio foi pensado para o papel. “Chico vai me acompanhar para sempre. Enquanto atuava, uma cachoeira de emoção foi tomando conta de mim. Foi algo que ultrapassa o trabalho profissional. Me considerava ateu e hoje não sei dizer. Descobri com Chico que precisamos prestar mais atenção no amor”.

* o repórter viajou a convite da produção do filme

(Diario de Pernambuco, 25/03/2010)