Em defesa da invenção


Edgard Navarro e Luís Paulino: ícones do cinema baiano

Um dos melhores filmes do Festival de Brasília, O homem que não dormia, de Edgard Navarro, passa a limpo o universo simbólico do diretor baiano, autor dos ótimos Super Outro e Eu me lembro, ambos consagrados em festivais em 1989 (Gramado) e 2005 (Brasília). Dessa vez, Navarro dividiu opiniões. Houve quem achasse seus delírios dramáticos filmados entre vales e rios herméticos demais, mal costurados até. Pode ser. Mesmo se “recebidas no coração”, como pede o cineasta no início da fita, as imagens, de inegável beleza e ousadia, podem não ser tão acessíveis.

Estamos em Igatu, a pequena cidade de pedra cravada na Chapada Diamantina, no filme povoada por arquétipos comuns à vida no interior: o coronel, o padre, o maluco, a mulher da vida, o vagabundo, o poeta, o fofoqueiro. Uma cartela de personagens que orbitam em torno de Navarro, ele mesmo no papel do barão que mata a esposa, o amante, enterra seu tesouro em um baú e peregrina mundo afora, sem ter o direito de morrer ou ao menos dormir. Anos depois, já “encarnado” por Luiz Paulino dos Santos (desde os anos 1960, figura emblemática para o cinema baiano) ele retorna à vila, causando rebuliço.

Espírito livre, Navarro propõe uma destemida viagem em que exorcisa os próprios demônios. O projeto remonta ao fim dos anos 1970, pode ser considerado o filme de sua vida, tanto que o diretor se diz desobrigado a realizar qualquer outro, a não ser por diletantismo.

Aos que procuram a invenção, termo pelo qual o cinema de Navarro se definiu enquanto gênero, O homem que não dormia é um prato cheio. Risco é sinônimo de liberdade, defendem os anarquistas, e nesse percurso, errar é um direito tão importante quanto o acerto. Importa mais para onde o filme aponta: o cinema enquanto emancipação.

(Diario de Pernambuco, 05/10/2011)

Dois mestres da criação cinematográfica

Os cineastas baianos Geraldo Sarno e Edgard Navarro estão às voltas com novos projetos. O primeiro está em campo com o documentário O último romance de Balzac, que debruça sobre a análise de um livro psicografado por Valdo Vieira e atribuído ao escritor francês.

Já Navarro acaba de rodar O homem que não dormia, ficção sobre o fantasma que assombra aqueles que procuram um tesouro por ele enterrado. É o segundo filme de longa duração de um diretor consagrado nos formatos curta e média metragem, como Super Outro (1989). Cada qual à sua maneira, os dois diretores vivem momentos importantes, para não dizer cruciais, de suas carreiras.

Rodado em maio na antiga vila de Igatu, na Chapada Diamantina, O homem que não dormia apresenta uma série de situações corriqueiras de uma pequena cidade do interior baiano. “É uma cidade pobre e de mentalidade estreita, que precisa sobreviver depois do ciclo do diamante, mas continua mantida sob um coronelismo que dita relações de dominação”, conta Navarro.

Prestes a completar 70 anos, é ele quem interpreta o Barão, que cem anos atrás, foi traído pela mulher e se perde na vida. “Os moradores de lá são assombrados pelo fantasma desse barão, que enterrou uma botija de ouro por ser avarento e mau. Agora ele sofre por isso e aparece no sonho das pessoas que querem desenterrar o tesouro”.

Orçado em R$ 4 milhões (60% captado), o longa tem direção de arte de Moacyr Gramacho (Deserto feliz e Eu me lembro, filme anterior de Navarro) e montagem do próprio diretor. A escolha por Igatu como locação tem a ver com seu aspecto inóspito e um tanto fantasmagórico.

“É um lugar que parou no tempo, com a cor, as pedras, as marcas do tempo preservadas. Uma cidade fantasma que convive com uma outra viva, com um povo que ignora completamente os fantasmas do passado. Aquilo me impressionou e vi que encontrei o lugar ideal para contar essa história”, diz Navarro.

Encontrado o cenário, entram em cena os personagens. O mais fofoqueiro se chama Pereba. “Ele quem faz o comentário burlesco, maldizente, dessa sociedade”, apresenta Navarro. “Outro personagem foi vítima da repressão militar e se tornou o louco da cidade, que consegue traduzir signos inconscientes. Seu nome é Pra Frente Brasil”. Outra figura importante é o filho do barão, rapaz sequelado e epilético, que vive no mato comendo insetos, lagartixas e “fala por solilóquios, vive acorrentado na cama pra não ficar aprontando”. “À exceção de Madalena, que é uma mulher feliz, que transa com quem gosta, que tem uma mente saudável, todos os outros são tarja preta”.

Com O homem que não dormia praticamente pronto, Navarro sente que se livrou de um peso que carregou por 30 anos. “A cruz agora é de isopor. Só vou curtir”.

Balzac – O novo doc de Sarno talvez seja o primeiro filme nacional a abordar de forma plena a obra de Honoré de Balzac (1799 – 1850), conhecido por ter escrito A comédia humana e A mulher de trinta anos.

O último romance de Balzac é baseado no livro O Avesso de um Balzac contemporâneo- Arqueologia de um pastiche, resultado de dez anos de estudo do psicólogo Osmar Ramos Filho sobre Cristo espera por ti, ditado ao médium Valdo Vieira pelo espírito de Balzac. As filmagens devem encerrar em setembro. Em certo ponto do filme, haverá uma parte ficcional, adaptação do romance A pele de Onagro (La peau de chagrin), escrito por Balzac em 1831.

Sarno descreve o novo filme como um jogo de espelhos com diferentes níveis de leitura, criação e reinterpretação da obra de Balzac: primeiro, a partir do livro psicografado; depois, da pesquisa do psicólogo; e por fim, do próprio documentário. O interesse pelo fazer cinematográfico / literário parece ser o que move o diretor nos últimos anos.

Tanto que seu último longa, Tudo isto me parece um sonho (2008), que investiga a “herança” deixada pelo general pernambucano José Ignácio de Abreu e Lima, gira especialmente em torno desse processo de reflexão / criação. Celebrado em Brasília com os prêmios de melhor roteiro e direção, o filme foi considerado pelo cineasta Carlos Reichenbach como “a maturidade política do documentário brasileiro”.

“Sarno fez um filme que celebra o exercício do pensamento. Para poucos sim, mas ninguém me convence que o cinema precise eternamente bajular o grande público e ficar subserviente à ditadura do borderô e da preguiça que faz evitar a reflexão. Tudo isso me parece um sonho pressupõe cultura política, fina informação, fé na liberdade e o prazer do debate (nunca do discurso e do proselitismo)”, depôs Reichenbach, em seu blog.

Diferente de Navarro, que afirma entrar numa fase artística mais amena, Sarno se mostra pessimista quanto aos caminhos do cinema praticado atualmente. Após quase cinco décadas dedicadas à produção e educação, o premiado diretor de Viramundo (1964), Iaô (1973) e Delmiro Gouveia (1978) adota um discurso mais grave, que alerta produtores e patrocinadores do audiovisual para a necessidade de discutir linguagem e criação.

“Quando digo que nós perdemos, é porque essa questão, tão importante, é ao mesmo tempo inteiramente marginal, não comove ninguém, em nenhum país da América do Sul. Os partidos políticos não estão interessados, políticas públicas idem”.

Para falar sobre seus novos filmes, suas inquietações e processos criativos, o Diario convidou Sarno e Navarro para as entrevistas a seguir. Com a palavra, dois mestres do cinema brasileiro.

* publicado no Diario de Pernambuco

Entrevista // Edgard Navarro : "Esse filme é um ‘ebó’ que me desonera de fazer outros"

A primeira versão do argumento é de 1978. Como ele surgiu?
Foi num desses delírios de juventude, da mistura de várias coisas. Sexo, drogas e rock’n’roll. A história, sobre um fantasma que toma conta de uma botija de ouro enterrada, é recorrente na mitologia brasileira. E me perturbou durante anos.

É um filme ligado ao plano mitológico?
Eu trabalho com o raso e o profundo, com signos que remetem à realidade do dia a dia. Há personagens muito fervorosos numa crença, completamente preocupadas e comprometidas com a profundidade do ser. E outros que não acreditam em nada, são rasos na dor e na vida filosófica. Quero falar sobre a avareza, sobre apego e desapego. Quero falar sobre a busca do tesouro interior, enterrado no passado.

Que realidade vivem os moradores dessa cidade de pedra?
É uma realidade dura, que de certa forma é uma síntese do que é a sociedade. Há uma convivência difícil com os tipos mais comezinhos, prosaicos, que fazem todo tipo de fofoca. E a dor, que perpassa tudo. Há os homens que não conseguem dormir, porque estão infelizes e são trazidos à luz para conviver com o deboche, a chalaça, o descaso das pessoas ditas comuns. Elas deitam e rolam com a dor dos outros. O corno é o outro, o veado é o outro, a puta é a outra, o louco é o outro. É o mundo dos humanos que estão na ralé, com as cores do Brasil e da Bahia.

Um dos personagens foi raptado e torturado pela ditadura militar durante os jogos da Copa de 1970. Você chegou passou por algo parecido nessa época?
O máximo que eu sofri foi o ardor nos olhos pela fumaça de uma bomba de gás lacrimogêneo. Não tive confronto direto com a polícia porque não optei pelo enfrentamento. Optei pelo desbunde da arte, na descoberta das drogas. Tudo isso foi colocado no meu filme anterior, Eu me lembro, que conta minha participação naquele momento. Eu não tive coragem nem convicção suficiente para pegar em armas. Minha guerra era de outra natureza, travada dentro de mim mesmo.

Prestes a completar 60 anos, o que te impulsiona a realizar um filme?
Para mim,fazer cinema é algo mais do que profissão. Virou obsessão. Além de ser algo artístico, é algo quase religioso, uma necessidade visceral de sobrevivência. É por isso que fiz isso até agora. Enquanto se gastam mundos e fundos para fazer filmes de R$ 15 milhões, desprovidos de alma fértil ou de uma consequência maior para o país miserável que vivemos. Para repetir o que já existe na TV. O fato de ter muito escrúpulo me levou para uma senda onde sei que não há retorno. Esse filme me desobriga de ficar nessa loucura, nessa neurose. A partir de agora, talvez não faça um cinema tão sacrificado.

É um ciclo que está se encerrando?
Um ciclo de obrigação. É como no candomblé, onde tenho que arriar determinada oferenda a um orixá. A minha vida inteira, com 30 anos de cinema, tenho a clara consciência de que estou fazendo um grande ebó. É como se eu estivesse disparando vários ebós, cada filme era um. E esse ebó me desonera de continuar fazendo outros. Acabou a grande obrigação. Agora vou fazer cinema por dilentantismo.

Que obrigação era esta?
Uma obrigação da minha neurose, companheiro. Da minha alma, da minha religião, de uma carência, de uma agonia. Que não tem nome. Artur Bispo do Rosário, que tem uma grande obra e era esquizofrênico, falou : ‘vocês dizem que é arte, mas não é arte. É a minha salvação na terra’. É isso que vai me curando. Depois desse filme, posso respirar e fazer qualquer coisa. Fui anistiado do meu karma. Talvez continue fazendo cinema como nos tempos do Super 8, e fazer minhas besteiras imperfeitas com descompromisso. Ou, quem sabe, vá fazer um jardim. Será uma felicidade maior do que esse cinema atrelado a tantas preocupações, como ganhar o Oscar.

*publicado no Diario de Pernambuco