O Som ao Redor em Roterdã e a boa repercussão da crítica

Único filme brasileiro a ser premiado do 41º Festival de Roterdã (Holanda), O som ao redor, primeiro longa de ficção de Kleber Mendonça Filho, inicia a carreira com o pé direito. Ano passado, o filme não foi aceito pelo Festival de Brasília, no que parece ter sido um erro histórico para um evento que sempre acolheu e premiou o cineasta. Na última sexta, o filme foi eleito o melhor de Roterdã pela Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica – Fipresci, por “evocar uma atmosfera de paranoia e ameaça através do uso altamente ambicioso de fotografia e som”.

“Uma estreia ousada e promissora”, escreveu o crítico paulista Thiago Stivalleti, um dos responsáveis pela seleção da próxima Mostra de São Paulo. O crítico Jay Weissberg, da revista norte-americana Variety, fez elogios rasgados a Kleber: “um cineasta excepcionalmente talentoso, que sabe exatamente o que está fazendo e por quê o faz”. Sobre o filme, ele diz ser “um poderoso e sutil raio x da sociedade brasileira contemporânea (…) soberbamente construído, com hábeis atuações e lindamente fotografado (…) um exemplo de filme brasileiro que não precisa de um pé na favela para ganhar força no mercado internacional”.

Com atuações de Irandhir Santos, Gustavo Jahn e Maeve Jinkings, O som ao redor se passa numa rua de Setúbal, bairro da Zona Sul recifense onde mora o diretor. De acordo com material de divulgação do filme, moradores preocupados com a segurança contratam milícia que traz tranqulidade para alguns e tensão para outros.

“Juntei amigos e fiz o filme de maneira não tão diferente do que já estava habituado, exceto no quesito estrutura, pois esse é o meu filme mais caro até hoje”, diz Kleber, de Bourdeaux, onde passa férias. O orçamento de quase R$ 2 milhões foi captado via Ministério da Cultura, governo de Pernambuco, Petrobras e Fundo Hubert Bals, mantido pelo Festival de Roterdã.

Do ponto de vista prático, o prêmio da Fipresci deve abrir portas para o filme. “Críticos exercem o amor pelo cinema não apenas escrevendo, mas organizando mostras, festivais”, diz Kleber. Até o momento, são 28 convites para novas exibições. A próxima, diz Kleber, deve ser em Varsóvia (Polônia). “Há alguns apectos do chamado ‘cinema de gênero’ que parece ter batido bem. Tudo o que eu temia na minha visão do filme terminou revelando-se algo positivo”.

Ainda não há nada definido para uma sessão nacional de O som ao redor, que deve acontecer ainda este ano.

Saiba mais

As filmagens de O som ao redor foram feitas em seis semanas e quatro dias, entre julho e agosto de 2010; a montagem, assinada por Kleber e João Maria, levou um ano e dois meses para ficar pronta. O corte final de é de 131 minutos.

A trilha sonora é de DJ Dolores; a fotografia, de Pedro Sotero e Fabricio Tadeu; a direção de arte, de Juliano Dornelles.

Kleber Mendonça dirigiu diversos curtas, entre eles Enjaulado (1997) e Recife frio (2009). Alguns de seus filmes podem ser assistidos pelo site http://www.vimeo.com/cinemascopio

(Diario de Pernambuco, 07/02/2012)

Pernambucanos em Roterdã

O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, estreia mundialmente no próximo dia 1º

Neighbouring sounds. Rat fever. The hyperwomen. Walt Disney Square. Quatro novos títulos do cinema pernambucano, na forma como serão apresentados no Festival de Roterdã, na Holanda. O evento começou no último dia 25 e, dos nossos, já exibiu o premiado Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira. Hoje é a vez de Febre do rato, o convulsivo terceiro longa de Cláudio Assis, ter sua primeira exibição internacional. Em 2007, Cláudio levou o Tiger Award em Roterdã por Bog of beasts, ou melhor, Baixio das bestas. Desta vez, está fora de competição, reservada a diretores estreantes ou no segundo filme.

É o caso de Kleber Mendonça Filho, que ano passado esteve em Roterdã com Recife frio e agora estreia na ficção de longa-metragem com O som ao redor. Tanto ele quanto As Hiper Mulheres, de Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro serão exibidos no próximo 1º de fevereiro, o primeiro em competição, o segundo na mostra Bright Future.

Realizado com R$ 1,8 milhão, O som ao redor traz Irandhir Santos (também protagonista de Febre do rato) como segurança particular, contratado por rua de classe média no bairro de Setúbal, onde uma família é dona da maior parte dos imóveis. Segundo o realizador, que atuou como crítico de cinema por mais de dez anos e passou os últimos 14 meses na mesa de edição, o filme é sobre paranoia, medo e vingança, calcado no Recife atual, em que, apesar dos avanços, muito coisas permanece regido pela tradição e carga histórica.

“Não que seja um arremedo preciso da realidade, mas uma interpretação honesta”, diz Kleber. “Ele tem uma naturalidade sobre o banal, mas tenta ser real sobre o que se vive no Brasil, que tem ao mesmo tempo uma cultura muito linda e muito feia”.

A recorrente presença pernambucana no Festival de Roterdã nos levou a procurar o curador do evento, Gerwin Tamsma. Na entrevista a seguir, ele discorre sobre as razões que despertam interesse na nossa cinematografia.

Entrevista >> Gerwin Tamsma: “O cinema inovador tem sido feito em lugares distantes”

Nos últimos anos, vários filmes pernambucanos foram selecionados por Roterdã. Não deve ser por motivos puramentes geográficos.
Não apenas geograficamente, mas também do ponto de vista histórico, o Recife está mais perto da Holanda do que de São Paulo ou Rio de Janeiro, não porque nos importamos mais com a periferia. Mas porque, nos últimos 30 anos, o cinema que consideramos, inovador ou interessante, tem sido feito em lugares distantes. Nos últimos anos, cineastas de Pernambuco receberam apoio do Hubert Bals Fund, como Claudio Assis e Kleber Mendonça, que este ano estão em Roterdã com filmes bem diferentes um do outro, assim como do mainstream brasileiro. Mas acho muito específicos por se relacionar com o Recife. Sim, estou muito consciente de uma tendência de Roterdã em exibir filmes de Pernambuco: mas isso acontece não porque são periféricos, underground ou políticos. Mas porque eles são bons.

Qual a importância em colocar filmes de países periféricos em foco?
O Festival de Roterdã tem uma longa tradição de apresentar e promover filmes de regiões e lugares periféricos – talvez porque esteja situado em uma cidade portuária e com muito vento. Não importa se o filme é feito na China campestre, em favela filipina, em aldeia pernambucana ou vila esquimó. Em muitos países, há determinados períodos em que filmes periféricos são mais interessantes do que a produção do centro: por um tempo, isso foi verdade na Itália; agora, na França e também no Brasil, onde jovens cineastas de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife têm feito trabalhos interessantes. O que não significa que não há filmes interessantes em São Paulo ou Rio.

Há conotações políticas na escolha dos filmes, ou ela se dá totalmente por motivos estéticos?
A decisão nunca passa por interesses políticos, muito menos pela inclinação específica por filmes underground, termo que só muito parcialmente cobre o nosso interesse. Algumas das grandes descobertas de Rotterdã na última década vieram do México (Carlos Reygadas) e Tailândia (Apichatpong Weerasethakul). Mas estou igualmente satisfeito porque fomos a primeira plataforma internacional para Tomas Alfredsson (Deixa ela entrar), da Suécia, país que, do ponto de vista brasileiro, está bem mais próximo da Holanda.

(Diario de Pernambuco, 28/01/2012)

Série Novos Olhares // Um cinema que não sai de cartaz

Walter Carvalho e Cláudio Assis no set de Febre do Rato

O cinema feito em Pernambuco vive um momento inédito. Se sua história é contada em ciclos, este já pode ser considerado o maior e mais fértil. Nunca tantos filmes foram realizados, aplaudidos e premiados como nos últimos anos. Somente na temporada 2009-2011, cerca de duas dezenas de longas em suporte digital ou 35mm estão em fase de preparação, produção ou finalização. Em 2010, seis longas foram rodados no Recife, três com distribuição nacional garantida.

Se num primeiro momento a urgência em se fazer filmes superava as reais condições para realizá-los, hoje não podemos dizer o mesmo. Temos equipamentos, mão de obra especializada, formada em cursos técnicos e prestes a alcançar nível superior, em cursos de graduação oferecidos por três universidades locais. Não por acaso, no começo de outubro o recém-criado curso de cinema da UFPE foi sede do 14º Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema – Socine.

Essencial para movimentar a cadeia produtiva, o fomento oferecido por órgãos públicos tem sido exemplar. Em 2008 o governo do estado criou edital específico para projetos do audiovisual, o último no valor de R$ 8 milhões. Um terço a mais do que o anterior, quando 95 roteiros de curtas e 35 de longas pleitearam recursos. Nos últimos quatro anos, R$ 33 milhões foram investidos no setor. Festivais se fortalecem e multiplicam, inclusive no interior.

Para Paulo Caldas, que finaliza seu quarto longa, País do desejo, o atual panorama se explica por uma série de fatores, que podem ser resumidos pelo status acumulado nos últimos 20 anos, quando foi retomada a produção no estado. “Esse respaldo é o nosso grande trunfo. Quem trabalha com cinema há mais tempo, percebe a transformação”.

Equipe de O som ao redor comemora o fim das filmagens Foto: Victor Jucá

Kleber Mendonça Filho, que acaba de rodar O som ao redor, arremata: “É incomparável. Com novos processos técnicos e iniciativas se espalhando, a própria ideia de fazer um filme não é mais absurda. É um pouco do que se queria naquela época, acontecendo agora, com cinco longas produzidos em umano. Antes, acontecia um a cada década. Hoje, o país está muito bem financeiramente. E há muito dinheiro para cinema”.


Hermila Guedes e João Miguel no Carnaval cenográfico de Era uma vez Verônica

Marcelo Gomes, que finaliza Verônica seu terceiro longa, afirma que vivemos um ano histórico para o cinema em Pernambuco. “Nunca se rodou tantos longas na cidade desde o Ciclo do Recife, nos anos 1920. Espero que o público assista a esses filmes, agora que temos mais salas exibindo o nosso cinema como o Cine São Luiz e o Cinema da Fundação”.

Uma produção constante e sem sinais de cansaço pode colocar em xeque a tradição de ciclos do cinema local? “Talvez daqui a 20 anos possamos dizer que vivemos um ciclo, mas hoje apenas dizemos que se trata de algo diferente”, afirma o crítico e professor de cinema Alexandre Figueirôa, que enumera uma série de fatores que cuminaram no bom momento para a produção pernambucana, como a proliferação de festivais e a abertura de outros mercados para difusão como o DVD e a internet.

Para ele, a ideia de ciclo vem de momentos específicos que, por razões sociais e econômicas, fez surgir períodos de maior produção em torno de um grupo de pessoas. “Mas basta olhar de perto para ver que nunca se deixou de produzir cinema em Pernambuco. Hoje é diferente porque temos um cinema dentro de uma perspectiva mais aberta, sem hierarquia. E que permite uma continuidade, com menos dependência do modelo institucional de grandes financiamentos. Isso gera longevidade. Por outro lado, sempre tivemos a tradição do audiovisual. Essa vocação, a partir do momento em que encontra cenário favorável, tende a se expandir”.

No entanto, a dependência de recursos públicos leva a refletir sobre a fragilidade da cadeia produtiva. “A partir de Baile perfumado entramos num processo de sustentabilidade discutível”, diz Paulo Cunha, pesquisador e um dos fundadores do curso de graduação em cinema da UFPE. “Espero que haja bom senso da gestão pública, já que a temos uma produção excelente que subsiste justamente pelo apoio estatal. Precisamos garantir que o nosso cinema continue a existir como é, poético, experimental, inovador e avançado. Isso gera um retorno não de bilheteria, mas de grande visibilidade. Seria fantástico dar mais segurança a isso. Caso contrário, essa fase que parece estupenda pode virar outro ciclo e se encerrar”.

Muitos prós e alguns contras

Mais um fato inédito, hoje é possível realizar um longa com equipe 100% pernambucana. Quem garante é Cynthia Falcão, presidente da seção pernambucana da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD/PE), com 88 sócios. “Na concepção da ABD, não faltam profissionais de nenhuma área, do diretor aos técnicos de elétrica. Porém, quando se trata de finalizadoras, sabemos que as empresas especializadas em HD e 35mm ainda estão no Sudeste”.

Outro passo à frente é a criação de uma subsede do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Cinematográfica (Stic). “A maioria dos profissionais de cinema de Pernambuco não tem DRT na área. Eles querem regulamentar a atuação no estado, estipular um piso local, organizar melhor a categoria e a forma de trabalho. Pelo Stic, poderemos entrar em contato com as produtoras, estabelecer um diálogo com esse mercado”, diz Cynthia.

A intensificação da atividade e demais conquistas, no entanto, não correspondem a um monitoramento adequado dessa produção. O último foi realizado em 2005 pelo Sebrae-PE. “Na época, atendemos o pleito do Sindicato da Indústria do Audiovisual e tivemos o apoio da Fundação Joaquim Nabuco, que usou a pesquisa para para buscar melhores políticas públicas, como a implantação do Centro Audiovisual Norte-Nordeste e a disponibilização da câmera 35mm para a região”, diz Alexandre Ferreira Gomes, gestor de cultura Sebrae-PE (novo levantamento deve ser iniciado pela ABD-PE assim que terminar o período eleitoral).

Para os realizadores, também há o que melhorar. “De produção, para fazer a coisa andar, o Recife está muito bem servido. Mas a maquinaria utilizada ainda é precária no Recife. Também existe carência de profissionais para esse tipo de equipamento”, diz Kleber. Entre os preparativos de Verônica, Marcelo Gomes entende que as novas tecnologias ajudam bastante, mas, por outro lado, fazer cinema está ficando mais caro. “Temos mais pessoas se especializando e nosso edital está mais aperfeiçoado. Mas ainda falta uma maior sensibilidade do empresariado”.

Linha do tempo do cinema pernambucano

1902 – Primeira exibição de cinema no Recife, no animatógrafo da Rua da Imperatriz

1918 – Ugo Falangola traz o equipamento que deu origem à Pernambuco Film. Em 1924, exibem Veneza Americana

1923 – Gentil Roiz e Edson Chagas fundam a Aurora Filmes

1925 – Com roteiro de Ary Severo, Roiz e Chagas começam a filmar Aitaré da Praia

1927 – A filha do advogado, de Jota Soares, é exibido em 13 salas no Rio de Janeiro

1936 – Em parceria com a ABA Film, imigrante sírio Benjamin Abrahão filma de Lampião e seu bando

1942 – Newton Paiva e Firmo Neto rodam o longa O coelho sai, cuja única cópia foi destruida em incêndio

1952 – Alberto Cavalcanti dirige O canto do mar no Recife; José de Souza Alencar (Alex) foi assistente de direção

1960 – Instituto Joaquim Nabuco patrocina os documentários Aruanda, de Linduarte Noronha e A cabra na região semi-árida, de Rucker Vieira

1964 – Eduardo Coutinho começa a filmar Cabra marcado para morrer que só viria a concluir 20 anos depois

1969 – Fernando Spencer finaliza seu primeiro curta, A busca, em 16mm

1973 – Sérgio Ricardo filma em Nova Jerusalém A noite do espantalho; no elenco, Alceu Valença, José Pimentel e Geraldo Azevedo; 11 filmes pernambucanos se increvem na 2ª Jornada Nordestina de Curta-metragem de Salvador

1976 – Jomard Muniz de Britto dirige o curta O palhaço degolado

1977 – É criado o Grupo de Cinema Super 8 de Pernambuco

1978 – Cleto Mergulhão dirige O palavrão, o último longa-metragem pernambucano até o lançamento de Baile perfumado

1984 – Kátia Mesel funda a Arrecifes Produções e roda Bajado – um artista de Olinda

1985 – Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Adelina Pontual e Samuel Holanda fundam o grupo Van-retrô

1996 – Primeira exibição de Baile perfumado(foto), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, no Festival de Brasília

1997 – Primeira edição do festival Cine PE

2003 – Amarelo Manga, de Cláudio Assis é sete vezes premiado no Festival de Brasília

2005 – Cinema, aspirinas e urubus é exibido na seleção oficial da Mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes

2006 – Baixio das bestas, de Cláudio Assis, é eleito o melhor filme do Festival de Brasília e vence o prêmio Tiger de Melhor Filme no Festival Internacional de Roterdã, na Holanda

2007 – Deserto feliz, de Paulo Caldas, estreia no Festival de Cinema de Berlim; com o curta Décimo segundo, Leo Lacca é melhor diretor no Festival de Brasília; o longa Amigos de risco, de Daniel Bandeira, participa da mostra oficial.

2008 – Curta Muro, de Tião, é premiado no Festival de Cannes; KFZ 1348, de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso é premiado pela 32ª Mostra de Cinema Internacional em São Paulo.

2009 – Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz é exibido em Veneza; Um lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, participa de mais de 20 festivais no mundo; curtas Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante e Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, ganham prêmios do Festival de Brasília; Recife frio e Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, integram Festival de Roterdã.

(Diario de Pernambuco, 26/09/2010)

A crueldade arquitetônica ao redor

A enviesada relação entre pessoas e o espaço em que vivem é o tema de O som ao redor, filme que há três semanas vem sendo rodado nos bairros de Boa Viagem e Setúbal. A produção, que marca a estreia de Kleber Mendonça Filho (Recife frio, Vinil verde) no formato longa de ficção, mobiliza uns 60 técnicos e um elenco de 70 pessoas. Até o momento, cerca de vinte casas e apartamentos da Zona Sul do Recife serviram de locação. No elenco estão Irandhir Santos, que vive o segurança Clodoaldo; Gustavo Jahn é João, que adminstra os imóveis da família; Maeve Jinkins (que atuou em Falsa loura, de Carlos Reichenbach, e hoje vive no Recife) é Bia, casada com Ricardo (Dida Maia). Ainda no elenco principal, Sebastião Formiga, Irma Brown, Lula Terra e Waldemar José Solha.

Eles protagonizam histórias autônomas, que justapostas, compõem o panorama almejado pelo diretor. O cenário específico é uma rua de Setúbal, onde Kleber cresceu. No entanto, ele diz que o filme não se reduz à realidade de um bairro. “Não sei exatamente sobre o que é o filme, mas há a ideia recorrente de como as cidades se relacionam com as pessoas. Estou filmando em Setúbal, mas poderia ser em Casa Forte, na Boa Vista, ou em qualquer outra cidade do Brasil ou da América Latina”, disse o realizador.

Na manhã da última sexta-feira, o set foi montado no Edifício João Costa, em Boa Viagem. Cerca de 24 crianças e 11 babás que habitam o condomínio participaram das filmagens. A câmera, acoplada em um sistema steadycam, flutua por trás das crianças até chegar ao playground. “O objetivo da cena é o paredão de empregadas encostadas na parede”, diz Kleber, que, para operar o equipamento, conta com o carioca Fabrício Tadeu, considerado um dos melhores do Brasil.

Tadeu, que traz no currículo os filmes Cidade de Deus, Desmundo e A suprema felicidade, novo filme de Arnaldo Jabor, foi trazido para a equipe através de Pedro Sotero, diretor de fotografia de Um lugar ao Sol e Amigos de risco, dois longas da Símio Filmes.

Membros da Símio, aliás, foram incorporados à equipe da Cinemascópio, produtora de Kleber: Juliano Dornelles faz a direção de arte; Daniel Bandeira, a continuidade. Na Clara Linhard e Milena Times são assistentes de direção. A montagem será de Kleber e João Maria. E a produção executiva, de Emilie Lesclaux. O som ao redor está sendo filmado em 35mm techniscope, variação do cinemascope que permite imprimir o dobro de quadros no mesmo espaço da película. Assim, o custo de negativo é reduzido pela metade.

Primordial para o projeto, o som é captado pelo belga Nicolas Hallet, profissional premiado e que cada vez mais tem concentrado suas atividades em Pernambuco. Seu trabalho vai muito além de registrar a voz dos atores. A ideia é acrescentar um ambiente sonoro ao que está sendo visto. Em uma das cenas, há uma construção do lado da cozinha onde se dá a ação. “Não há equipamento no mundo que consiga abafar o barulho de uma betoneira funcionando. Então abrimos tudo”, diz Hallet.

Entusiasta do projeto, o ator WJ Solha diz que tinha resolvido parar de atuar, até que leu o roteiro. “É uma ótima sacada essa visão de fazer um filme sobre a classe média, que foge do estereótipo do nordeste miserável, seco de periferia”. Solha estreou no cinema no elenco de O salário da morte (1970), de Linduarte Noronha. No filme, ele está no papel de “dono de metade dos imóveis da rua”. Em determinada sequência, figura numa casa grande que ainda preserva, um andar abaixo, uma senzala.

Para Kleber, a relação de estranhamento e conflito entre o homem e a arquitetura urbana, explorada exemplarmente nos anos 1950 por Jaques Tati (Meu Tio, Playtime), tem se intensificado nos últimos tempos. “Quero filmar pessoas numa obra arquitetônica que deu errado. Me incomodam os filmes que isolam os personagens do espaço ao redor”. O som ao redor está sendo produzido sob o custo de R$ 1,6 milhão, captados em editais do Ministério da Cultura, Petrobras e Funcultura. As filmagens seguem até o dia 24.

(Diario de Pernambuco, 02/08/2010)

Mostra especial traz cinco curtas de Kleber Mendonça ao Cine São Luiz


Recife frio, um dos melhores filmes do ano, é atração principal

Cinco curtas-metragens de Kleber Mendonça Filho serão exibidos hoje, às 20h, no Cine São Luiz (Boa Vista). Pela primeira vez será possível assistir Recife frio (2010), Noite de sexta manhã de sábado (2007), Eletrodoméstica (2005), Vinil verde (2004) e A menina do algodão (2002) em conjunto, numa sala de cinema. Com aproximadamente 80 minutos, a sessão será seguida de diálogo entre a plateia e o realizador, que mês que vem começa a rodar seu primeiro longa de ficção, O som ao redor.

Colocados em perspectiva, os filmes remontam a recente e premiada trajetória do cineasta pernambucano. Realizados em diferentes formatos e bitolas, eles acumulam quase uma centena de prêmios em festivais do mundo. Codirigido com Daniel Bandeira (Símio Filmes), A menina do algodão traz uma visão atual para a lenda urbana que nos anos 1970 circulava nas escolas do Recife; montado apenas com imagens em still (como uma colagem de fotografias), Vinil verde contemporaniza um antigo conto russo para a realidade urbana; Eletrodoméstica faz um retrato da intimidade da classe média recifense, caminho que o diretor deve seguir em O som ao redor; E Noite de sexta manhã de sábado narra de forma etérea o amor de duas pessoas separadas por um oceano.

Ficção travestida de documentário para a TV, Recife frio é a grande estrela da programação. Esta visão ácida e bem-humorada da cultura da capital pernambucana tem provocado repercussão por onde passa. Para quem não assistiu, esta é uma boa oportunidade para fazê-lo. Talvez leve algum tempo para surgir outra. Por isso, rever também é um bom programa.

Opção menos atraente, mas acessível para o público que não mora no Recife é assistir aos curtas de Kleber via internet. Desde janeiro, com exceção de Recife frio, toda a sua produção está disponível no site de compartilhamento Vimeo (www.vimeo.com/cinemascopio), inclusive Homem de projeção (1992), Enjaulado (1997) e o experimental Luz, industrial, mágica (2008).

(Diario de Pernambuco, 08/06/2010)

A hora do cineasta

Nos últimos tempos, o crítico de cinema Kleber Mendonça Filho tem se destacado também como realizador de filmes. Da sua premiada produção de curtas, Recife frio é o mais recente e deve ser uma das principais atrações do Cine PE. Os demais acabam de ser exibidos em retrospectiva no Rencontres Cinémas D’Amérique Latine de Toulouse, na França.

A novidade é que Kleber decidiu parar de escrever sobre filmes dos outros – ofício no qual se tornou uma referência – para se dedicar exclusivamente ao seu. Em meio a preparativos para rodar seu segundo longa-metragem, O som ao redor, ele respondeu a entrevista a seguir.

Você produz um festival, realiza filmes, é programador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco e isso deve dar trabalho. O que te atrai no cinema a ponto de dedicar sua vida a ele?
É muito trabalho sim, mas é o que eu sei fazer. Como programador, me parece importantíssima a ideia de mostrar um cinema mais generoso para com o mundo, em espaços que agreguem as pessoas socialmente, numa época em que espaços são desenhados para otimizar o gasto bruto de dinheiro e pouca coisa mais. Fazer filmes é apaixonante, é um processo que me interessa em todos os detalhes – escrever, filmar, editar, sonorizar. Minha preocupação primeira é ser verdadeiro e não em comercializar. Ganhar dinheiro com cinema é uma possibilidade mas nunca uma certeza. E ver filmes é algo que faço desde criança. Tudo junto resulta em muito trabalho, mas também em muito prazer, sempre.

Você vem de uma bem sucedida carreira de curtas. Por que a opção pelo formato de longa-metragem?
Desde a época em que fazia vídeo que pra mim um filme é um filme, independente do formato. Com o sucesso de Vinil Verde em 2004, começaram as cobranças sobre um longa, o que aumentou com o sucesso de Eletrodoméstica e Noite de sexta manhã de sábado. Mas eu esperei até naturalmente chegar a um longa sem pressa nenhuma. E essa ideia chegou e eu escrevi um roteiro que me agrada muito dentro do formato de longa duração. No plano geral, é natural que a maior parte dos realizadores cheguem ao longa.

Após 12 anos como crítico de cinema, você se afasta da função. Foi uma decisão difícil de tomar?
Foi difícil. Minha experiência de colaboração com o JC não poderia ter sido melhor, num processo de parceria das duas partes e total liberdade de enfocar o cinema da maneira que eu o vejo. Ver filmes e escrever é uma coisa que adoro desde sempre. No entanto, é algo que exige enorme energia e tempo, que agora precisam ser redirecionadas para o filme.

E como você define O som ao redor?
É uma crônica sobre vida em sociedade, no Recife. É muito local, mas talvez seja universal. Vemde observações pessoais minhas sobre as pessoas e a cidade, tema que já tratei em Enjaulado, Eletrodoméstica e Recife frio. Tudo dando certo, não estarei me repetindo, mas explorando terreno familiar.

(Diario de Pernambuco, 04/04/2010)

Presença pernambucana em território holandês

A ponte que liga pernambucanos e holandeses é cruzada novamente, desta vez pelo cinema. Recife frio e Avenida Brasília Formosa, dois títulos da recente cinematografia local, integram a seleção oficial do Festival de Roterdã. Belair (RJ), de Noa Bressane e Bruno Safadi, completa o rol de brasileiros em Roterdã, um dos cinco grandes festivais do mundo ao lado de Cannes, Berlim, Veneza e Sundance.

Recife frio (Cold tropics), curta de Kleber Mendonça Filho (Vinil verde), participa amanhã e sexta-feira da mostra Spectrum, um panorama mundial não-competitivo. Avenida Brasília Formosa (Defiant Brasília), de Gabriel Mascaro (KFZ 1348), será exibido pela primeira vez nos dias 2 e 3 da mostra Bright Future. Os dois filmes têm em comum uma abordagem da cidade sob pontos de vista pessoais e intransferíveis.

Inédito, Avenida Brasília Formosa se aproxima de quatro moradores do bairro de Brasília Teimosa, logo após a intervenção urbanística que removeu palafitas e estendeu o logradouro que evoca o novo conceito para a antiga comunidade de pescadores. O conflito entre identidade nova e antiga (sugerido já nos primeiros minutos quando o ônibus com o itinerário “Brasília Teimosa” desliza sobre o asfalto) é o foco no qual se desenvolve o filme. Desprovidos de palafitas, seus protagonistas agora desafiam não apenas a expansão imobiliária, mas a imagens pré-concebida sobre seu cotidiano.

Multipremiado no último Festival de Brasília e eleito melhor filme (júri oficial e popular) no 13º Festival de Santa Maria da Feira (Portugal), Recife frio será apresentado esta semana em dois festivais. Hoje, na Mostra de Cinema de Tiradentes (MG); amanhã e depois, em Roterdã. “Em Brasília, fizeram uma associação entre Recife frio e o passado holandês da cidade. Vou checar se isso procede”, diz o realizador. Se depender da boa resposta de público e crítica até o momento, tudo indica que sim.

Com cenas antológicas como o esvaziamento dos arranha-céus de Boa Viagem, uma praia de pinguins no litoral sul, o Rio Capibaribe transformado em bloco de gelo e participação de Lia de Itamaracá, o curta também integra a retrospectiva que o 22º Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse (sul da França) fará ao diretor, em março.

Antes de ir para Roterdã com sua Brasília, Mascaro faz escala em Tiradentes, onde exibirá o longa anterior, Um lugar ao sol. Lado a lado, os documentários provocam interessante contraste entre depoimentos de ultra-ricos nas coberturas e o cotidiano quase invisível (como a câmera de Mascaro) dos habitantes de Avenida Brasília Formosa.

(Diario de Pernambuco, 27/01/2010)

A hora e vez do curta pernambucano

Dois mil e nove foi um ano e tanto para o curta-metragem pernambucano. Somente em Brasília, mês passado, quatro filmes estreantes deram o que falar e monopolizaram os principais prêmios. No Recife, eles serão exibidos pela primeira vez hoje, às 20h20, na programação da Expectativa 2010/Retrospectiva 2009 do Cinema da Fundação.

Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante, foi escolhido melhor filme, fotografia (Beto Martins) e som (Nicolas Hallet) em Brasília. É o segundo de uma trilogia de documentários poéticos sobre as diferentes versões da Ave Maria de Schubert: a primeira, cantada por Stevie Wonder e transmitida diariamente às 18h por uma FM do Recife; agora, o diretor olha para os costumes arcaicos e modernos do povo do Sertão, ao som da Ave Maria sertaneja, de Luiz Gonzaga; o próximo curta, ainda sem nome, mostra a relação da burguesia com a Santa e terá como trilha a Ave Maria de Gounod.


Recife frio, em foto não publicável em jornais

Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, é uma comédia que usa elementos de ficção científica, documentário e musical para narrar o dia em os recifenses foram obrigados a adaptar costumes e valores culturais e econômicos a uma inversão climática radical. O filme brinca com as paisagens típicas da cidade e ainda conta com locações em Calhetas, Gramado e litoral da África do Sul. No elenco, Andrés Schaffer, Yannick Ollivier, Junior Black, Pedro Bandeira e Lia de Itamaracá. Durante a sessão em Brasília Recife frio causou furor, foi aplaudido duas vezes antes da sessão acabar e venceu como melhor curta (público e crítica), direção e roteiro (júri oficial). Sua carreira está só começando: no último domingo, foi eleito melhor filme (júri oficial e popular) no 13º Festivalde Cinema Luso-Brasileiro em Santa Maria da Feira (Portugal).

Com produção de Isabella Cribari e direção de arte de Dantas Suassuna, a ficção Azul, de Eric Laurence demonstra força nas imagens e sons (Hallet, também premiado em Brasília) e na atuação de Zezita Matos, que interpreta uma senhora que todos os dias leva a mesma carta, escrita pelo filho (Irandhir Santos), para que a amiga (Magdale Alves) a leia. Ela vive numa casa isolada no Agreste, construída especialmente para o curta, e que remete a outro locus, o da solidão existencial.

A linguagem caótica/anárquica de Faço de mim o que quero, de Sérgio Oliveira e Petrônio Lorena, gerou risadas e certo estranhamento na plateia de Brasília. Parte da crítica adorou o filme, que deve ser o primeiro inteiramente dedicado ao universo do brega. Com imagens e sons típicos, o filme incorpora a permissividade inerentes à música como experimento de linguagem. Tudo parte de uma câmera-carrinho de CDs pirata, literalmente o veículo de divulgação dos artistas, para setornar um delírio que passa por programas de TV, salões de beleza e paquera na praia de Brasília Teimosa, que gerou uma sequência em formato fotonovela, onde uma dançarina (a atriz Samara Cipriano) contracena com Rodrigo Mell (autor de Chupa que é de uva). Para a sessão, os diretores convidaram alguns artistas, entre eles o Conde do Brega, João do Morro, Kelvis Duran e a banda Vício Louco, que devem permanecer para o bate papo com o público.

Amanhã, às 21h10, o programa traz mais quatro curtas da nova safra: o inédito Teatro da alma, de Deby Brennand, Nossos ursos camaradas, de Fernando Spencer, Confessionário, de Leonardo Sette e Tchau e bênção, de Daniel Bandeira. Nas duas noites, os realizadores participam das sessões e depois conversam com o público.

(Diario de Pernambuco, 16/12/2009)

Pernambucanos faturam prêmios em Brasília

Brasília (DF) – O 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro terminou na última terça-feira, com uma cerimônia de premiação que privilegiou o longa paulista É proibido fumar, de Anna Muylaert. O filme foi contemplado em oito categorias: melhor filme, ator (Paulo Miklos), atriz (Glória Pires), atriz coadjuvante (Dani Nefussi), roteiro (Anna Muylaert), direção de arte (Mara Abreu), trilha sonora (Márcio Nigro), montagem (Paulo Sacramento) e o prêmio da crítica. Uma pré-estreia e tanto – a estreia comercial será em 4 de dezembro.

Entre os curta-metragens, Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante, e Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, receberam prêmios principais. O primeiro ganhou prêmios de melhor filme, fotografia (Beto Martins) e som (Nicolas Hallet, também premiado pelo trabalho em Azul, de Eric Laurence). Esta é a primeira vez que Cavalcante, duas vezes eleito melhor diretor em Brasília, vence nessa categoria. Já o crítico e programador de filmes Kleber Mendonça se consagra como realizador – apesar de já ter vencido em Brasília com Noite de sexta, manhã de sábado e Vinil verde, ele nunca colecionou tantas estatuetas e prêmios: melhor filme (júri popular), melhor direção, melhor roteiro, Prêmio Aquisição Canal Brasil, Prêmio Saruê, Prêmio Vagalume e prêmio da crítica. Kleber confirmou que em dezembro o Cinema da Fundação fará uma sessão especial com os quatro curtas locais exibidos em Brasília. Diretor de Faço de mim o que quero ao lado de Sérgio Oliveira, Petrônio Lorena disse que artistas do brega que participam do filme serão convidados a fazer uma performance.

Após a cerimônia, Evaldo Mocarzel, eleito melhor diretor pelo longa Quebradeiras, evocou não somente mineiros como pernambucanos como vanguarda do cinema nacional. “Da mesma forma que o documentário mineiro está bombando, Pernambuco continua imbatível na ficção”. Para o ano que vem, ele pretende apresentar o novo filme, São Paulo Cia de Dança, no festival É tudo verdade. Assim como em Quebradeiras, ele investe na estética sensorial e radical que explora imagens de composição rigorosa e trilha de áudio desprovida de palavras. E quer voltar a Brasília com Cuba libre, um “doc gay almodovariano”.

Merecido o destaque para o longa Filhos de João – admirável mundo novo baiano, que recebeu o voto do júri popular, prêmio especial do júri oficial e troféu Vaga-lume, concedido por integrantes do projeto Cinema para Cegos. Com depoimentos generosos de Tom Zé, o filme foi de longe o mais querido do festival. “A todos os filhos de João espalhados por aí, crentes de que podemos fazer algo diferente, porque o mundo está muito chato”, disse o diretor estreante Henrique Dantas. Representando o grupo na noite de terça, Moraes Moreira cantou, declamou poesia e disse que o sonho dos Novos Baianos não acabou. “Ele continua no filmes, nos filhos, nos shows de cada um de nós, através do som dos ‘novos novos’ baianos”, disse o compositor.

* O repórter viajou a convite do festival

(Diario de Pernambuco, 26/11/2009)

Entrevista // Kleber Mendonça Filho: "Recife frio é um lamento de amor sobre a minha cidade"

Recife frio causou reação imediata e muitos aplausos. Que tipo de retorno e interpretações você teve depois da sessão?
Aquilo que ocorreu na sessão é muito raro pela intensidade e pela emotividade. Levei três horas para me recompor. O que mais me impressionou foi uma reação não apenas às idéias, mas às imagens do filme. As pessoas mostraram para mim, Emilie (Lesclaux, produção e montagem), Juliano (Dornelles, produção e direção de arte), Simone e Andrés (Shaffer, ator) que há uma beleza emotiva no filme. A surpresa é ver que essa beleza chega forte em muitos. Isso também é raro. O maior retorno foi a dúvida esclarecida de que o filme, que é muito pernambucano, local, se comunica com pessoas que nunca foram ao Recife. Sempre nos perguntávamos se o filme seria compreendido por não-pernambucanos.

Recife frio faz comédia com valores arraigados da cultura recifense. Você acredita que pessoas podem se ofender?
A maneira como o Recife vem sendo tocado do ponto de vista urbanístico precisa ser questionado, e uma boa saída para ilustrar questões como essa é usando a força implacável do cinema. Recife frio é um lamento de amor sobre o Recife, e esse lamento, claro, tem dor. O filme junta-se a filmes atuais do cinema pernambucano que estão exatamente abordando essa questão, como Menino aranha, de Mariana Lacerda, Eiffel, de Luiz Joaquim e Um lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro. Não vejo como algumas pessoas individualmente poderiam se sentir ofendidas. Recife frio é um olhar pessoal sobre a minha cidade.

A sequência com Lia de Itamaracá encerra o filme de forma transcendente, quase sobrenatural. Como surgiu a ideia de inseri-la no filme como algo positivo, depois de tantas críticas demolidoras ao Recife way of life?
Lia é uma mulher linda. Seu rosto é especial e a câmera a adora. Filmar Lia bem era uma obrigação minha. Fico feliz que o tom de rainha que ela tem esteja no filme. Ela é cativante e sua presença emocionante. Para completar, sua música é bela, e a letra promove uma sensação de generosidade ampla “minha ciranda não é minha só, ela é de todos nós”. A sequência talvez mostre que, por mais que as coisas mudem para pior, há sempre a riqueza de uma cultura para iluminar tudo.

Festival de Brasília // Pernambucanos de olho no Candango

A 42ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começa hoje, com a pompa de sediar a primeira exibição pública do filme Lula, o filho do Brasil. Até o dia 24, seis longas e doze curtas-metragens concorrem ao troféu Candango, sinônimo de prestígio para os realizadores.

Afinal, falamos do mais antigo e um dos mais conceituados festivais do país. Quatro novos curtas pernambucanos estreiam no evento: Faço de mim o que quero, de Sérgio Oliveira e Petrônio Lorena, Azul, de Eric Laurence, Recife frio, de Kleber Mendonça Filho e Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante.

Juntos, eles correspondem a um terço dos filmes em competição, clara demonstração da força do cinema feito no estado. Laurence, que concorre pela primeira vez no festival, enxerga na situação favorável mais do que talento de seus realizadores. “É reflexo do apoio e incentivo que o cinema têm recebido em Pernambuco”, diz o cineasta.

Estrelado por Zezita Matos, Magdale Alves e Irandhir Santos, Azul é o terceiro curta de ficção dirigido por Laurence (Entre paredes), que também assume a montagem. Na equipe estão Antonio Luiz Mendes (fotografia), Isabella Cribari (produção executiva), Dantas Suassuna (direção de arte) e Carlinhos Borges (trilha sonora). Inspirado em conto de Luzilá Gonçalves (Uma doce maneira de ir morrendo), o roteiro gira em torno da solidão de uma mulher analfabeta que mora numa casa isolada e todos os dias procura uma amiga que lê a mesma carta, escrita pelo filho.

Se o curta de Laurence estabelece um locus existencial / ficcional (o cenário foi especialmente construído pela produção), Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante, se debruça nas possibilidades da interseção documentário / poesia. O filme utiliza a mesma estrutura de Ave Maria ou mãe dos oprimidos (2003), desta vez aplicada ao universo do Sertão, onde, às 18h, as rádios executam a música Ave Maria sertaneja, de Luiz Gonzaga.


Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante

“Diferente do anterior, que mostrava a quase resignação dos moradores do centro do Recife com Nossa Senhora, entre os sertanejos há uma relação mais íntima”, fala Camilo, duas vezes premiado em Brasília (por História da eternidade e O presidente dos Estados Unidos). Seu novo “filho” conta com fotografia de Beto Martins, som de Nicolas Hallet, edição de Caio Zad e produção de Stella Zimmermann.

Recife frio, do crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho (outro ganhador de Candangos por Vinil verde e Noite de sexta, manhã de sábado), parte da suposição de que a capital pernambucana passou por mudanças climáticas que inverteram a temperatura proporcionada pelo sol intenso. O plano inicial era simular um falso documentário, com depoimentos dos cidadãos que mudam hábitos para se adaptar às novas condições que tornaram o Recife, nas palavras do diretor, “um cenário de ficção científica”. Enxuta, a equipe é formada por Kleber, Emilie Lesclaux e Juliano Dornelles.

O universo da música brega é o mote de Faço de mim o que quero, parceria entre Petrônio Lorena (O som da luz e do trovão, 2004) e Sérgio Oliveira (Porcos corpos, 2003). Rodado em locações como a praia de Brasília Teimosa (entre Boa Viagem e o centro do Recife), o filme procura traduzir a cultura mais popular da capital ao acompanhar um carrinho de CDs que propaga o som de compositores do gênero, como o Conde do Brega, não por acaso, um dos personagens.

(Diario de Pernambuco, 17/11/09)