Novo longa de Geraldo Sarno estreia em Gramado

O último romance de Balzac, novo longa de Geraldo Sarno, é um dos selecionados para participar do 38º Festival de Cinema de Gramado.

O filme é baseado no livro O Avesso de um Balzac contemporâneo- Arqueologia de um pastiche, resultado de dez anos de estudo do psicólogo Osmar Ramos Filho sobre outro livro, Cristo espera por ti, ditado por Balzac ao médium Valdo Vieira. Em certo ponto do filme, há uma parte ficcional que adapta o romance A pele de Onagro (La peau de chagrin), escrito por Balzac em 1831.

O interesse pelo fazer cinematográfico / literário é o que move o diretor nos últimos anos. Sarno descreve o novo filme como um jogo de espelhos com diferentes níveis de leitura, criação e reinterpretação da obra de Balzac: primeiro, a partir do livro psicografado; depois, da pesquisa do psicólogo; e por fim, do próprio documentário.

Seu último anterior, Tudo isto me parece um sonho (2008), que investiga a “herança” deixada pelo general pernambucano José Ignácio de Abreu e Lima, gira especialmente em torno desse processo de reflexão / criação. Celebrado em Brasília com os prêmios de melhor roteiro e direção, o filme foi considerado pelo cineasta Carlos Reichenbach como “a maturidade política do documentário brasileiro”.

Após quase cinco décadas dedicadas à produção e educação, o premiado diretor de Viramundo (1964), Iaô (1973) e Delmiro Gouveia (1978) adota um discurso mais grave, que alerta produtores e patrocinadores do audiovisual para a necessidade de discutir linguagem e criação.

“Quando digo que nós perdemos, é porque essa questão, tão importante, é ao mesmo tempo inteiramente marginal, não comove ninguém, em nenhum país da América do Sul”.

A seguir, trechos de uma entrevista que fiz com Sarno em 2009, enquanto rodava O último romance de Balzac.

André Dib – Porque a opção por Balzac e a psicografia no novo filme?
Geraldo Sarno – O que mais me interessa é refletir sobre o processo de criação. Posso considerar o livro de Valdo Vieira como uma leitura de Balzac, uma interpretação da sua obra. O estudo científico de Osmar Ramos é uma segunda interpretação, a partir da análise do “pastiche”. Se nós, enquanto cinema, trazemos a figura histórica de Balzac e sua obra, no caso A pele de Onagro, citada no estudo de Osmar, fazemos também uma análise própria. São, no mínimo, três pontos de vista, mais o nosso – o do filme.

A relação entre palavra e imagem parece ser algo constante na sua carreira.
Estou tornando essa relação mais precisa agora. Um possível subtítulo para esse filme seria “a palavra e a imagem”. É sabido que o Balzac dava primazia à imagem, inclusive por sua aproximação da pintura. Tanto que o Osmar, a partir do livro psicografado, identifica um quadro do século 17, feito pelo pintor holandês Paul Potter, mais ou menos contemporâneo de Rembrandt. Osmar descobriu que quadro é esse, e faz uma análise entre a pintura e a A pele de Onagro, algo absolutamente original e nunca realizado por nenhum estudioso de Balzac.

Como entender o conceito de “protodocumentário”, que você utiliza em seu último filme? O “pastiche” ficcional reservado a Balzac seria algo semelhante?
Penso em A pele de Onagro como um “pastiche” do texto original, uma imagem para cada palavra, em diálogo com o romance. Diferente do filme Tudo isto me parece um sonho, onde existe um documentário dentro do documentário, que poderia ser entendido como um protodocumentário sobre a cana de açúcar. É um série de planos dispostos com elementos mais simples do tema: a plantação, o corte, a usina, uma série de planos com narração de um texto histórico do século 19, de Antonio Pedro Figueredo. Uma sequência básica, embrionária, quase que não manejada. Esteticamente, é a coisa mais linda que eu já fiz.

Entrevista completa aqui.

Dois mestres da criação cinematográfica

Os cineastas baianos Geraldo Sarno e Edgard Navarro estão às voltas com novos projetos. O primeiro está em campo com o documentário O último romance de Balzac, que debruça sobre a análise de um livro psicografado por Valdo Vieira e atribuído ao escritor francês.

Já Navarro acaba de rodar O homem que não dormia, ficção sobre o fantasma que assombra aqueles que procuram um tesouro por ele enterrado. É o segundo filme de longa duração de um diretor consagrado nos formatos curta e média metragem, como Super Outro (1989). Cada qual à sua maneira, os dois diretores vivem momentos importantes, para não dizer cruciais, de suas carreiras.

Rodado em maio na antiga vila de Igatu, na Chapada Diamantina, O homem que não dormia apresenta uma série de situações corriqueiras de uma pequena cidade do interior baiano. “É uma cidade pobre e de mentalidade estreita, que precisa sobreviver depois do ciclo do diamante, mas continua mantida sob um coronelismo que dita relações de dominação”, conta Navarro.

Prestes a completar 70 anos, é ele quem interpreta o Barão, que cem anos atrás, foi traído pela mulher e se perde na vida. “Os moradores de lá são assombrados pelo fantasma desse barão, que enterrou uma botija de ouro por ser avarento e mau. Agora ele sofre por isso e aparece no sonho das pessoas que querem desenterrar o tesouro”.

Orçado em R$ 4 milhões (60% captado), o longa tem direção de arte de Moacyr Gramacho (Deserto feliz e Eu me lembro, filme anterior de Navarro) e montagem do próprio diretor. A escolha por Igatu como locação tem a ver com seu aspecto inóspito e um tanto fantasmagórico.

“É um lugar que parou no tempo, com a cor, as pedras, as marcas do tempo preservadas. Uma cidade fantasma que convive com uma outra viva, com um povo que ignora completamente os fantasmas do passado. Aquilo me impressionou e vi que encontrei o lugar ideal para contar essa história”, diz Navarro.

Encontrado o cenário, entram em cena os personagens. O mais fofoqueiro se chama Pereba. “Ele quem faz o comentário burlesco, maldizente, dessa sociedade”, apresenta Navarro. “Outro personagem foi vítima da repressão militar e se tornou o louco da cidade, que consegue traduzir signos inconscientes. Seu nome é Pra Frente Brasil”. Outra figura importante é o filho do barão, rapaz sequelado e epilético, que vive no mato comendo insetos, lagartixas e “fala por solilóquios, vive acorrentado na cama pra não ficar aprontando”. “À exceção de Madalena, que é uma mulher feliz, que transa com quem gosta, que tem uma mente saudável, todos os outros são tarja preta”.

Com O homem que não dormia praticamente pronto, Navarro sente que se livrou de um peso que carregou por 30 anos. “A cruz agora é de isopor. Só vou curtir”.

Balzac – O novo doc de Sarno talvez seja o primeiro filme nacional a abordar de forma plena a obra de Honoré de Balzac (1799 – 1850), conhecido por ter escrito A comédia humana e A mulher de trinta anos.

O último romance de Balzac é baseado no livro O Avesso de um Balzac contemporâneo- Arqueologia de um pastiche, resultado de dez anos de estudo do psicólogo Osmar Ramos Filho sobre Cristo espera por ti, ditado ao médium Valdo Vieira pelo espírito de Balzac. As filmagens devem encerrar em setembro. Em certo ponto do filme, haverá uma parte ficcional, adaptação do romance A pele de Onagro (La peau de chagrin), escrito por Balzac em 1831.

Sarno descreve o novo filme como um jogo de espelhos com diferentes níveis de leitura, criação e reinterpretação da obra de Balzac: primeiro, a partir do livro psicografado; depois, da pesquisa do psicólogo; e por fim, do próprio documentário. O interesse pelo fazer cinematográfico / literário parece ser o que move o diretor nos últimos anos.

Tanto que seu último longa, Tudo isto me parece um sonho (2008), que investiga a “herança” deixada pelo general pernambucano José Ignácio de Abreu e Lima, gira especialmente em torno desse processo de reflexão / criação. Celebrado em Brasília com os prêmios de melhor roteiro e direção, o filme foi considerado pelo cineasta Carlos Reichenbach como “a maturidade política do documentário brasileiro”.

“Sarno fez um filme que celebra o exercício do pensamento. Para poucos sim, mas ninguém me convence que o cinema precise eternamente bajular o grande público e ficar subserviente à ditadura do borderô e da preguiça que faz evitar a reflexão. Tudo isso me parece um sonho pressupõe cultura política, fina informação, fé na liberdade e o prazer do debate (nunca do discurso e do proselitismo)”, depôs Reichenbach, em seu blog.

Diferente de Navarro, que afirma entrar numa fase artística mais amena, Sarno se mostra pessimista quanto aos caminhos do cinema praticado atualmente. Após quase cinco décadas dedicadas à produção e educação, o premiado diretor de Viramundo (1964), Iaô (1973) e Delmiro Gouveia (1978) adota um discurso mais grave, que alerta produtores e patrocinadores do audiovisual para a necessidade de discutir linguagem e criação.

“Quando digo que nós perdemos, é porque essa questão, tão importante, é ao mesmo tempo inteiramente marginal, não comove ninguém, em nenhum país da América do Sul. Os partidos políticos não estão interessados, políticas públicas idem”.

Para falar sobre seus novos filmes, suas inquietações e processos criativos, o Diario convidou Sarno e Navarro para as entrevistas a seguir. Com a palavra, dois mestres do cinema brasileiro.

* publicado no Diario de Pernambuco

Entrevista // Geraldo Sarno: "A questão é ousar a ponto de arriscar a não fazer mais nada depois disso"

Porque a opção por Balzac e a psicografia no novo filme?

O que mais me interessa é refletir sobre o processo de criação. Posso considerar o livro de Valdo Vieira como uma leitura de Balzac, uma interpretação da sua obra. O estudo científico de Osmar Ramos é uma segunda interpretação, a partir da análise do “pastiche”. Se nós, enquanto cinema, trazemos a figura histórica de Balzac e sua obra, no caso A pele de Onagro, citada no estudo de Osmar, fazemos também uma análise própria. São, no mínimo, três pontos de vista, mais o nosso – o do filme.

A relação entre palavra e imagem parece ser algo constante na sua carreira.

Estou tornando essa relação mais precisa agora. Um possível subtítulo para esse filme seria “a palavra e a imagem”. É sabido que o Balzac dava primazia à imagem, inclusive por sua aproximação da pintura. Tanto que o Osmar, a partir do livro psicografado, identifica um quadro do século 17, feito pelo pintor holandês Paul Potter, mais ou menos contemporâneo de Rembrandt. Osmar descobriu que quadro é esse, e faz uma análise entre a pintura e a A pele de Onagro, algo absolutamente original e nunca realizado por nenhum estudioso de Balzac.

Como entender o conceito de “protodocumentário”, que você utiliza em seu último filme? O “pastiche” ficcional reservado a Balzac seria algo semelhante?

Penso em “A pele de Onagro” como um “pastiche” do texto original, uma imagem para cada palavra, em diálogo com o romance. Diferente do filme “Tudo isto me parece um sonho”, onde existe um documentário dentro do documentário, que poderia ser entendido como um protodocumentário sobre a cana de açúcar. É uma série de planos dispostos com elementos mais simples do tema: a plantação, o corte, a usina, uma série de planos com narração de um texto histórico do século 19, de Antônio Pedro Figueredo. Uma sequência básica, embrionária, quase que não manejada. Esteticamente, é a coisa mais linda que eu já fiz.

Você classifica seus últimos filmes como “suicidas”. O que isso significa?

Essas coisas me vieram depois que fiz Tudo isto me parece um sonho. Eu o chamo de suicida por dois motivos. Primeiro, porque é um documentário com duas horas e meia de duração – o primeiro corte tinha quatro horas. Segundo, eu não sabia o que estava fazendo. Então o “suicídio” diz respeito a assumir riscos, de buscar formas diferentes de fazer filmes. Eu não sei me repetir, tenho que fazer algo que não sei fazer. Se eu não sei fazer, isso me instiga. Se eu soubesse o que é, eu não faria. Não é algo meramente estético, porque penso que certos parâmetros de criação são necessários. Digo isso dado o momento do audiovisual contemporâneo, pois tento trabalhar a partir de um marco social e histórico. A questão é ousar a ponto de arriscar não fazer nada mais depois disso. Pode dar certo, ou não, mas se não for assim, você vai fazer a mesma coisa que todo mundo está fazendo. O que termina por ser outra forma de suicídio.

Nos anos 60, você fez parte de um grupo que propôs um projeto de pensar o país através do cinema. Qual o balanço, cinquenta anos depois?

Se você pensar na obra de Glauber Rocha, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, que se realizam em universos de criação próprios, cada um à sua maneira, abordaram exatamente as mesmas grandes questões do Brasil. No mais, nunca houve esse projeto. Glauber Rocha disse que evitamos o debate estético por questões políticas. Agora, que passamos por uma grande pobreza estética, não temos mais embasamento para construir uma visão de mundo. E para isso não basta a mera visão política. Ela te leva para o tema, faz a análise correta, mas automaticamente não faz uma obra. Pois o que faz a obra é a linguagem, a maneira de fazer.