“Praia do Futuro”: crítica + entrevista

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Em fevereiro passado, a agenda de Karim Aïnouz esteve mais apertada do que o usual. O motivo se chama Praia do Futuro. Desde 2008, quando Tropa de elite ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, nenhum filme brasileiro havia sido selecionado para a competição oficial. Com lançamento comercial confirmado para 15 de maio, Praia do Futuro leva o ator Wagner Moura para a Alemanha, de forma bem diferente do trabalho que o revelou para o mundo.

Encontrei Karim dois dias depois do festival, em restaurante próximo de onde mora, no bairro de Neukölln, para conversar sobre o novo filme. Na última década, o diretor cearense dividiu seu tempo entre o Brasil e a Alemanha. Da experiência, nasceu essa obra sobre mistérios, fugas e recomeços. Recorrendo à mitologia do herói contemporâneo, os irmãos protagonistas Donato (Wagner Moura) e Ayrton (Jesuíta Barbosa) se aventuram em quadrantes vazios ou subaquáticos, sob os codinomes de Aquaman e Speed Racer.

O litoral nordestino e a capital da Alemanha parecem não ter nada em comum. Talvez como cenário do filme de ficção científica com o qual Karim flerta, entre moinhos eólicos nas dunas cearenses e a presença alienígena da torre de TV encravada no centro de Berlim, Alexanderplatz. Mais do que isso, guardam espaços e lacunas à espera de personagens, histórias e sentidos. Se a Praia do Futuro vive à sombra de um projeto desenvolvimentista abandonado, Berlim sobreviveu a duas guerras mundiais, ao nazismo, ao comunismo soviético e, agora, ao capitalismo que se apropria dos terrenos baldios gerados por tudo isso junto.

Como a cidade que escolheu para viver, dividida por um muro por quase 20 anos, Donato é apresentado como “um herói partido ao meio”. Impossível olhar para a foto escolhida para o cartaz e não lembrar do Capitão Nascimento, o emblemático personagem vivido por Wagner Moura. No entanto, as semelhanças param por aí. De pai de família e líder de um destacamento militar ultraviolento em Tropa de elite, o ator passa para imigrante que assume a homossexualidade do outro lado do mundo.

Como Karim ressalta na entrevista a seguir, é interessante observar essa inversão pelo viés político. Enquanto o próprio Wagner Moura pediu à imprensa do Festival de Berlim para que não tratasse a homossexualidade como uma questão, o filme o mostra em tórridas cenas de sexo gay. “Não sei o que vai acontecer. Vamos ver”, diz o cineasta.

No início de Praia do Futuro, encontramos Donato debaixo d’água, tentando salvar um banhista do afogamento. Esforço em vão – o bombeiro interpretado por Wagner Moura amarga a primeira vida perdida de sua carreira. No entanto, Konrad, o amigo da vítima, interpretado pelo alemão Clemens Schick, surge como paixão que arrebenta laços, certezas e outras acomodações.

De carona nesse sentimento, o filme é marcado por uma atmosfera de fascínio e estranhamento, própria do ponto de vista estrangeiro, mais ligado à leveza, à intuição e ao descompromisso do que à cartilha do cinema convencional.

Em termos práticos e econômicos, o filme é uma coprodução oficial Brasil/Alemanha (a primeira dentro de um novo acordo de cooperação estabelecido entre os dois países). No entanto, em sua essência, Praia do Futuro não tem lugar definido, ao menos, não geograficamente.

ibbBmH46mP48WLA beleza plástica, garantida pelo fotógrafo Ali Olay Gözkay, é mais um ponto forte. A luz, ora buscada em ambiente tropical, ora na neblina invernal do Mar do Norte alemão, torna o filme uma peça única na filmografia de Karim, que já trabalhou com Walter Carvalho em Madame Satã e O céu de Suely, Heloísa Passos, em Viajo porque preciso, volto porque te amo, e Mauro Pinheiro Jr., em Abismo prateado.

De origem turca e formação cinematográfica alemã, Ali acrescenta a esse trabalho uma experiência anterior marcada pela poesia e pelo existencialismo, o que lhe confere uma nova e poderosa dimensão. Por exemplo, na segunda sequência subaquática, feita em domo cilíndrico de 30 metros de altura e elevador panorâmico, um rigoroso movimento vertical seduz e confunde a percepção de tempo e espaço, dando início ao bloco mais intenso e dinâmico do longa.

Fazendo jus à fama de extrair ótimas performances dos atores, o diretor dessa vez foi além com Jesuíta Barbosa, talento premiado pelo papel do soldado Fininha, em Tatuagem, atualmente popularizado pelo trabalho na TV. No papel de irmão abandonado, Jesuíta cumpre a função de catalisar a trama.

Como nos quadrinhos de super-heróis, nos quais busca inspiração pop (além da boa trilha sonora, que inclui Heroes, de David Bowie),Praia do Futuro compõe um universo predominantemente masculino, em que as poucas mulheres são coadjuvantes (a colega de trabalho, a balconista) ou ausentes (a mãe). Por outro lado, ao contrário das aventuras de Aquaman e Speed Racer, em Praia do Futuronão existem vilões definidos. “Não acredito em vilões”, diz Karim. Se existem inimigos, eles são internos.

Entrevista // Karim Aïnouz: “precisamos de uma provocação politica para que o discurso avance”

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Donato abandonou tudo para viver em outro país. Quais são as motivações?

São milhões de razões, mas é importante não deixar claro o motivo da mudança. A falta de resposta pode causar frustração em parte do público, mas é preciso haver um lugar no cinema contemporâneo onde se possa imaginar, em vez de ter uma resposta clara. No caso do Donato, o que me interessa é mostrar um personagem que pertence a um lugar de maneira tão forte, que pra poder existir ele precisa se desenraizar completamente. Isso pra mim é uma questão central, no sentido psicológico, do personagem. Donato pertence muito àquela água, àquele pedaço de praia. Mas como salva-vidas, fica 80% do tempo olhando para o horizonte. Ele é um cara calado, não articula o que sente. Faz e depois tenta entender, de maneira atrapalhada. Mas como explicar por que se apaixona por alguém? São razões que não se pode articular.

Talvez essa seja uma das condições do imigrante.

É a condição de quem se desarvora de um lugar e enraíza em outro. Achei importante falar do desconforto de estar em algum lugar e como isso pode se resolver com a travessia, com a viagem. De como essa inquietude tem um preço.

Considerando a sua história, esta parece ser uma questão bastante pessoal.

Depois que vim para cá tive uma sensação muito próxima de quando morei na França. Lá eu era tratado como argelino, por isso fui embora, pois era algo que eu não sabia o que era. Depois fui fazendo as pazes, isso deixou de ser um problema para ser parte de mim. Em Berlim, o que me interessa é que eu não tenho lastro. O máximo que pode acontecer é alguém achar que eu sou turco, e fica por aí. Aqui sou um completo estrangeiro, estou em outro lugar do mundo. Para quem procura sensação de casa pode parecer estranho, mas tenho a noção de que esta é uma cidade que nunca vai me pertencer. Não sei até quando isso vai me inspirar, mas hoje é algo que me dá muito prazer.

Quais os prós e contras em trabalhar no sistema de coprodução?

Realizamos algo que nunca foi feito antes, que envolve mecanismos precisos e complexos. Por outro lado, é sempre bom contar com o olhar critico lançado de ambos os lados. Quero fazer de novo, mas da próxima seria bom contar com um agente de vendas desde a largada, observando o que pode funcionar em cada pais. Em “Praia”, a Match Factory entrou depois do filme pronto.

Como Wagner Moura entrou para o projeto? O fato de ele ter sido o Capitão Nascimento influenciou em algo?

Tenho vontade de trabalhar com ele desde “Abril Despedaçado”, onde eu fui roteirista. Mas não tinha surgido um papel em que ele fizesse sentido. Quando “Praia” começou a tomar forma ele já era um ator famoso. E surgiu a excitação de tirar um personagem de contexto e colocar em outro, completamente diferente. Claro que não foi por conta da bilheteria de “Tropa de Elite”, seria muito ingênuo da minha parte. Criar esse “ruído” foi bonito e muito produtivo, pois precisamos de uma provocação politica para que o discurso avance.

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A dinâmica do filme fica mais intensa na parte final, quando entre Jesuíta Barbosa. 

Fiz isso de propósito, ate certo ponto há uma construção clássica, um personagem que não se define, outro sem curvas dramáticas. No momento em que Jesuíta entra com um registro de interpretação completamente diferente, ele assume função de vetor dramático. Pra você ter uma ideia, o coloquei para fazer boxe por quatro meses.

Este é seu primeiro trabalho com o fotógrafo turco Ali Olay Gözkaya. Como isso influenciou a parte criativa?

Estamos construindo uma colaboração. Ele admira Fassbinder como eu, temos um filme em comum, “O medo devora a alma” e a partir daí encontramos uma série de coincidências, como a vontade de trabalhar com melodrama. O que foi bonito no trabalho do Ali e que, enquanto eu estava no caminho de certo naturalismo, ele foi buscar um registro próprio para o filme. Foi um dialogo complexo, que começou bem mas no processo passou por atritos, com ele buscando algo mais formal enquanto eu queria a impureza. Ali foi formado na Escola de Berlim, onde a precisão é tanta que filmar um ator e uma cadeira parece a mesma coisa. É um projeto de dramaturgia que eu não dou conta, me interesso por outras coisas. Não estou acostumado com o rigor, costumo buscar o erro, o acidente cinematográfico. Brigamos muito, sempre com o objetivo de chegar a um lugar que faça sentido para o filme.

O que você considera um acidente cinematográfico?

E quando não tem aposta clara de cena, ou um plano definido. No “Praia” tem uma cena toda vermelha, com os personagens dançando. Ali quis fazer em tripé e eu disse a ele: “sem chance”. Levaria mais de um mês para desenhar aquela cena e entrar no modo de produção Kubrick, o que não era o nosso caso. A busca pelo acidente foi colocar os personagens naquela situação e ver como eles descobrem a ação. E fazer isso foi complicado, pois Ali aposta em cenas muito precisas e eu acho que as vezes eh preciso um certo frescor ao ato de filmar, que eh também o ato de documentar.

Por outro lado você trabalhou com uma preparadora de elenco, a Fatima Toledo, o que demonstra algum desejo de controle.

Pelo contrário, ela fez uma preparação para o descontrole, de deixar o ator em carne viva, cansar o ator para ele ficar a flor da pele e não pensar muito. Isso deixa o ator zerado, desconstruído. E quando se trabalha com uma mise-en-scène predefinida e colocamos um ator, ele ate pode sair de quadro, mas não há o que ser descoberto visualmente, em termos de espaço. Por isso nossa decupagem foi planejada, mas a movimentação dos atores, não.

(Revista Continente, maio de 2014)

Maeve Jinkings: “Observar animais me inspira profundamente”

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A estrela de Maeve Jinkings brilha mais do que nunca. Ela, que estreou no cinema dirigida por Carlos Reichenbach, atua em importantes filmes da recente safra pernambucana, um deles, o indicado brasileiro ao Oscar. Não bastasse, acaba de ter o seu trabalho reconhecido em um dos festivais mais conceituados do país. Antes de se mudar para o Recife, viveu em Brasília, Belém e São Paulo. Entre os novos projetos estão atuações em “Loja de Répteis”, curta de Pedro Severien e “Seu Cavalcanti”, curta de Leonardo Lacca. Além disso, ela se lança como preparadora de elenco em “Sem Coração”, de Tião e Nara Normande. Leia mais na entrevista a seguir.

Seu primeiro prêmio como atriz veio em Brasília, sua terra natal. É possível descrever o que significou essa noite?

Foi muito bonito porque é o festival que mais admiro, o mais antigo e mais político do país, não consigo imaginar prestígio maior. Falei isso no palco, que levava muita gente dentro do peito. Em milésimos de segundo passa um filme na cabeça, sobre as dificuldades de ser ator no Brasil. Mas afinal, estava ali celebrando nosso ofício, no meio de pessoas que admiro. Além disso, Brasília foi o lugar onde estreei meu primeiro filme, “Falsa Loura”, de Carlos Reichenbach, que foi uma espécie de pai. Ele me pariu no cinema. O prêmio também foi importante pra minha família, que às vezes tem dificuldade de entender minhas escolhas, mas que sempre me apoia muito. Meu pai mora na cidade e adorou mostrar o candango para os amigos dele (risos). Foi lindo dar essa felicidade a eles.

Seu trabalho em “Amor, plástico e barulho” confere profundidade dramática na representação de artistas do brega. Como foi o processo para chegar à Jaqueline?

Do ponto de vista dramático, até aquele momento foi a personagem mais exigente que já tive a chance de viver. Então estudei muito, como nunca havia feito. Foi sem dúvida um amadurecimento em meu processo de trabalho. Além de todo nosso estudo com Amanda Gabriel, fiz aulas de canto com Pedro Martins e aulas de dança com o elenco. Mas tinha um elemento que me preocupava, a relação de Jaqueline com o álcool. Como tratar disso com humanidade, sem cair em clichês? Fui conversar com mulheres dos Alcóolicos Anônimos e do Narcóticos Anônimos, que me contaram detalhes de suas vidas, do impulso autodestrutivo, de suas lutas contra si mesmas. Também me ajudou muito a proximidade com a cantora Michelle Melo, que foi supergenerosa me levando a seus shows, trocando torpedos e emails, me dando um acesso muito pessoal ao universo da mulher no brega. Os personagens nascem aí, nessa ponte com pessoas, inclusive com a gente mesmo enquanto ser no mundo. Tudo isso se mistura e se torna depoimento no corpo do filme.

Que qualidades específicas o cinema exige na ação dramática? Que exemplos ou referências te inspiram?

Se deixar afetar. Se deixar afetar pelo mundo, pelas pessoas. Gente é bicho, então biológica e culturalmente tentamos esconder nossas fragilidades, pois isso nos deixa vulneráveis. O ator precisa ser forte o suficiente pra estar completamente sem defesa para os vetores que afetam o homem no mundo. Ao mesmo tempo em que, como artista, consciente desses vetores, perceber qual a melhor forma de desenhar isso no corpo e na subjetividade do personagem. Muitos colegas me inspiram, mas o que mais me inspira é observar as pessoas. Observar meus próprios comportamentos. Observar animais me inspira profundamente.

Qual a relação entre o trabalho feito em “Falsa Loura” com o tudo que veio depois?

Continuo fazendo um cinema muito autoral, com pessoas apaixonadas. Houve um período de quatro anos entre “Falsa Loura” e “O Som ao Redor”. Nesse período fiz muito teatro de grupo, um pouquinho de TV, mas acho que o mais importante foi ser a fase da minha vida onde mais me preocupei em pensar as minhas escolhas, em como penso o oficio do ator, a condição solitária do artista e de que forma quero lidar com isso.

O que trabalhar nos filmes pernambucanos acrescentou em sua percepção sobre cinema?

Posso dizer que, de certa forma, o cinema pernambucano me formou como atriz de cinema. Tem sido uma segunda faculdade: na prática, com escolhas que ficam eternizadas. Porém mais do que atriz, o cinema de Pernambuco me afeta como cinéfila, como agente do cinema. Tive a sorte de chegar aqui e conhecer uma galera que pensa o cinema de forma muito ativa, dialogando com o que está sendo feito no mundo.

Você estudou comunicação e quando criança queria ser veterinária. Quando surgiu a vontade de ser atriz?

Eu era ainda criança, aos dez anos. Não lembro exatamente quando isso surgiu, mas provavelmente surgiu na relação com cinema e TV, pois em Belém não havia um movimento muito forte de teatro. Gosto de pensar que sou atriz para ser um tipo de bióloga, antropóloga, musicista, desenhista, fotografa… Tudo que me provocou durante a vida, mas que por alguma razão não realizei profissionalmente. Aí juntei tudo num só ofício, o do ator, pois isso tudo continua me movendo no trabalho que faço.

Como lida com a possibilidade de “O Som ao Redor” ser indicado ao Oscar?

Honestamente, tenho crises de riso. Pode ser nervosismo, ou simplesmente a imagem de Kleber Mendonça andando sobre o tapete vermelho usando um smoking cheio de flashes. Pode ser bobo de minha parte, mas acho muito engraçada essa imagem. Fora isso, fico muito feliz (já estou), porque dá outra camada de visibilidade pro filme, que foi feito sem contar com essa possibilidade de promoção.

Em Brasília, dos dez prêmios concedidos a filmes pernambucanos, três foram para atrizes: Maeve Jinkings, Nash Laila e Rita Carelli. Como vê esse reconhecimento?

Vejo como sintoma da sintonia das equipes. Vejo sempre o trabalho do ator como o ingrediente final e sutil de uma química que precisa dar “a liga”. Às vezes assisto filmes com roteiro, fotografia e direção de arte incríveis. Mas se o ator não está bem, toda a magia desaparece e começo a “ver” a maquinaria atrás da câmera. Estamos todos amadurecendo juntos, produzindo mais e nos desenvolvendo a cada novo trabalho. E isso acontece em todas as funções. Também tenho a sensação de que estamos conseguindo fazer um trabalho colaborativo onde o ator tem espaço para, dentro dos limites de seu ofício, propor mais dentro do set. Uma relação onde nos sentimos parte do processo e assim podemos ousar mais no nosso depoimento como artistas do corpo.

Uma sequência feliz de acontecimentos tem marcado a sua carreira. Quais os planos para o futuro?

Penso que todos esses acontecimentos são fruto de uma tentativa sincera de autoescuta, de escolhas cuidadosas, porém difíceis e às vezes dolorosas. Também há o ingrediente da sorte. Os planos são continuar observando o que, honestamente, me move a cada momento. O que faz sentido. E torcer para que belos encontros aconteçam no meio disso.

(Revista Continente, novembro de 2013)

Oiticica: “O celular é o Super 8 de hoje, portátil e barato”

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“H.O.” (1979), de Ivan Cardoso

Duplamente premiado no último Festival de Berlim, o documentário “Hélio Oiticica” precisa ser visto não só por fazer um painel de um dos maiores artistas brasileiros, como de sua época. O panorama é dos mais interessantes: a contracultura do final dos anos 1960 e dos dez anos seguintes. De forma aparentemente caótica, certamente livre e talvez involuntária, o sobrinho de Oiticica (1937-1980), o diretor César Oiticica Filho, nos leva a refletir sobre como estamos longe da arte revolucionária desejada e experimentada pelo tio e seus comparsas: Glauber Rocha, Jards Macalé, Júlio Bressane, Neville D’Almeida e Andreas Valentin.

É como mirar para o outro lado de um abismo. Citações passam por Eisenstein, Jimi Hendrix, Chacrinha e outros nomes cuja influência pode ser identificada na arte contemporânea, só que de forma pulverizada.

“Hélio Oiticica” é uma obra em primeira pessoa, sem depoimentos atuais com glorificações ou maledicências sobre o artista. Sua narrativa é baseada principalmente nas dezenas de horas com gravações de áudio feitas pelo tio, habilmente costuradas por César a diversos outros documentos, dando unidade a um mosaico de sons e imagens. O diretor vai além e produz imagens ele mesmo, em diferentes formatos e suportes, analógicos e digitais. O filme flui.

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Como escreve Júlio Bressane no livro “Cinemancia”, adaptar para o cinema é traduzir palavras em luz. Assim, o filme absorve com propriedade a verve anarquista e febril de Oiticica, para quem vida e obra era uma coisa só. “Passo a me conhecer através do que eu faço. Que na realidade eu não sei o que eu sou. Se eu já soubesse o que seriam essas coisas, não seriam mais invenção”, disse, em uma das gravações. Bressane, aliás, está presente em entrevista feita por Hélio enquanto morava em Nova York e também em cenas de seu filme “Lágrima Pantera, A Míssil”, em que este atua.

A trilha sonora é outro ponto forte. Dos sambas do carnaval carioca à pérolas do tropicalismo, há espaço para o histórico concerto de Jimi Hendrix na Ilha de Wight e um novo arranjo para “You don’t know me”, feito por Jards Macalé, produtor artístico da versão original cantada por Caetano Veloso no álbum “Transa” (1972).

Assim como o personagem, o filme resvala na completa falta de modéstia, sem que isso seja um problema. Pelo contrário, ao alinhar uma crítica de Glauber ao tropicalismo com pensamentos de Oiticica sobre o tema e a própria obra, surge em comum aos dois artistas a consciência da própria genialidade e a necessidade de interpretar a própria obra, antes que
outros o fizessem de maneira equivocada ou indesejável. Em grande parte, é exatamente isso o que César faz em seu filme.

Eleito melhor documentário do último Festival do Rio, “Hélio Oiticica” foi exibido quatro vezes na Berlinale, em sessões lotadas. Além disso, o festival alemão exibiu os filmes de Hélio em Super 8 e as instalações “Cosmococa” foram montadas no Liquid Room, com a presença de Neville D’Almeida e Thomas Valentin, parceiros de Hélio na obra.

No Cinema Arsenal (instituto que guarda mais de 8 mil títulos do cinema mundial e vai distribuir “Hélio Oiticica” na Alemanha), em entrevista pouco antes do anúncio de que o filme ganharia o prêmio da crítica internacional (Fipresci) e o Caligari Film Prize, concedido a obras inovadoras, César Oiticica Filho falou à Revista Continente.

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O filme consegue atingir uma interessante unidade visual e sonora, um resultado bastante orgânico, que concilia as bitolas analógicas e digitais.

Foi difícil chegar nisso, principalmente por conta do som, que não ajudou muito. Ele funciona em camadas, tem o som direto, a trilha original e a pós-produção. Boa parte dele serviu de guia para as imagens. Procuramos usar bastante Super 8, mas não fugimos do 35mm e digital. Não quis ficar no saudosismo. Consegui fazer com a câmera do celular coisas que não se faz com uma profissional.

E cada ferramenta teve sua utilidade. Por exemplo, a sequência dos parangolés eu refiz com Super 8. O filme do Hélio, “Devolver a terra à terra” (1979), usamos mesmo cheio de fungos e o resultado ficou muito interessante. De outro só restaram seis slides, que fotografei 20 vezes cada com uma lente macro de celular e depois animei. Na sequência final, utilizo steadycam indo para adentrar um bólide (estrutura tridimensional projetada pelo artista). Foi um steadycam de telefone, equipamento que custa 150 dólares. Uma das propostas do filme foi não se fechar a nada, fazer essa brincadeira entre linguagens e formatos.

Isso soa coerente com a própria obra do Hélio Oiticica. Você deu ao filme o nome dele por conta disso, para que sua proposta se confunda com o personagem?

Ele já teve dois subtítulos. Um era “Delirium Ambulatorium”, que é a prática dele, explicada no filme. Mas ficou melhor quando troquei para “You don’t know me”, música que coloquei no lugar de “Simpathy for the devil”, dos Rolling Stones. Tem tudo a ver com o personagem, pois no máximo 1% da população brasileira conhece Hélio Oiticica. É um absurdo, como se a Holanda não conhecesse o Van Gogh. Mas para não correr o risco do subtítulo virar título, o nome do filme ficou só o nome dele. Ele falava que o cinema é um instrumento, então que seja um instrumento para apresentar ele para o Brasil. Para o mundo, mas principalmente para o Brasil, que precisa conhecer Hélio Oiticica.

Teu filme é em parte manifestação do artista, uma forma dele estar presente hoje. Ao mesmo tempo é uma obra sua, uma aliança criativa entre César e Hélio, mistura talvez impossível de separar.

Procuramos não apenas reproduzir, mas desenvolver alguns conceitos dele, principalmente ligados ao cinema. Por um lado apresentamos a sua obra; por outro, para onde ela vai hoje, onde ela pode chegar. Não busquei o que ele poderia estar fazendo, pois isso é impossível de saber. Fiz o que todos poderiam fazer, mostrar para onde vai o seu trabalho, que é uma proposição. É a minha contribuição à obra dele, o meu delirium ambulatorium.

Ao assistir ao documentário, é inevitável perceber um abismo cultural entre a realidade dos
anos 1970 e a atual. Você acha que a ditadura militar teve influência na ousadia dos artistas
daquele tempo?

Eles foram totalmente transgressivos numa época em que isso era bem mais difícil de ser feito. E hoje, que podemos fazer, o mundo da arte é a coisa mais careta do mundo. Se existe um trabalho com sexo e drogas, as pessoas não falam, mas você sente que é um problema. Antes de morrer, em 1980, Hélio percebendo essa involução e disse que, segundo Glauber, nos últimos oito anos, as artes plásticas regrediram um século. Proporcionalmente hoje seriam dois mil anos. Existem coisas bacanas, mas a lógica do consumo não permite que elas se desenvolvam.

Mesmo tendo passado por duas guerras, a Alemanha se mostra exemplar na preservação de
arquivo cinematográfico. Como o Brasil poderia ser melhor nesse sentido?

A memória do audiovisual brasileiro parcialmente preservada, mas muito já se perdeu ou está apodrecendo agora, enquanto conversamos. No Museu de Arte Moderna, nas cinematecas, arquivos nacionais, está tudo acabando. O acesso é outro problema. Na Cinemateca Brasileira, por exemplo, pesquisadores são barrados. Precisamos tomar uma posição.

Você deixou de incluir algo no filme por conta disso?

Queria ter usado imagens de “Mudança de Hendrix”, de Rogério Sganzerla, que dizem estar em restauro na Cinemateca e a própria família disse que não consegue acessar. É um absurdo. A burocracia é outro problema. Quando você inscreve um documentário em edital tem que entregar um roteiro, o que é uma loucura. Quem exige isso não sabe como se faz um documentário. Entre um edital e outro, o filme levou dez anos para ficar pronto. Artista não é prefeitura para entrar em edital. Dizem que é para não ficar na subjetividade, mas no final é tudo um jogo de comadres, que liberam R$ 14 milhões do dinheiro público pra fazer um filme que fica um mês nos cinemas e vira minissérie da Globo. E enquanto estamos pagando produtos da Globo, tem uma fila de artistas esperando para filmar.

Além de cineasta, você tem carreira como fotógrafo. Está mais para o cinema ou as artes
visuais?

Estou muito feliz de estar no cinema. “Hélio Oiticica” foi feito por uma produtora pequena, com pouco dinheiro e sem distribuidor. Veja a seriedade do cinema: estamos apenas no terceiro festival e, se você faz algo bom, é reconhecido. Nas artes visuais não é bem assim. Se você não tem galeria, não existe. Por isso, eu prefiro não existir.

Qual será o seu próximo projeto?

Quero fazer o meu próximo filme no sistema multiplataforma, crowdfunding, um projeto coletivo em que várias pessoas mandam imagens. O nome será “O Ataque”.

* viagem realizada com o apoio do Ministério de Relações Exteriores da República Federal da Alemanha / Consulado da Alemanha no Recife.

(Revista Continente, abril de 2013)

Entrevista // Alan Oliveira: “Mais do que fazer cinema, sempre tive o desejo de me comunicar”

Alan Oliveira e Rubens Pássaro, diretores de “Di Melo – o imorrível”, pouco antes da sessão no Festival de Gramado (Foto: Itamar Aguiar/Pressphoto)

Antes de estudar física, o pernambucano Alan Oliveira queria ser jogador de futebol. Cisma do destino, ao fazer cinema, viveu emoções parecidas a estar em um estádio lotado. Seu  terceiro curta, o documentário “Di Melo – o imorrível” (codirigido pelo paulista Rubens Pássaro), é também o maior sucesso de sua carreira. Entre os novos projetos está “O princípio da incerteza”, incursão experimental em que concilia sua prática no cinema e uma interessante teoria da física, que estuda a relação entre observador e objeto como redefinidora de ambas as partes. Em agosto, ele participou da competição do 40º Festival de Gramado, onde respondeu a entrevista a seguir.

Qual a importância de estar no Festival de Gramado?
Poderia ser o ponto alto, mas vejo que a fase dos festivais está chegando ao fim. Em abril de 2013 começa um contrato de um ano com o Canal Brasil, que comprou os direitos de exibição do curta no último Cine PE. Este é o melhor prêmio, porque não é uma cosia que você guarda na estante. É mostrar o filme para as pessoas, dar a ele uma sobrevida.

Sessão lotada no Cine PE foi muito bonita. Como foi a experiência?
Ali tivemos noção do poder do filme. Fiquei assombrado, pois na adolescência queria ser jogador e estar ali foi como fazer um gol em um estádio de futebol lotado, com gritos, urros. Até agora foi a sessão mais forte do filme.

“Di Melo – o imorrível” estreou em julho de 2011, em Garanhuns. Foi um bom começo? Fale um pouco da carreira do filme.
Tem a ver com a história do filme, pois foi onde Di melo voltou aos palcos, em 2009. Inclusive filmamos esse show, como parte da pesquisa. Já na estreia a reação ao filme foi surpreendente, conseguimos lotar o cinema, Di melo estava lá, teve debate. Nesse dia tive a noção do poder do filme, antes até da exibição, quando Daniel Leite, que finalizou o curta em 35mm, durante o teste falou que os técnicos do laboratório piraram, que eles assistem filmes o dia todo e dificilmente param para ver ou comentar. Na sequência estivemos no Festival de Triunfo, Play The Movie, Janela Internacional de Cinema do Recife e mais cinco festivais antes do Cine PE, que gerou repercussão nacional. Em Guarnicê (MA) fomos eleitos pelo júri oficial e popular. Depois teve o In Edit, Cine Vitrine e Festival de Gramado.

O filme é uma produção Pernambuco / São Paulo, tudo a ver com a história do personagem.
Sim, o filme é uma co-produção, uma mistura de dois olhares. Da minha parte, começou antes, quando captei imagens para fazer um videoclipe para a faixa “Conformópolis”, que acabamos usando no curta. Mas o filme tem uma atmosfera pop que é de Rubens, sozinho jamais conseguiria imprimir.

Cena de “Di Melo – o imorrível”

Como você “descobriu” o Di Melo?
Conheci seu disco 2002, quando a EMI relançou antigos títulos de vinil em CD, selecionados por Charles Gavin. Na primeira leva estava o álbum do Di Melo, de 1975. Ouvi numa festa, baixei o disco, até que fui atrás descobrir quem é esse cara. Encontrei algumas informações falsas, de proporções míticas, que diziam que ele foi backing vocal de Tim Maia, que havia gravado nos EUA, que tinha morrido.

Como surgiu a vontade de fazer um curta sobre ele?
Em 2009 dei uma de detetive e numa madrugada descobri seu email e telefone numa comunidade da internet. Liguei e o próprio Di Melo atendeu. Fui a São Paulo e o que era para ser um encontro de 15 minutos foi até as 3 horas da manhã. Nesse dia, em um estúdio mambembe, ele me contou que Rubens queria fazer um filme sobre ele. Só que Rubens estava com dificuldades e quase desistindo. Disse que tinha uma pesquisa e poderia repassar, achei isso generoso e pensei nele como parceiro.

O que Di Melo achou do filme?
Ele acha sensacional, mas seu gosto variou muito. No começo ficamos na dúvida. Mostramos a ele um pouco antes da estreia e ele disse que é bom. Foi pra casa e no outro dia, às 7 da manhã, a mulher dele ligou e disse que ele não dormiu, escreveu uma carta enorme, disse que o filme destrói a imagem dele. Antes de mostrar a ela, disse que o compromisso que tenho com Di Melo é artístico, não publicitário. Que o objetivo não é exaltar o Di Melo, mas o ser humano e suas contradições. Se fosse propaganda, tenho certeza de que não teria o mesmo efeito. Ela assistiu e disse que estava tudo bem. Depois ele explicou que fez aquilo porque tinha brigado com a mulher e queria envolver ela com o filme. Em Garanhuns, ele se entusiasmou e se apropriou do filme, fez uma cópia pirata com capa bizarra e vende a R$ 25, junto com seu disco de vinil.

O filme se aproxima dos personagens com bastante intimidade. Como começou essa relação?
Di Melo gosta de receber pessoas, oferecer café, jantar, convida para dormir. Fiz isso várias vezes antes de começar a filmar, foi uma convivência grande. Conheci o cotidiano da casa. A única coisa que fizemos foi, além de eu e Rubens, inserir a equipe ali. Isso foi construído numa tentativa de sociabilidade, de construir um processo no qual a equipe existe, altera e participa da ação. Nada de mosca na parede. Assumimos a deformação.

O “episódio da cueca” é um momento engraçado e controvertido do filme. Houve conflito ético, no sentido de expor ou preservar a intimidade do casal?
Discutimos uma vez, mas o dilema não durou muito tempo. O filme tenta traduzir quem é essa figura anárquica, humana. O caso mostra a figura meio engraçada e bufonesca que ele é, decodifica o personagem. E como quem conta o caso é a própria mulher, que não se mostra ressentida com isso, todos se identificam.

Fale um pouco sobre a sua formação. Por que cinema?
Sou de família de não-artistas, minha mãe é dona de casa e meu pai, vendedor. Minha formação é completamente televisiva. Mais do que fazer cinema, sempre tive o desejo de me comunicar. Isso me fez uma pessoa curiosa e com 17 anos me interessei por ciências, estudei física. Já gostava de ir ao cinema, mas não pensava em realizar, para mim era coisa de gente rica. Sou do subúrbio, levei tempo para ter videocassete em casa. Estudar física exigia uma dedicação e abdicação que não tinha a ver comigo, queria me comunicar, dizer o que penso.

Em 2004, meu colega Elias Mouret comprou uma câmera e escrevi um roteiro. Rodamos o curta “Diptara”, nome científico da mosca, exercício de linguagem com câmera subjetiva, do ponto de vista de alguém à espreita de uma mulher. Conheci Camilo Cavalcante, de quem me tornei assistente de direção. Depois rodei outro curta, “Fé sem nome”, sobre uma menina desconhecida enterrada no cemitério de Santo Amaro. Quando veio “Di Melo”, já tinha outro projeto que ficou para agora, “O princípio da incerteza”.

Do que se trata esse projeto?
A ideia é morar 30 dias com Zé Bizerra, um caçador do Vale do Catimbau que se tornou artista após ter um sonho. Quero aprender a fazer esculturas e ensinar ele a usar a câmera. O Princípio da Incerteza de Heisenberg diz que em todo fenômeno existe um grau de incerteza intrínseco. Por exemplo, emitir um fóton para medir a velocidade de um elétron altera a velocidade e posição do elétron. Ou seja, não existe a coisa em si, mas o processo de interação. Este princípio da física também está nas ciências sociais e no próprio documentário.

Homenageado do dia no Cine PE, Fernando Meirelles diz que seus filmes são sempre uma “ação entre amigos”

Poucos filmes foram tão influentes quanto Cidade de Deus. Antes dele, seria possível imaginar Carandiru ou Tropa de Elite? O filme é tão importante para o cinema nacional quanto para o diretor Fernando Meirelles. O sucesso obtido com o longa abriu caminho para uma carreira internacional que inclui o privilégio de adaptar um romance de José Saramago e dirigir atores como Anthony Hopkins, Jude Law e Rachel Weisz, estrelas de 360, sua mais nova produção.

Na noite de hoje, Fernando Meirelles recebe homenagem do Cine PE, tanto pelo conjunto da obra quanto pelos dez anos de Cidade de Deus. Na ocasião, será exibido um teaser de documentário de Cavi Borges e Luciano Vidigal, em produção no Rio de Janeiro, sobre o destino dos atores de CDD. Além disso, na próxima terça-feira às 17h será exibido o longa Xingu, de Cao Hamburguer, com produção da O2 de Meirelles. A O2, é bom lembrar, assina filmes como Vips, José e Pilar, À deriva e Lixo Extraordinário.

Enquanto 360 não chega aos cinemas, Meirelles toca à frente seu novo longa, Nemesis, que conta a história do milionário Aristóteles Onassis e tem o ator Michael Fassbender (Shame) cotado para o papel de Bobby Kennedy. Além disso, ele participa de um novo projeto chamado Rio, eu te amo, onde dirigirá um dos episódios, ao lado de gente como Guillermo Arriaga (de Babel) e José Padilha (Tropa de Elite). A produção é de Emmanuel Benbihy, que já fez o mesmo nas cidades de Paris e Nova York.

Em entrevista ao Diario, Meirelles coloca a carreira em perspectiva e aproveita para desabafar sobre a recente aprovação do novo código florestal. Ele faz parte da Campanha Floresta Faz a Diferença, que defende a preservação. “Aqueles deputados aloprados não fazem ideia do desastre que vão causar ao país”. A seguir, a entrevista.

Cidade de Deus abordou a violência urbana de uma maneira nunca vista no cinema nacional. Você pretende retornar a esse universo?
Acho que CDD falou de uma área de violência no Brasil mas não de forma violenta. Não há sangue espirrando ou nenhuma imagem de violência gráfica e isso não foi por acaso. Não gosto de filmes onde tenho que desviar o olho da tela. De qualquer maneira, de pois de CDD, da série para TV Cidade dos Homens, acho que minha cota deste tema já foi cumprida.

Dez anos depois, como você avalia a importância de Cidade de Deus para a carreira?
Foi um divisor de águas, evidentemente. Houve ali um encontro de tema, talentos e circunstâncias tão felizes que me pergunto se algum dia terei a mesma sorte na vida, de estar na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas e uma fome de bola do tamanho do mundo.

Cavi e Luciano produzem documentário sobre o destino dos atores de CDD. Como você vê esse projeto?
Tenho tentado ajudá-los extra-oficialmente, na medida do possível. Não quis me envolver na produção para que não virasse um filme meio chapa-branca. Eles têm que ser independentes para poderem montar a visão deles do processo do filme.

Após três produções internacionais, em que mudou sua maneira de trabalhar?
Tecnicamente acho que não houve grandes mudanças. Quando rodei CDD já era bastante rodado em sets. Mas sinto que hoje estou muito mais esperto para ler roteiros e conseguir compreender, ao mesmo tempo, a estrutura, a qualidade dos diálogos, a consistência dos personagens, ver os arcos dramáticos. A experiência tem algum valor afinal.

Quais os prós e contras de filmar fora do Brasil?
Os contras são não poder filmar em português, não estar falando da minhas raízes e ficar tanto tempo longe de casa. Os prós são a facilidade de financiamento, a distribuição mundial, a possibilidade de trabalhar com atores e técnicos que admiro e poder ter feitos muitos bons amigos, em muitos países. Me sinto em casa em muitos lugares deste nosso planeta. Gosto disso.

São muitas as exigências ao lidar com produtoras estrangeiras? Há restrições criativas?
Nunca aceitei convites para fazer filmes de estúdio norte-americanos justamente para não ter que lidar com pressões que vêm de fora do núcleo que está fazendo o projeto. Os filmes internacionais que fiz foram todos produções independentes, controlados criativamente pelo pequeno grupo que os fez. É sempre uma ação entre amigos. Valorizo imensamente as relações pessoais no trabalho, a vida é muito curta para ser de outra maneira.

Houve certa expectativa de que 360 fosse uma das atrações do Cine PE, já que você é um dos homenageados. Qual o plano para o filme?Houve mesmo, quando o lançamento estava programado para maio. Como 360 será lançado só em meados de agosto, a Paris Filmes (distribuidora) resolveu segurar a cópia. Achei uma pena. Mas pena mesmo estou sentido do Brasil, após a aprovação do patético Código Florestal proposto e apoiado pelo PMDB. A devastação que vem no rastro dos que assinaram é sem precedentes no país, e os efeitos serão mais arrasadores que o terremoto do Japão, em 2010. Por este efeito vir aos poucos, ninguém se dá conta. Me desculpa sair do assunto, mas está duro de absorver o golpe.

(Diario de Pernambuco, 28/04/2012)