Em fevereiro passado, a agenda de Karim Aïnouz esteve mais apertada do que o usual. O motivo se chama Praia do Futuro. Desde 2008, quando Tropa de elite ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, nenhum filme brasileiro havia sido selecionado para a competição oficial. Com lançamento comercial confirmado para 15 de maio, Praia do Futuro leva o ator Wagner Moura para a Alemanha, de forma bem diferente do trabalho que o revelou para o mundo.
Encontrei Karim dois dias depois do festival, em restaurante próximo de onde mora, no bairro de Neukölln, para conversar sobre o novo filme. Na última década, o diretor cearense dividiu seu tempo entre o Brasil e a Alemanha. Da experiência, nasceu essa obra sobre mistérios, fugas e recomeços. Recorrendo à mitologia do herói contemporâneo, os irmãos protagonistas Donato (Wagner Moura) e Ayrton (Jesuíta Barbosa) se aventuram em quadrantes vazios ou subaquáticos, sob os codinomes de Aquaman e Speed Racer.
O litoral nordestino e a capital da Alemanha parecem não ter nada em comum. Talvez como cenário do filme de ficção científica com o qual Karim flerta, entre moinhos eólicos nas dunas cearenses e a presença alienígena da torre de TV encravada no centro de Berlim, Alexanderplatz. Mais do que isso, guardam espaços e lacunas à espera de personagens, histórias e sentidos. Se a Praia do Futuro vive à sombra de um projeto desenvolvimentista abandonado, Berlim sobreviveu a duas guerras mundiais, ao nazismo, ao comunismo soviético e, agora, ao capitalismo que se apropria dos terrenos baldios gerados por tudo isso junto.
Como a cidade que escolheu para viver, dividida por um muro por quase 20 anos, Donato é apresentado como “um herói partido ao meio”. Impossível olhar para a foto escolhida para o cartaz e não lembrar do Capitão Nascimento, o emblemático personagem vivido por Wagner Moura. No entanto, as semelhanças param por aí. De pai de família e líder de um destacamento militar ultraviolento em Tropa de elite, o ator passa para imigrante que assume a homossexualidade do outro lado do mundo.
Como Karim ressalta na entrevista a seguir, é interessante observar essa inversão pelo viés político. Enquanto o próprio Wagner Moura pediu à imprensa do Festival de Berlim para que não tratasse a homossexualidade como uma questão, o filme o mostra em tórridas cenas de sexo gay. “Não sei o que vai acontecer. Vamos ver”, diz o cineasta.
No início de Praia do Futuro, encontramos Donato debaixo d’água, tentando salvar um banhista do afogamento. Esforço em vão – o bombeiro interpretado por Wagner Moura amarga a primeira vida perdida de sua carreira. No entanto, Konrad, o amigo da vítima, interpretado pelo alemão Clemens Schick, surge como paixão que arrebenta laços, certezas e outras acomodações.
De carona nesse sentimento, o filme é marcado por uma atmosfera de fascínio e estranhamento, própria do ponto de vista estrangeiro, mais ligado à leveza, à intuição e ao descompromisso do que à cartilha do cinema convencional.
Em termos práticos e econômicos, o filme é uma coprodução oficial Brasil/Alemanha (a primeira dentro de um novo acordo de cooperação estabelecido entre os dois países). No entanto, em sua essência, Praia do Futuro não tem lugar definido, ao menos, não geograficamente.
A beleza plástica, garantida pelo fotógrafo Ali Olay Gözkay, é mais um ponto forte. A luz, ora buscada em ambiente tropical, ora na neblina invernal do Mar do Norte alemão, torna o filme uma peça única na filmografia de Karim, que já trabalhou com Walter Carvalho em Madame Satã e O céu de Suely, Heloísa Passos, em Viajo porque preciso, volto porque te amo, e Mauro Pinheiro Jr., em Abismo prateado.
De origem turca e formação cinematográfica alemã, Ali acrescenta a esse trabalho uma experiência anterior marcada pela poesia e pelo existencialismo, o que lhe confere uma nova e poderosa dimensão. Por exemplo, na segunda sequência subaquática, feita em domo cilíndrico de 30 metros de altura e elevador panorâmico, um rigoroso movimento vertical seduz e confunde a percepção de tempo e espaço, dando início ao bloco mais intenso e dinâmico do longa.
Fazendo jus à fama de extrair ótimas performances dos atores, o diretor dessa vez foi além com Jesuíta Barbosa, talento premiado pelo papel do soldado Fininha, em Tatuagem, atualmente popularizado pelo trabalho na TV. No papel de irmão abandonado, Jesuíta cumpre a função de catalisar a trama.
Como nos quadrinhos de super-heróis, nos quais busca inspiração pop (além da boa trilha sonora, que inclui Heroes, de David Bowie),Praia do Futuro compõe um universo predominantemente masculino, em que as poucas mulheres são coadjuvantes (a colega de trabalho, a balconista) ou ausentes (a mãe). Por outro lado, ao contrário das aventuras de Aquaman e Speed Racer, em Praia do Futuronão existem vilões definidos. “Não acredito em vilões”, diz Karim. Se existem inimigos, eles são internos.
Entrevista // Karim Aïnouz: “precisamos de uma provocação politica para que o discurso avance”
Donato abandonou tudo para viver em outro país. Quais são as motivações?
São milhões de razões, mas é importante não deixar claro o motivo da mudança. A falta de resposta pode causar frustração em parte do público, mas é preciso haver um lugar no cinema contemporâneo onde se possa imaginar, em vez de ter uma resposta clara. No caso do Donato, o que me interessa é mostrar um personagem que pertence a um lugar de maneira tão forte, que pra poder existir ele precisa se desenraizar completamente. Isso pra mim é uma questão central, no sentido psicológico, do personagem. Donato pertence muito àquela água, àquele pedaço de praia. Mas como salva-vidas, fica 80% do tempo olhando para o horizonte. Ele é um cara calado, não articula o que sente. Faz e depois tenta entender, de maneira atrapalhada. Mas como explicar por que se apaixona por alguém? São razões que não se pode articular.
Talvez essa seja uma das condições do imigrante.
É a condição de quem se desarvora de um lugar e enraíza em outro. Achei importante falar do desconforto de estar em algum lugar e como isso pode se resolver com a travessia, com a viagem. De como essa inquietude tem um preço.
Considerando a sua história, esta parece ser uma questão bastante pessoal.
Depois que vim para cá tive uma sensação muito próxima de quando morei na França. Lá eu era tratado como argelino, por isso fui embora, pois era algo que eu não sabia o que era. Depois fui fazendo as pazes, isso deixou de ser um problema para ser parte de mim. Em Berlim, o que me interessa é que eu não tenho lastro. O máximo que pode acontecer é alguém achar que eu sou turco, e fica por aí. Aqui sou um completo estrangeiro, estou em outro lugar do mundo. Para quem procura sensação de casa pode parecer estranho, mas tenho a noção de que esta é uma cidade que nunca vai me pertencer. Não sei até quando isso vai me inspirar, mas hoje é algo que me dá muito prazer.
Quais os prós e contras em trabalhar no sistema de coprodução?
Realizamos algo que nunca foi feito antes, que envolve mecanismos precisos e complexos. Por outro lado, é sempre bom contar com o olhar critico lançado de ambos os lados. Quero fazer de novo, mas da próxima seria bom contar com um agente de vendas desde a largada, observando o que pode funcionar em cada pais. Em “Praia”, a Match Factory entrou depois do filme pronto.
Como Wagner Moura entrou para o projeto? O fato de ele ter sido o Capitão Nascimento influenciou em algo?
Tenho vontade de trabalhar com ele desde “Abril Despedaçado”, onde eu fui roteirista. Mas não tinha surgido um papel em que ele fizesse sentido. Quando “Praia” começou a tomar forma ele já era um ator famoso. E surgiu a excitação de tirar um personagem de contexto e colocar em outro, completamente diferente. Claro que não foi por conta da bilheteria de “Tropa de Elite”, seria muito ingênuo da minha parte. Criar esse “ruído” foi bonito e muito produtivo, pois precisamos de uma provocação politica para que o discurso avance.
A dinâmica do filme fica mais intensa na parte final, quando entre Jesuíta Barbosa.
Fiz isso de propósito, ate certo ponto há uma construção clássica, um personagem que não se define, outro sem curvas dramáticas. No momento em que Jesuíta entra com um registro de interpretação completamente diferente, ele assume função de vetor dramático. Pra você ter uma ideia, o coloquei para fazer boxe por quatro meses.
Este é seu primeiro trabalho com o fotógrafo turco Ali Olay Gözkaya. Como isso influenciou a parte criativa?
Estamos construindo uma colaboração. Ele admira Fassbinder como eu, temos um filme em comum, “O medo devora a alma” e a partir daí encontramos uma série de coincidências, como a vontade de trabalhar com melodrama. O que foi bonito no trabalho do Ali e que, enquanto eu estava no caminho de certo naturalismo, ele foi buscar um registro próprio para o filme. Foi um dialogo complexo, que começou bem mas no processo passou por atritos, com ele buscando algo mais formal enquanto eu queria a impureza. Ali foi formado na Escola de Berlim, onde a precisão é tanta que filmar um ator e uma cadeira parece a mesma coisa. É um projeto de dramaturgia que eu não dou conta, me interesso por outras coisas. Não estou acostumado com o rigor, costumo buscar o erro, o acidente cinematográfico. Brigamos muito, sempre com o objetivo de chegar a um lugar que faça sentido para o filme.
O que você considera um acidente cinematográfico?
E quando não tem aposta clara de cena, ou um plano definido. No “Praia” tem uma cena toda vermelha, com os personagens dançando. Ali quis fazer em tripé e eu disse a ele: “sem chance”. Levaria mais de um mês para desenhar aquela cena e entrar no modo de produção Kubrick, o que não era o nosso caso. A busca pelo acidente foi colocar os personagens naquela situação e ver como eles descobrem a ação. E fazer isso foi complicado, pois Ali aposta em cenas muito precisas e eu acho que as vezes eh preciso um certo frescor ao ato de filmar, que eh também o ato de documentar.
Por outro lado você trabalhou com uma preparadora de elenco, a Fatima Toledo, o que demonstra algum desejo de controle.
Pelo contrário, ela fez uma preparação para o descontrole, de deixar o ator em carne viva, cansar o ator para ele ficar a flor da pele e não pensar muito. Isso deixa o ator zerado, desconstruído. E quando se trabalha com uma mise-en-scène predefinida e colocamos um ator, ele ate pode sair de quadro, mas não há o que ser descoberto visualmente, em termos de espaço. Por isso nossa decupagem foi planejada, mas a movimentação dos atores, não.
(Revista Continente, maio de 2014)