Com o Recife ao redor

Após percorrer o mundo, “O Som ao Redor” retorna à cidade que o inspirou e serviu de cenário. A sessão especial será hoje à noite, às 20h30, na supertela de 250 metros quadrados do Vivo Open Air, instalada, melhor impossível, entre as Torres Gêmeas e as ruas de classe-média da Zona Sul.

Quem já viu o filme sabe que o poderoso condomínio residencial poderia ser uma das locações do primeiro longa de ficção de Kleber Mendonça Filho. Não é, mas está em seu escopo. Assim como qualquer quadrante de bairros como Boa Viagem, Graças ou Casa Forte.

A segurança pública e privada nas grandes cidades é tema recorrente, mas pouco se fala sobre sua origem, a herança colonial brasileira, e sobre as pequenas violências domésticas, que de tão incorporadas ao cotidiano, se tornaram invisíveis. “O Som ao Redor” toca nessas feridas, que seguem incomodando sob anestésicos como uma nova TV de 50 polegadas.

Não vou me alongar sobre o filme, já o fiz durante o festival de Gramado, onde estreou em agosto passado (leia matéria completa aqui).

Ao já dito, acrescento que “O Som ao Redor” deve ser visto não por ter sido rodado em Pernambuco, mas porque é cinema da melhor qualidade. Não por acaso, é o filme nacional mais premiado e de maior circulação no mundo em 2012. Nada mais justo que ele seja visto em casa nas melhores condições, como as que agora se apresentam.

Entrevista // Alan Oliveira: “Mais do que fazer cinema, sempre tive o desejo de me comunicar”

Alan Oliveira e Rubens Pássaro, diretores de “Di Melo – o imorrível”, pouco antes da sessão no Festival de Gramado (Foto: Itamar Aguiar/Pressphoto)

Antes de estudar física, o pernambucano Alan Oliveira queria ser jogador de futebol. Cisma do destino, ao fazer cinema, viveu emoções parecidas a estar em um estádio lotado. Seu  terceiro curta, o documentário “Di Melo – o imorrível” (codirigido pelo paulista Rubens Pássaro), é também o maior sucesso de sua carreira. Entre os novos projetos está “O princípio da incerteza”, incursão experimental em que concilia sua prática no cinema e uma interessante teoria da física, que estuda a relação entre observador e objeto como redefinidora de ambas as partes. Em agosto, ele participou da competição do 40º Festival de Gramado, onde respondeu a entrevista a seguir.

Qual a importância de estar no Festival de Gramado?
Poderia ser o ponto alto, mas vejo que a fase dos festivais está chegando ao fim. Em abril de 2013 começa um contrato de um ano com o Canal Brasil, que comprou os direitos de exibição do curta no último Cine PE. Este é o melhor prêmio, porque não é uma cosia que você guarda na estante. É mostrar o filme para as pessoas, dar a ele uma sobrevida.

Sessão lotada no Cine PE foi muito bonita. Como foi a experiência?
Ali tivemos noção do poder do filme. Fiquei assombrado, pois na adolescência queria ser jogador e estar ali foi como fazer um gol em um estádio de futebol lotado, com gritos, urros. Até agora foi a sessão mais forte do filme.

“Di Melo – o imorrível” estreou em julho de 2011, em Garanhuns. Foi um bom começo? Fale um pouco da carreira do filme.
Tem a ver com a história do filme, pois foi onde Di melo voltou aos palcos, em 2009. Inclusive filmamos esse show, como parte da pesquisa. Já na estreia a reação ao filme foi surpreendente, conseguimos lotar o cinema, Di melo estava lá, teve debate. Nesse dia tive a noção do poder do filme, antes até da exibição, quando Daniel Leite, que finalizou o curta em 35mm, durante o teste falou que os técnicos do laboratório piraram, que eles assistem filmes o dia todo e dificilmente param para ver ou comentar. Na sequência estivemos no Festival de Triunfo, Play The Movie, Janela Internacional de Cinema do Recife e mais cinco festivais antes do Cine PE, que gerou repercussão nacional. Em Guarnicê (MA) fomos eleitos pelo júri oficial e popular. Depois teve o In Edit, Cine Vitrine e Festival de Gramado.

O filme é uma produção Pernambuco / São Paulo, tudo a ver com a história do personagem.
Sim, o filme é uma co-produção, uma mistura de dois olhares. Da minha parte, começou antes, quando captei imagens para fazer um videoclipe para a faixa “Conformópolis”, que acabamos usando no curta. Mas o filme tem uma atmosfera pop que é de Rubens, sozinho jamais conseguiria imprimir.

Cena de “Di Melo – o imorrível”

Como você “descobriu” o Di Melo?
Conheci seu disco 2002, quando a EMI relançou antigos títulos de vinil em CD, selecionados por Charles Gavin. Na primeira leva estava o álbum do Di Melo, de 1975. Ouvi numa festa, baixei o disco, até que fui atrás descobrir quem é esse cara. Encontrei algumas informações falsas, de proporções míticas, que diziam que ele foi backing vocal de Tim Maia, que havia gravado nos EUA, que tinha morrido.

Como surgiu a vontade de fazer um curta sobre ele?
Em 2009 dei uma de detetive e numa madrugada descobri seu email e telefone numa comunidade da internet. Liguei e o próprio Di Melo atendeu. Fui a São Paulo e o que era para ser um encontro de 15 minutos foi até as 3 horas da manhã. Nesse dia, em um estúdio mambembe, ele me contou que Rubens queria fazer um filme sobre ele. Só que Rubens estava com dificuldades e quase desistindo. Disse que tinha uma pesquisa e poderia repassar, achei isso generoso e pensei nele como parceiro.

O que Di Melo achou do filme?
Ele acha sensacional, mas seu gosto variou muito. No começo ficamos na dúvida. Mostramos a ele um pouco antes da estreia e ele disse que é bom. Foi pra casa e no outro dia, às 7 da manhã, a mulher dele ligou e disse que ele não dormiu, escreveu uma carta enorme, disse que o filme destrói a imagem dele. Antes de mostrar a ela, disse que o compromisso que tenho com Di Melo é artístico, não publicitário. Que o objetivo não é exaltar o Di Melo, mas o ser humano e suas contradições. Se fosse propaganda, tenho certeza de que não teria o mesmo efeito. Ela assistiu e disse que estava tudo bem. Depois ele explicou que fez aquilo porque tinha brigado com a mulher e queria envolver ela com o filme. Em Garanhuns, ele se entusiasmou e se apropriou do filme, fez uma cópia pirata com capa bizarra e vende a R$ 25, junto com seu disco de vinil.

O filme se aproxima dos personagens com bastante intimidade. Como começou essa relação?
Di Melo gosta de receber pessoas, oferecer café, jantar, convida para dormir. Fiz isso várias vezes antes de começar a filmar, foi uma convivência grande. Conheci o cotidiano da casa. A única coisa que fizemos foi, além de eu e Rubens, inserir a equipe ali. Isso foi construído numa tentativa de sociabilidade, de construir um processo no qual a equipe existe, altera e participa da ação. Nada de mosca na parede. Assumimos a deformação.

O “episódio da cueca” é um momento engraçado e controvertido do filme. Houve conflito ético, no sentido de expor ou preservar a intimidade do casal?
Discutimos uma vez, mas o dilema não durou muito tempo. O filme tenta traduzir quem é essa figura anárquica, humana. O caso mostra a figura meio engraçada e bufonesca que ele é, decodifica o personagem. E como quem conta o caso é a própria mulher, que não se mostra ressentida com isso, todos se identificam.

Fale um pouco sobre a sua formação. Por que cinema?
Sou de família de não-artistas, minha mãe é dona de casa e meu pai, vendedor. Minha formação é completamente televisiva. Mais do que fazer cinema, sempre tive o desejo de me comunicar. Isso me fez uma pessoa curiosa e com 17 anos me interessei por ciências, estudei física. Já gostava de ir ao cinema, mas não pensava em realizar, para mim era coisa de gente rica. Sou do subúrbio, levei tempo para ter videocassete em casa. Estudar física exigia uma dedicação e abdicação que não tinha a ver comigo, queria me comunicar, dizer o que penso.

Em 2004, meu colega Elias Mouret comprou uma câmera e escrevi um roteiro. Rodamos o curta “Diptara”, nome científico da mosca, exercício de linguagem com câmera subjetiva, do ponto de vista de alguém à espreita de uma mulher. Conheci Camilo Cavalcante, de quem me tornei assistente de direção. Depois rodei outro curta, “Fé sem nome”, sobre uma menina desconhecida enterrada no cemitério de Santo Amaro. Quando veio “Di Melo”, já tinha outro projeto que ficou para agora, “O princípio da incerteza”.

Do que se trata esse projeto?
A ideia é morar 30 dias com Zé Bizerra, um caçador do Vale do Catimbau que se tornou artista após ter um sonho. Quero aprender a fazer esculturas e ensinar ele a usar a câmera. O Princípio da Incerteza de Heisenberg diz que em todo fenômeno existe um grau de incerteza intrínseco. Por exemplo, emitir um fóton para medir a velocidade de um elétron altera a velocidade e posição do elétron. Ou seja, não existe a coisa em si, mas o processo de interação. Este princípio da física também está nas ciências sociais e no próprio documentário.

Curtas revelam talento e desencanto de uma nova geração de realizadores

“A mão que afaga”: clima de pesadelo

São Paulo – De um universo de quase 400 títulos do 23º Festival Internacional de Curtas, assisti pouco mais de trinta. Recomendo alguns, em parte já assistidos no Festival de Gramado. Entre os melhores, estão filmes que apontam, com recursos do cinema fantástico, de terror e outros gêneros, para mazelas sociais, imperfeições afetivas e o que há de sombrio e angustiante na alma humana. Seriam eles um sintoma, a tradução de uma época pessimista e descrente de discursos emancipadores? A refletir.

O evento promovido pela Associação Kinoforum é o maior festival de curtas na América Latina e durante oito dias se tornou um grande ponto de encontro. Entre os convidados estava Charles Tesson, diretor da Semana da Crítica de Cannes, que trouxe para São Paulo uma amostra do evento deste ano, entre os filmes, o paulista “O duplo”, de Juliana Rojas.

“O duplo”, de Juliana Rojas, estreou em Cannes

Ano passado, Rojas dirigiu com Marco Dutra o longa “Trabalhar cansa”, instigante incursão nas amarguras da classe média utilizando como interlocutor o cinema de suspense e terror. Desdobramentos sobrenaturais destoam dos filmes brasileiros que abordam questões sociais, normalmente ancoradas no realismo.

Em “O duplo”, Juliana vai além e insere cenas de violência explícita e carnal. No curta, uma professora do ensino fundamental fica perturbada ao encontrar seu doppel gänger (em alemão, duplo maldito) na escola onde trabalha. Mais do que o resultado sangrento, interessa o exame do comportamento humano a tensão construída entre o suspense e rompantes de medo.

Em uma atmosfera de estranhamento e incômodo espiritual parecida se sustenta o curta “A mão que afaga”, de Gabriela Almeida. Prêmio especial do júri em Gramado, nele, uma operadora de telemarketing promove festa de aniversário para o filho. Decoração retrô e luzes chapadas e laterais remetem a um lugar situado nas profundezas da alma da mãe, abandonado (ou onde ela ficou) desde a própria infância.

“Menino do cinco”: representação precisa do impasse social brasileiro

Estranhamente ausente do Kinoforum, outra obra a explorar o lado sombrio do universo infantil: a produção baiana “O menino do cinco”, de Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira. Filme mais premiado do Festival de Gramado, trata-se de uma história a princípio inocente – a disputa de um cachorrinho por dois garotos – um que vive solto na praça e outro, isolado no condomínio em frente. Mas sua narrativa quase convencional mostra a que veio quando, em construção de menos de 20 minutos, o curta sintetiza em uma única cena o impasse social das cidades brasileiras. E este é apenas o filme de estreia dos diretores.

“Odete” foi destaque no festival de Oberhausen

Premiado em Oberhausen (Alemanha), “Odete”, de Clarissa Campolina, Luís Pretti e Ivo Lopes de Araújo, trata de um assunto delicado. A despeito de qualquer cobrança social imposta às mães, temos aqui uma genitora que, no leito de morte, se despede da filha após uma vida de ausência, confessando não ter sido capaz de amá-la. Imagens distorcem lindamente luz e sombra, dura e insustentável poesia. Bela parceria entre as produtoras Teia (de Minas) e Alumbramento (Ceará).

Outro ponto a ser considerado é que o rigor estético, busca em comum alcançada com mérito por todos os curtas aqui apresentados, contradiz o desencanto que evocam. Para além do reconhecimento artístico, nas necessidades que justificam a beleza e melancolia residem o maior trunfo destas obras.

“O Som ao Redor” é o longa nacional mais premiado do 40º Festival de Gramado

Kleber Mendonça e a produtora Emilie Lesclaux (ao centro) comemoram premiação com atores Lula Terra e Maeve Jinkings (foto: Itamar Aguiar/Pressphoto)

A produção pernambucana “O Som ao Redor” é o longa-metragem nacional mais premiado do Festival de Gramado. E também um dos melhores filmes da temporada. Em cerimônia realizada na noite de sábado (18 de agosto), a ficção de Kleber Mendonça Filho foi eleita pelo júri oficial nas categorias melhor direção e melhor desenho de som e pelo júri da crítica e júri popular como o melhor filme do festival. Foi pouco.

O Kikito principal foi para o longa “Colegas”, um filme curioso, mas que não acrescenta ou traz nada de extraordinário, sobre três portadores de Síndrome de Down que fogem do internato para uma aventura de dimensões cinéfilas. Exibido no contexto de uma seleção forte, com filmes que olham para as tensões sociais e subjetivas do homem contemporâneo (para citar apenas dois, o longa “O que se move”, de Caetano Gotardo e o curta “O menino dos cinco”, de Marcelo Matos e Walace Nogueira), é no mínimo estranho premiar uma peça colorida e esperançosa, marcada pelo humor pseudo-incorreto que tende ao pastelão.

“Colegas” é engraçado e tem certa importância, que se torna pífia se comparado à de “O Som ao Redor”, um filme necessário não só por falar grande como cinema, mas por escancarar a crueldade e os descaminhos arquitetônico e social das grandes cidades. Sensorialmente instigante, o filme traz para a consciência um inferno sonoro e visual, que de tão presente e opessor, tende a se tornar imperceptível. Para isso, ele parte de uma observação implacável de uma realidade específica, a da classe média-alta recifense, para recriar com excelência de som e imagem o pesadelo urbano da vida contemporânea.

João (Gustavo Jahn) e Sofia (Irma Brown), em cena do filme “O som ao redor” (foto: Víctor Jucá)

Estreia – Após décadas de cinefilia, exercício da crítica e realização de curta-metragens, Kleber Mendonça acumulou repertório e referências que são apenas o ponto de partida para um impressionante e radicalmente pessoal longa de estreia. “O som ao redor” estabelece um ponto de vista particular e sem concessões, não só por denunciar o que há de doentio na convivênciahumana dos grandes centros, mas porque parte da história do próprio diretor: para se ter uma ideia, o cenário é a rua onde ele mora (no bairro de Setúbal) e uma das locações, o seu apartamento; a rua onde cresceu, em Casa Forte, também está no filme, por sua vez dedicado à sua mãe, autora de um estudo sobre a permanência de costumes servis após a abolição da escravatura.

No campo da filosofia, “O som ao redor” evoca Etienne de La Boetie (“Discurso da Servidão Voluntária”), Jacques Rousseau (“Quem se crê senhor dos outros é ainda mais escravo do que eles”, em “Contrato social”) e Wilhelm Reich (“Alguma coisa, bem escondida, atua contínua e eficazmente desviando a atenção daquilo que deveria ser focalizado… e a armadilha é a estrutura emocional do homem, sua estrutura de caráter”, em “O assassinato de Cristo”). No filme, isso se traduz, por exemplo, na postura senhoral dos mais ricos com relação a empregadas domésticas e demais trabalhadores.

Ao mesmo tempo em que retrata uma realidade particular, o filme traduz o sentimento coletivo de mal-estar, tensão e medo vividos por moradores das grandes cidades. Em termos estéticos, estamos na mesma esfera habitada por Michael Haneke, Lars Von Trier e Stanley Kubrick, eminentes estudiosos do comportamento humano. Só que não estamos na Inglaterra, Áustria ou na Lua, mas no Recife e seus arrebaldes.

Ali vive um grupo de cidadãos, uma pequena malha que, para existir, usa a vigilância e a fofoca como instrumentos de controle. Metade dos imóveis da rua tem dono, um coronel interpretado com brio pelo ator paraibano WJ Solha. O filme inicia após uma festa no apartamento de João (Gustavo Jahn), que termina com saldo positivo para ele e Sofia (Irma Brown), até que descobrem que o carro dela foi arrombado; na manhã seguinte, um grupo de seguranças particulares liderado por Irandhir Santos oferece proteção aos moradores.

A segurança pública e privada nas grandes cidades é tema recorrente, mas pouco se fala sobre sua origem, a herança colonial brasileira, e sobre as pequenas violências domésticas, que de tão incorporadas ao cotidiano, se tornaram invisíveis. “O Som ao Redor” toca nessas feridas, que seguem incomodando, ainda que sob efeito de anestésicos como uma nova TV de 50 polegadas.

Kleber Mendonça e Mônica Kanitz, presidente da Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), que concedeu a “O som ao redor” o prêmio da crítica (foto:Edison Vara/Pressphoto).

Gramado – “O Som ao Redor” chega ao Brasil quase um ano depois de ter sido rejeitado pelo Festival de Brasília, situação que, no fim, acabou beneficiando o filme, que logo depois foi selecionado pelo Festival de Roterdã, na Holanda. Foi o começo de uma bem sucedida carreira internacional, que inclui 15 festivais e vários prêmios. Ironia do destino, o longa será exibido em Brasília no mês que vem, fora de concurso. A estreia comercial no país ainda não está definida, mas Sílvia Cruz, da distribuidora Vitrine Filmes cogita o mês de novembro como uma possibilidade.

Em sua primeira exibição em solo nacional, “O Som ao redor” arrebatou opiniões da imprensa especializada. Nem mesmo um grave problema na projeção, que interrompeu a sessão aos 100 minutos por falha do alto-falante central, causou prejuízos ao filme, que foi reexibido no dia seguinte, com aplausos ao final das duas sessões.

Para o crítico paulista Luiz Zanin, “é um dos títulos importantes do atual cinema de ficção brasileiro, um dos filmes que serão discutidos daqui para frente”. Rodrigo Fonseca, de O Globo, escreveu que o filme levou “a mostra competitiva de cinema de Gramado a um terreno instável do risco e da potência”.

Na próxima sexta (24 de agosto), “O Som ao Redor” entra em cartaz em Nova York. Em matéria no New York Times, Larry Rother escreve que “Neighboring Sounds” (título internacional) promove “uma colisão entre passado e futuro em um presente fluido e inquieto” e tem “um olhar exuberante e vibrante, de acordo com o cenário tropical e um sutil e sofisticado desenho de som”.

Na coletiva de imprensa, o interesse dos jornalistas que lotaram a sala se tornou outro termômetro da relevância de “O Som ao Redor”. Não faltaram elogios e comparações com grandes obras e autores do cinema mundial. Por cerca de uma hora, Kleber Mendonça falou sobre diferentes temas. Leia os melhores momentos a seguir.

O som como personagem

O som foi fruto do trabalho de uma equipe excelente, que comparo com uma equipe de basquete, onde todo mundo tem que ser bom. A concepção sonora vem muito da minha percepção das cidades, que eu ouço muito. Cada uma tem sons específicos, São Paulo, por exemplo, tem um som doente e interessantíssimo, já o Recife envolve isso com o litoral e muito verde.

Política e Racismo

O Brasil nega, mas é um país muito racista. Sou filho de uma historiadora que estudou o momento em que escravidão foi abolida no Brasil. Ela viu que nada foi feito para receber a população de libertos e como isso reflete na forma de nos relacionar com essa classe e seus descendentes. Creio que por isso, diferente de países da Europa, a relação entre empregados e patrões é em parte profissional e, por outra, afetiva. temos empregados que são meio mãe, irmão, quase parentes. Mas sabemos que eles não são e isso é complicado, pois cria um meio termo muito confuso.

Por outro lado, como observador da nossa sociedade, percebo que houve mudança na maneira como as classes mais baixas ganharam um pouco mais de respeito. Isso é algo diferente, que me interessa muito e acho que está no filme.

Setúbal como locação

Moro naquela rua há muito tempo e desde 1990 fotografo e filmo aquele lugar. “Eletrodoméstica”, “Enjaulado”, “Vinil verde” foram rodados lá. Considero Setúbal um bairro completamente desinteressante que está sendo demolido, virou um canteiro de obras sem nenhuma ordem estética e, apesar de agora estar sendo muio valorizado, por conta dos investimentos no litoral sul, é um bairro sem personalidade, um não-lugar, similar a uma loja de conveniência. Isso me interessa, pois ali existem pessoas, e onde há o elemento humano, há histórias.

Referências

Aceito todas as referências que possam surgir em quem assistir ao filme, mas tenho as minhas próprias. O cineasta que mais esteve na minha cabeça é John Carpenter e Elia Suleman, este úlimo por filmar em em ângulos retos, recurso que Michael Haneke também usa. “Caché” é um filme muito forte sobre a França contemporânea e talvez faça parte do universo desse filme. Uma observação precisa veio de um crítico norte-americano apaixonado por cinema brasileiro, que viu na sequência de fotos inicial uma relação com “Cabra marcado para morrer”.

Crítica social e cinema de gênero

“O som ao redor” é um filme sobre a sociedade moderna ocidental – o Recife é apenas o ponto de partida. Quando comecei a escrever o roteiro estava claro de que seria um filme de realismo social, mas que teria outro aspecto muito claro, que é o cinema que fotografa o terror e o medo, pois no Brasil somos treinados pra isso. Ele chega no western e no filme de terror, sem nunca cruzar a linha. Talvez pisa nesses lugares e volta ao realismo social.

Outro filme que me identifico nesse sentido é “Trabalhar cansa”, de Marco Dutra e Juliana Rojas. Quando assisti imediatamente pensei que ele é um irmão de “O som ao redor”, bem diferente, mas com a mesma preocupação. Mas os filmes que eu mais percebo que tem uma conexão, quase como um jogral, é a própria produção pernambucana. Quem for ao Festival de Brasília vai ver um filme que gosto muito, “Doméstica”, de Gabriel Mascaro, que tem muito a ver com o meu filme. Outro em Brasília é “Boa sorte, meu amor”, de Daniel Aragão. São três filmes que triangulam sensações, idéias e desconfortos. Isso é muito bonito pois são filmes independentes que se completam deforma instigante e estimulante.

Menino-aranha

Há alguns anos surgiu no Recife surgiu a lenda urbana do menino-aranha, um garoto que escalava prédios para fazer pequenos furtos ou pelo prazer de entrar em lugares altos e foi assassinado a 300 metros de onde eu moro. Mariana Lacerda já fez um filme sobre ele e eu quis incluir esse personagem de maneira misteriosa. É um pesadelo da classe média ter seu espaco invadido, acho que todos nós já sentimos isso.

(Publicado no portal Cinema Pernambucano – http://www.cinemapernambucano.com.br)

Festival de Gramado: “360”, de Fernando Meirelles

Meirelles, noite de sexta (10/8), minutos antes da exibição. Foto: Edison Vara/Pressphoto

Em “360”, Fernando Meirelles apresenta métodos e temas que já vinha desenvolvendo em sua carreira internacional. Seu novo longa pode ser visto como uma continuidade de “Ensaio sobre a cegueira” (2008) e “O jardineiro fiel” (2005). São três obras que convergem para um cinema global e conectado ao século 21 – ou aquilo que nele projetamos.

Sua narrativa reticente, cada vez mais distante da linguagem estabelecida em “Domésticas” (2001) e “Cidade de Deus” (2002), é composta por imagens em que pessoas não raro aparecem multiplicadas ou fatiadas em jogos de espelhos e vidraças. Elas se encontram em carros, aeroportos e quartos de hotel, tradução para o que o filme acredita ser a atual condição humana.

Com estréia prevista para a próxima sexta-feira (17/8), “360” conta com atores conhecidos e talentosos, como Anthony Hopkins, Jude Law e Rachel Weisz, que contracenam com nomes brasileiros (Maria Flor e Juliano Cazaré) e de outras partes do mundo. O roteiro escrito por Peter Morgan (de “Frost/Nixon”, “A Rainha” e “Além da Vida”) é composto por diálogos falados em várias línguas e articula tramas aparentemente desconexas, esquematicamente interligada por personagens em comum.

Justamente nele (o esquematismo) pode estar o maior problema de “360”. A carência de entrelinhas e o controle excessivo de Meirelles se torna maior do que o trabalho de (alguns) bons atores, histórias ou personagens interessantes. Não há apuro técnico ou artístico que sobreviva à falta de subliminaridade – algo grave para um filme interessado nas contradições humanas. Isso o reduz a um conjunto de imagens em sua maioria efêmeras, um reflexo a mais da realidade contemporânea que pretende examinar.

Com menos luxo e mais otimismo, começa o 40º Festival de Gramado

Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto

Estou na Serra Gaúcha, 40º Festival de Cinema de Gramado. Desde 2008 cubro o evento como repórter. Desta vez venho a convite da Associação dos Críticos do Rio Grande do Sul (ACCIRS), que organiza o júri da crítica do qual integro ao lado de Enéas de Souza (RS), Mônica Kanitz (RS), Orlando Margarido (SP) e Susana Schild (RJ).

Este ano, Gramado está um pouco diferente. Com equipe renovada, o festival enfrenta uma espécie de “crise dos 40”, provocada por um escândalo que envolve a antiga administração, que teve as contas bloqueadas pelo Ministério Público. Após o cancelamento do Festival de Paulínia, especulava-se o mesmo destino para o mais famoso e tradicional festival do país.

O pior foi evitado com o apoio de entidades e recursos obtidos via programa Pró-Cultura, do governo do Rio Grande do Sul. A prefeitura de Gramado, através da secretária de turismo Rosa Helena Volk, continua responsável pela organização. O clima é o de otimismo, apesar dos percalços, como o transporte menos eficiente e problemas com o gerador de energia, o que prejudicou a projeção dos filmes nas duas primeiras noites.

Com orçamento reduzido para R$ 2,5 milhões (pouco, para os custos de uma cidade turística), Gramado chega aos 40 com pouco luxo e menos frequentadores da Ilha de Caras, o que não deve fazer mal ao festival, que por outro lado assume novo grupo curador e a missão de continuar como um dos maiores festivais do Brasil.

Nesse sentido, olhar para a origem faz parte do processo: os dois homenageados deste ano, a atriz Eva Wilma e o cineasta Arnaldo Jabor. Ambos participaram da primeira edição do evento, em 1973, Jabor com “Toda nudez será castigada”, que se tornou o grande vencedor.

Selecionados pelo ator José Wilker e os críticos Rubens Ewald Filho e Marcos Santuário, os longas da mostra competitiva também resultam de um espírito de recomeço. Nos últimos anos, apesar do mérito em buscar o cinema de qualidade independente do glamour do tapete vermelho, o trabalho de José Carlos Avellar e Sérgio Sanz vinha recebendo críticas por trazer poucos filmes realmente instigantes.

Este ano, ao promover a première brasileira do longa pernambucano “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, abrir o festival com “360”, de Fernando Meirelles, e trazer curtas como “O Duplo”, de Juliana Rojas (que estreou em Cannes) e o híbrido PE/SP “Di Melo – o imorrível”, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, Gramado pode se redimir com crítica e público.

A conferir.

38º Festival de Gramado (dia 1): “Riscado”, ou quanto vale o meu trabalho?

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Valeu a pena enfrentar o sono e o cansaço da viagem de hoje para assisitir Riscado.

Com estreia marcada para setembro (no Recife será no Cinema da Fundação), o filme de Gustavo Pizzi é a história de Bianca (Karine Teles), uma atriz na corda bamba, que tenta conciliar a realização profissional com as necessidades de sobrevivência.

Enquanto desenvolve com o marido uma peça de teatro à espera de reconhecimento, ela ganha a vida interpretando Marilyn Monroe, Bettie Page e Carmen Miranda.

O filme não se esforça em esclarecer fronteiras entre representação e realidade. Bianca e Karine, atriz e personagem, seriam a mesma pessoa? Estamos assistindo um documentário com linguagem de filme de ficção, ou seria o contrário?

A produção é de Cavi Borges (Cavídeo), que está se transformando em uma usina de longas-metragens. Somente este ano, lançou seis em diferentes festivais. E tem mais quatro prontos, à espera de exibição.

Depois da sessão, fiz duas perguntas para Pizzi. E depois da premiação (o filme ganhou cinco Kikitos em Gramado, incluindo o de melhor atriz), fiz mais duas perguntas para Karine, que em Gramado, realiza o que sua personagem em “Riscado” não consegue. Ter seu talento reconhecido.

Riscado é sobre gente que se arvora a realizar aquilo o que acredita, mesmo que longe das condições ideais para isso. O que te levou a fazer o filme?
Gustavo: Ele parte de uma coisa muito importante para a gente, que é falar de trabalho, sorte e talento. E como a soma desses fatores pode levar ao sucesso. Para Bianca, uma atriz, isso não significa necessariamente ser uma estrela, mas fazer bem seu trabalho.

Você escreveu o roteiro com Karina, que é sua esposa. O quanto há de biográfico na história?
Gustavo: Karina vive de perto todas essas angústias, vitórias e decepções. Tudo isso pode ser construtivo se for usado para aprender e ficar mais forte. O trabalho de atriz é exemplar nesse sentido mas o mesmo pode ser vivido por um empresário ou um jogador de futebol que inventa um novo jeito de jogar e depois é tirado fora do campeonato.

Riscado trata das amarguras, prazeres e lutas de uma atriz para se realizar profissionalmente. A história é baseada em algum episódio em particular?
Karine: Não. Várias vezes fui convidada para projetos que não foram adiante. Este filme é a minha forma de lidar com essa frustração. Estava chegando aos 30 anos e tinha que fazer algo para minha carreira existir. Fiz de tudo para sustentar esse vício: fui produtora, intérprete, professora, garçonete. Não dava mais para viver dessa forma mambembe. Gustavo transpôs isso lindamente pra tela.

A premiação em Gramado é o início de uma nova fase em sua carreira?
Karine: Creio que sim. Tenho 18 anos de carreira e essa é a primeira vez que meu nome está chegando aos jornais. Mas até então, só fiz pontas. No filme Mondovino, de Jonathan Nossiter, trabalhei por cinco meses. 50 pessoas não entraram no filme e eu estava entre elas. Nele, fiz uma cena linda com Charlotte Rampling, que terminou não entrando, mas para mim isso foi melhor do que ter feito algo menor que entrasse no filme.