Curtas revelam talento e desencanto de uma nova geração de realizadores

“A mão que afaga”: clima de pesadelo

São Paulo – De um universo de quase 400 títulos do 23º Festival Internacional de Curtas, assisti pouco mais de trinta. Recomendo alguns, em parte já assistidos no Festival de Gramado. Entre os melhores, estão filmes que apontam, com recursos do cinema fantástico, de terror e outros gêneros, para mazelas sociais, imperfeições afetivas e o que há de sombrio e angustiante na alma humana. Seriam eles um sintoma, a tradução de uma época pessimista e descrente de discursos emancipadores? A refletir.

O evento promovido pela Associação Kinoforum é o maior festival de curtas na América Latina e durante oito dias se tornou um grande ponto de encontro. Entre os convidados estava Charles Tesson, diretor da Semana da Crítica de Cannes, que trouxe para São Paulo uma amostra do evento deste ano, entre os filmes, o paulista “O duplo”, de Juliana Rojas.

“O duplo”, de Juliana Rojas, estreou em Cannes

Ano passado, Rojas dirigiu com Marco Dutra o longa “Trabalhar cansa”, instigante incursão nas amarguras da classe média utilizando como interlocutor o cinema de suspense e terror. Desdobramentos sobrenaturais destoam dos filmes brasileiros que abordam questões sociais, normalmente ancoradas no realismo.

Em “O duplo”, Juliana vai além e insere cenas de violência explícita e carnal. No curta, uma professora do ensino fundamental fica perturbada ao encontrar seu doppel gänger (em alemão, duplo maldito) na escola onde trabalha. Mais do que o resultado sangrento, interessa o exame do comportamento humano a tensão construída entre o suspense e rompantes de medo.

Em uma atmosfera de estranhamento e incômodo espiritual parecida se sustenta o curta “A mão que afaga”, de Gabriela Almeida. Prêmio especial do júri em Gramado, nele, uma operadora de telemarketing promove festa de aniversário para o filho. Decoração retrô e luzes chapadas e laterais remetem a um lugar situado nas profundezas da alma da mãe, abandonado (ou onde ela ficou) desde a própria infância.

“Menino do cinco”: representação precisa do impasse social brasileiro

Estranhamente ausente do Kinoforum, outra obra a explorar o lado sombrio do universo infantil: a produção baiana “O menino do cinco”, de Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira. Filme mais premiado do Festival de Gramado, trata-se de uma história a princípio inocente – a disputa de um cachorrinho por dois garotos – um que vive solto na praça e outro, isolado no condomínio em frente. Mas sua narrativa quase convencional mostra a que veio quando, em construção de menos de 20 minutos, o curta sintetiza em uma única cena o impasse social das cidades brasileiras. E este é apenas o filme de estreia dos diretores.

“Odete” foi destaque no festival de Oberhausen

Premiado em Oberhausen (Alemanha), “Odete”, de Clarissa Campolina, Luís Pretti e Ivo Lopes de Araújo, trata de um assunto delicado. A despeito de qualquer cobrança social imposta às mães, temos aqui uma genitora que, no leito de morte, se despede da filha após uma vida de ausência, confessando não ter sido capaz de amá-la. Imagens distorcem lindamente luz e sombra, dura e insustentável poesia. Bela parceria entre as produtoras Teia (de Minas) e Alumbramento (Ceará).

Outro ponto a ser considerado é que o rigor estético, busca em comum alcançada com mérito por todos os curtas aqui apresentados, contradiz o desencanto que evocam. Para além do reconhecimento artístico, nas necessidades que justificam a beleza e melancolia residem o maior trunfo destas obras.

23º Festival Internacional de Curtas premia “Dia estrelado”, “Quinha” e “A vida plural de Layka”

São Paulo (SP) – Três curtas com DNA pernambucano foram destaque no 23º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, que terminou na última sexta-feira (31.08) à noite, em cerimônia na Cinemateca Brasileira. Apesar de não ter caráter competitivo, o Festival de Curtas conta com júris montados pelos patrocinadores, além de incentivar a participação dos espectadores com uma votação popular.

A animação “Dia estrelado”, de Nara Normande, ficou entre os dez mais votados pelo público, além de ter ganhado o prêmio do CTaV. Com a assinatura da Rec Produtores Associados, “Quinha”, dirigido pela paulista Caroline Oliveira, também está entre os preferidos do público; e outra animação, “A vida plural de Layka”, foi agraciada com menção honrosa pelo júri do MinC (Prêmio Itamaraty).

Dos três, “Quinha” é o único inédito. Nele, Hermila Guedes interpreta uma mãe solteira, que leva a filha de nove anos para batizar. Com quase um ano de carreira “Dia estrelado” estreou na 4ª Janela Internacional de Cinema do Recife. Totalmente artesanal, feito com a técnica de stop-motion, este é o primeiro curta de Nara Normande e levou quatro anos para ser concluído. O montador, João Maria, recebeu o prêmio por Nara

“A vida plural de Layka”, de neco tabosa

Dirigido por Neco Tabosa, “A vida plural de Layka” usa diferentes técnicas de animação para narrar duas histórias paralelas, a de um trabalhador oprimido pelo batente e seu vizinho, que relembra proezas sexuais sem limites. O curta, que começa carreira em festivais com o pé direito, foi representado pelo roteirista Henrique Koblitz. Atá então, ele havia sido exibido em duas ocasiões no Recife, uma em cinema pornô no centro da cidade e outra no Cinema da Fundação. Do Rio Grande do Norte, Neco Tabosa falou ao Portal Cinema Pernambucano. “Estímulos como este vão manter a vontade forte de não seguir nenhum impulso que não seja sincero. Ou como diria Koblitz, ‘eu só deseho o que eu sinto’. A vontade é de fazer continuar fazendo filmes assim”.

“Porcos raivosos”, de Leonardo Sette e Isabel Perroni

Outros pernambucanos que participaram do festival são “Porcos raivosos”, de Leonardo Sette e Isabel Penoni, “Dique”, de Adalberto Oliveira e “A vida noturna das igrejas de Olinda”, de Mariana Lacerda, todos inéditos no Brasil. Lançado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, “Porcos raivosos” parece documentário antropológico, mas é na verdade uma peça de ficção onde índias do povo Kuikuro (Alto Xingu) dramatizam uma situação em que seus homens se transformaram em animais.

“Dique” é um documentário rodado na beira-mar de Olinda, sobre as transformações ocorridas na orla da cidade, longe do movimento turístico concentrado na área tombada como patrimônio. Destaque para o belo trabalho de captação de som de Thelmo Cristovam.

“A vida noturna das igrejas de Olinda”, de Mariana Lacerda

Visualmente inspirado na obra do ilustrador gaúcho Eloar Guazzelli, “A vida noturna das igrejas de Olinda” é uma obra que usa de recursos do cinema sobrenatural e fantástico para captar a memória de ambientes seculares, um dos primeiros construídos no país que ainda perduram. São monumentos que testemunharam cinco séculos de história e Mariana Lacerda utiliza sua câmera e, com um precioso trabalho de som mixado em Dolby 5.1, examina o que aquelas paredes grossas, de blocos selados a gordura de baleia e revestidos com azulejos portugueses têm a dizer.

Este é o segundo curta de Mariana, que estreou em 2008 com “Menino-aranha”, em que assume o ponto de vista do garoto que escalava prédios no bairro de Boa Viagem, percorrida em suave sobrevôo. No que pode ser entendido como uma investigação estética, é com esta mesma suavidade (obtida com equipamento steadycam) que a diretora percorre relevos e texturas das igrejas de Olinda. Um filme poético sobre história, memória e o desejo de retornar para olhares e lugares que mudaram ou simplesmente não podem mais existir.