A estreia nacional de “Boa sorte, meu amor”

Brasília (DF) – Pai e filho estão sentados em mesa estilo colonial, um em cada ponta. O pai conta como nasceu sua tetravó, filha de uma índia que se tornou escrava e terminou casada com o barão. O filho ouve. O pai bebe até cair. Sua empregada o ajuda a levantar. Como uma herança maldita, daquelas que se repetem tragicamente em caso de fuga, a história recai sobre os descendentes, personagens de “Boa sorte, meu amor”.

Bem recebido no 45º Festival de Brasília, o primeiro longa de Daniel Aragão trata do amor e da vida, que tem o fluxo interrompido e impossibilitado por violentas tradições, ocultas e atuantes na urbanidade contemporânea; do hedonismo como descrença em qualquer outra forma de obter prazer; e do cinema como forma de elogio ao que se ama: música, amigos, festas e mulheres.

Dirceu (Vinícius Zinn), o filho da sequência que abre o filme, conhece Maria (Christiana Ubach) numa festa em que ela trabalha como hostess. Seu rosto é mostrado suave e lindamente pela câmera de Pedro Sotero, como uma pin-up pop / retrô. Não tarda e Dirceu a leva para a cobertura em que vive com o pai. Começa aí uma série de acontecimentos que levam a revisitar o passado, em pequena cidade do sertão nordestino.

A relação com a cidade que se transforma é endêmica em “Boa sorte, meu amor”. Seguindo cartilha de preceitos do novo cinema pernambucano, lá estão os arranha-céus, engolindo espaços vazios, condicionando subjetividades. Em determinada sequência, a demolição de um sobrado antigo é comparada a um processo de curetagem. Ao aborto de um Recife velho em prol de um questionável projeto modernizador.

A fotografia em preto e branco de Pedro Sotero é um dos elementos mais interessantes . A superexposição em alto contraste pode remeter à estética do Cinema Novo, mas a impressão logo se dilui entre as muitas referências cinéfilas, do velho oeste à ficção científica. Tarkovski, Antonioni, Fassbinder.

Camiseta xadrez

Fetiches. Muitos fetiches. A participação especial de um ícone da pornochanchada, o ator e diretor Carlo Mossy, foi um deles. Outro foi trazer da Austrália um jogo de lentes anamórficas, supostamente da mesma série que Tarkovksy utilizou em “Solaris”.

Filmado em digital 4K,  o resultado é impressionante. Pedro Severien (Orquestra Cinema Estúdios), principal produtor  do filme ao lado de Isabela Cribari (SET) e João Jr (REC), justifica as lentes trazidas do outro lado do mundo. “A  combinação do digital com o vintage de uma lente anamórfica não é só um capricho, está na raiz do que o filme quer comunicar. Ela remete a uma relação que está no conceito e age a favor do filme, pois trabalha o presente que se esvai e a memória que volta”.

A estrutura dividida em capítulos e a presença constante de músicas são apenas dois indícios de um universo de referências trazido pelo diretor. Para quem o conhece, salta aos olhos sua habilidade em se auto-traduzir em obra. Para quem não o conhece, ele deu a pista ao comparecer ao debate do dia seguinte à exibição vestindo a mesma camiseta xadrez usada no filme por Dirceu.

A trilha sonora e música original, composta pelo finlandês Jimi Tenor, foi um dos primeiros assuntos do debate. “A música é mais importante do que tudo”, diz o diretor. “Mais do que o cinema”. O grande número de referências foi assim justificado. “Não sei se vou fazer outro filme, pode ser que no Brasil as coisas mudem e ano que vem eu não tenha mais dinheiro para isso. O cinema sempre foi a minha forma de me relacionar com as pessoas, de compartilhar coisas que gosto com os amigos”.

No sertão, as filmagens foram feitas na fazenda que foi da família do diretor. Apesar de buscar o passado, não há nostalgia nesse movimento, mas sim o estranhamento. “Dirceu (o personagem) nunca quis voltar pra lá. Eu mesmo abandonei o local há 20 anos e voltei agora, para fazer o filme”.

(Portal Cinema Pernambucano, 22/09/2012)