“Praia do Futuro”: crítica + entrevista

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Em fevereiro passado, a agenda de Karim Aïnouz esteve mais apertada do que o usual. O motivo se chama Praia do Futuro. Desde 2008, quando Tropa de elite ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, nenhum filme brasileiro havia sido selecionado para a competição oficial. Com lançamento comercial confirmado para 15 de maio, Praia do Futuro leva o ator Wagner Moura para a Alemanha, de forma bem diferente do trabalho que o revelou para o mundo.

Encontrei Karim dois dias depois do festival, em restaurante próximo de onde mora, no bairro de Neukölln, para conversar sobre o novo filme. Na última década, o diretor cearense dividiu seu tempo entre o Brasil e a Alemanha. Da experiência, nasceu essa obra sobre mistérios, fugas e recomeços. Recorrendo à mitologia do herói contemporâneo, os irmãos protagonistas Donato (Wagner Moura) e Ayrton (Jesuíta Barbosa) se aventuram em quadrantes vazios ou subaquáticos, sob os codinomes de Aquaman e Speed Racer.

O litoral nordestino e a capital da Alemanha parecem não ter nada em comum. Talvez como cenário do filme de ficção científica com o qual Karim flerta, entre moinhos eólicos nas dunas cearenses e a presença alienígena da torre de TV encravada no centro de Berlim, Alexanderplatz. Mais do que isso, guardam espaços e lacunas à espera de personagens, histórias e sentidos. Se a Praia do Futuro vive à sombra de um projeto desenvolvimentista abandonado, Berlim sobreviveu a duas guerras mundiais, ao nazismo, ao comunismo soviético e, agora, ao capitalismo que se apropria dos terrenos baldios gerados por tudo isso junto.

Como a cidade que escolheu para viver, dividida por um muro por quase 20 anos, Donato é apresentado como “um herói partido ao meio”. Impossível olhar para a foto escolhida para o cartaz e não lembrar do Capitão Nascimento, o emblemático personagem vivido por Wagner Moura. No entanto, as semelhanças param por aí. De pai de família e líder de um destacamento militar ultraviolento em Tropa de elite, o ator passa para imigrante que assume a homossexualidade do outro lado do mundo.

Como Karim ressalta na entrevista a seguir, é interessante observar essa inversão pelo viés político. Enquanto o próprio Wagner Moura pediu à imprensa do Festival de Berlim para que não tratasse a homossexualidade como uma questão, o filme o mostra em tórridas cenas de sexo gay. “Não sei o que vai acontecer. Vamos ver”, diz o cineasta.

No início de Praia do Futuro, encontramos Donato debaixo d’água, tentando salvar um banhista do afogamento. Esforço em vão – o bombeiro interpretado por Wagner Moura amarga a primeira vida perdida de sua carreira. No entanto, Konrad, o amigo da vítima, interpretado pelo alemão Clemens Schick, surge como paixão que arrebenta laços, certezas e outras acomodações.

De carona nesse sentimento, o filme é marcado por uma atmosfera de fascínio e estranhamento, própria do ponto de vista estrangeiro, mais ligado à leveza, à intuição e ao descompromisso do que à cartilha do cinema convencional.

Em termos práticos e econômicos, o filme é uma coprodução oficial Brasil/Alemanha (a primeira dentro de um novo acordo de cooperação estabelecido entre os dois países). No entanto, em sua essência, Praia do Futuro não tem lugar definido, ao menos, não geograficamente.

ibbBmH46mP48WLA beleza plástica, garantida pelo fotógrafo Ali Olay Gözkay, é mais um ponto forte. A luz, ora buscada em ambiente tropical, ora na neblina invernal do Mar do Norte alemão, torna o filme uma peça única na filmografia de Karim, que já trabalhou com Walter Carvalho em Madame Satã e O céu de Suely, Heloísa Passos, em Viajo porque preciso, volto porque te amo, e Mauro Pinheiro Jr., em Abismo prateado.

De origem turca e formação cinematográfica alemã, Ali acrescenta a esse trabalho uma experiência anterior marcada pela poesia e pelo existencialismo, o que lhe confere uma nova e poderosa dimensão. Por exemplo, na segunda sequência subaquática, feita em domo cilíndrico de 30 metros de altura e elevador panorâmico, um rigoroso movimento vertical seduz e confunde a percepção de tempo e espaço, dando início ao bloco mais intenso e dinâmico do longa.

Fazendo jus à fama de extrair ótimas performances dos atores, o diretor dessa vez foi além com Jesuíta Barbosa, talento premiado pelo papel do soldado Fininha, em Tatuagem, atualmente popularizado pelo trabalho na TV. No papel de irmão abandonado, Jesuíta cumpre a função de catalisar a trama.

Como nos quadrinhos de super-heróis, nos quais busca inspiração pop (além da boa trilha sonora, que inclui Heroes, de David Bowie),Praia do Futuro compõe um universo predominantemente masculino, em que as poucas mulheres são coadjuvantes (a colega de trabalho, a balconista) ou ausentes (a mãe). Por outro lado, ao contrário das aventuras de Aquaman e Speed Racer, em Praia do Futuronão existem vilões definidos. “Não acredito em vilões”, diz Karim. Se existem inimigos, eles são internos.

Entrevista // Karim Aïnouz: “precisamos de uma provocação politica para que o discurso avance”

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Donato abandonou tudo para viver em outro país. Quais são as motivações?

São milhões de razões, mas é importante não deixar claro o motivo da mudança. A falta de resposta pode causar frustração em parte do público, mas é preciso haver um lugar no cinema contemporâneo onde se possa imaginar, em vez de ter uma resposta clara. No caso do Donato, o que me interessa é mostrar um personagem que pertence a um lugar de maneira tão forte, que pra poder existir ele precisa se desenraizar completamente. Isso pra mim é uma questão central, no sentido psicológico, do personagem. Donato pertence muito àquela água, àquele pedaço de praia. Mas como salva-vidas, fica 80% do tempo olhando para o horizonte. Ele é um cara calado, não articula o que sente. Faz e depois tenta entender, de maneira atrapalhada. Mas como explicar por que se apaixona por alguém? São razões que não se pode articular.

Talvez essa seja uma das condições do imigrante.

É a condição de quem se desarvora de um lugar e enraíza em outro. Achei importante falar do desconforto de estar em algum lugar e como isso pode se resolver com a travessia, com a viagem. De como essa inquietude tem um preço.

Considerando a sua história, esta parece ser uma questão bastante pessoal.

Depois que vim para cá tive uma sensação muito próxima de quando morei na França. Lá eu era tratado como argelino, por isso fui embora, pois era algo que eu não sabia o que era. Depois fui fazendo as pazes, isso deixou de ser um problema para ser parte de mim. Em Berlim, o que me interessa é que eu não tenho lastro. O máximo que pode acontecer é alguém achar que eu sou turco, e fica por aí. Aqui sou um completo estrangeiro, estou em outro lugar do mundo. Para quem procura sensação de casa pode parecer estranho, mas tenho a noção de que esta é uma cidade que nunca vai me pertencer. Não sei até quando isso vai me inspirar, mas hoje é algo que me dá muito prazer.

Quais os prós e contras em trabalhar no sistema de coprodução?

Realizamos algo que nunca foi feito antes, que envolve mecanismos precisos e complexos. Por outro lado, é sempre bom contar com o olhar critico lançado de ambos os lados. Quero fazer de novo, mas da próxima seria bom contar com um agente de vendas desde a largada, observando o que pode funcionar em cada pais. Em “Praia”, a Match Factory entrou depois do filme pronto.

Como Wagner Moura entrou para o projeto? O fato de ele ter sido o Capitão Nascimento influenciou em algo?

Tenho vontade de trabalhar com ele desde “Abril Despedaçado”, onde eu fui roteirista. Mas não tinha surgido um papel em que ele fizesse sentido. Quando “Praia” começou a tomar forma ele já era um ator famoso. E surgiu a excitação de tirar um personagem de contexto e colocar em outro, completamente diferente. Claro que não foi por conta da bilheteria de “Tropa de Elite”, seria muito ingênuo da minha parte. Criar esse “ruído” foi bonito e muito produtivo, pois precisamos de uma provocação politica para que o discurso avance.

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A dinâmica do filme fica mais intensa na parte final, quando entre Jesuíta Barbosa. 

Fiz isso de propósito, ate certo ponto há uma construção clássica, um personagem que não se define, outro sem curvas dramáticas. No momento em que Jesuíta entra com um registro de interpretação completamente diferente, ele assume função de vetor dramático. Pra você ter uma ideia, o coloquei para fazer boxe por quatro meses.

Este é seu primeiro trabalho com o fotógrafo turco Ali Olay Gözkaya. Como isso influenciou a parte criativa?

Estamos construindo uma colaboração. Ele admira Fassbinder como eu, temos um filme em comum, “O medo devora a alma” e a partir daí encontramos uma série de coincidências, como a vontade de trabalhar com melodrama. O que foi bonito no trabalho do Ali e que, enquanto eu estava no caminho de certo naturalismo, ele foi buscar um registro próprio para o filme. Foi um dialogo complexo, que começou bem mas no processo passou por atritos, com ele buscando algo mais formal enquanto eu queria a impureza. Ali foi formado na Escola de Berlim, onde a precisão é tanta que filmar um ator e uma cadeira parece a mesma coisa. É um projeto de dramaturgia que eu não dou conta, me interesso por outras coisas. Não estou acostumado com o rigor, costumo buscar o erro, o acidente cinematográfico. Brigamos muito, sempre com o objetivo de chegar a um lugar que faça sentido para o filme.

O que você considera um acidente cinematográfico?

E quando não tem aposta clara de cena, ou um plano definido. No “Praia” tem uma cena toda vermelha, com os personagens dançando. Ali quis fazer em tripé e eu disse a ele: “sem chance”. Levaria mais de um mês para desenhar aquela cena e entrar no modo de produção Kubrick, o que não era o nosso caso. A busca pelo acidente foi colocar os personagens naquela situação e ver como eles descobrem a ação. E fazer isso foi complicado, pois Ali aposta em cenas muito precisas e eu acho que as vezes eh preciso um certo frescor ao ato de filmar, que eh também o ato de documentar.

Por outro lado você trabalhou com uma preparadora de elenco, a Fatima Toledo, o que demonstra algum desejo de controle.

Pelo contrário, ela fez uma preparação para o descontrole, de deixar o ator em carne viva, cansar o ator para ele ficar a flor da pele e não pensar muito. Isso deixa o ator zerado, desconstruído. E quando se trabalha com uma mise-en-scène predefinida e colocamos um ator, ele ate pode sair de quadro, mas não há o que ser descoberto visualmente, em termos de espaço. Por isso nossa decupagem foi planejada, mas a movimentação dos atores, não.

(Revista Continente, maio de 2014)

O projeto 3D de Karim Aïnouz

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A carreira internacional de Karim Aïnouz está de vento em popa. Além de “Praia do Futuro”, residência europeia o levou a participar do projeto coletivo em 3D, ao lado de Wim Wenders, Robert Redford, Michael Madsen, Michael Glawogger e Margreth Oline. Lançado no último Festival de Berlim, “Catedrais da Cultura” é um projeto que busca a liberdade criativa a partir do seguinte pressuposto: “se os prédios pudessem falar, o que diriam sobre nós?”. Karim participa com um documentário sobre o Centro Georges Pompidou, em Paris. Nele, experimenta as possibilidades artísticas do 3D sob um ponto de vista incomum, o do próprio local como entidade consciente, capaz de se auto-narrar. Inicialmente avesso ao uso da estereoscopia, a experiência o fez mudar de ideia. “É o caminho natural do cinema”.

Produzido por Wenders (que escolheu a Filarmônica de Berlim), o projeto original de “Catedrais da Cultura” previa uma série de dez filmes para o Canal Arte, a renomada televisão cultural franco-alemã. Se tornou uma coleção de seis filmes, para TV e cinema. “Em Berlim existe um festival chamado Volta ao Mundo em 14 Filmes, em que cineastas da cidade apresentam filmes com os quais se identificam. Wim Wenders apresentou ‘Viajo porque preciso, volto porque te amo’ (dirigido por Karim e Marcelo Gomes). Um ano depois, fui chamado. Ele colocou algumas regras, como a duração, o 3D e a questão principal: revelar a alma de um prédio. Optei por investigar o seu corpo”.

Inaugurado em 1977, o Centro Pompidou conta com cinema, teatro, biblioteca e museu. Além disso, é um dos maiores pontos de encontro da capital francesa, onde Karim morou na adolescência. “Sempre achei o Bo Bo (como é o local é apelidado) um local curioso, filho de 1968, parte de um projeto utópico de arquitetura”. Formado em arquitetura, deixada de lado por conta do cinema, o artista viu no projeto a oportunidade de retornar à antiga paixão. “Foi muito bom voltar a esse diálogo mais teórico sobre a produção de espaços no mundo contemporâneo”.

No entanto, esta não foi a opção imediata do diretor, que antes de tudo pensou no Therme Vals, hotel-spa na Suíça alemã, famoso projeto do arquiteto Peter Zumthor. Não deu certo porque o Wenders já estava fazendo um trabalho a respeito. “Depois pensei em aeroportos, estações de trem, até ir para o lugar mais óbvio, que tem a ver com minha história afetiva”.

Apesar de se interessar mais pelo sentido político da construção do Bo Bo, Karim viu na transparência das paredes e na ausência de fachada elementos interessantes para explorar o cinema em 3D. “É como tirar a pele de um corpo e ver os órgãos, a independência dos volumes, tubos, vigas, a visão através do prédio. Outro ponto foi perceber como o prédio envelheceu, e com ele o próprio modernismo. Basta ver como ele era quando foi criado e agora, após a reforma. Ele continua vivo, utópico, transgressor”.

Para escrever e narrar o texto, Karim convidou Deyan Sudjic, diretor do London Design Museum. “Ele é também um dos grandes críticos de arquitetura, biógrafo de Norman Foster e de uma série de arquitetos. Busquei construir com ele uma reflexão sobre arquitetura e o estado das coisas”.

Outra colaboração importante veio da estereógrafa francesa Joséphine Derobe, filha de Alain Derobe (falecido em 2012). “Ele desenvolveu o 3D na França, foi responsável por “Hugo Cabret” e “Pina”. Seu trabalho traz uma relação mais próxima da sensorialidade que busco nos meus filmes”. Ele aponta um terceiro filme como bom exemplo: “Gravidade”, Alfonso Cuarón. “Nele só percebemos que o 3D existe quando é importante lembrar, usa lentes específicas para provocar reflexos, e tem algo muito importante que procurei trazer para o meu filme que é a câmera ser sempre solta, nunca fixa, expandindo a experiência de estar ali”.

(Jornal do Commercio, 17/05/2014)

A memória dos lugares

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Estou a caminho da première de “Catedrais da Cultura”, novo documentário 3D produzido por Wim Wenders, que em 2011 apresentou “Pina” aqui na Berlinale. Agora ele volta com mais cinco diretores.

Karim Aïnouz, que ontem exibiu pela primeira vez seu novo longa, “Praia do Futuro”, está no projeto. Ontem, em coletiva de imprensa, Aïnouz disse que sua busca é por um cinema que trabalhe fora de quadro, ativando o espectador. Em “Catedrais da Cultura”, ele revisita o Centro Georges Pompidou, também conhecido como Beaubourg, em Paris, onde morou na adolescência.

Outras edificações internacionais são exploradas pelo projeto. Wenders, na Berlin Philharmonic; o austríaco Michael Glawogger, na Biblioteca Nacional da Rússia; o dinamarquês Michael Madsen, na Halden Prison (Noruega); a norueguesa Margreth Oline, no Opera House (também Noruega), e Robert Redford, o Salk Institute – La Jolla (Estados Unidos).

No momento, Wenders prepara seu primeiro drama em 3D. Diz ele que busca usar o recurso não como um ingrediente a mais, mas como elemento intrínseco ao filme.

Sobre o mapeamento espiritual dos lugares, disse ele, em passagem pelo Brasil: “Acredito que os lugares têm histórias próprias para contar. Aprendi a respeitar a autonomia dos lugares. Daqui a milhares de anos, quando ninguém se lembrará de nós, os lugares estarão aí. E se lembrarão de nós, porque os lugares têm memória”.

O mistério redentor

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Berlim é uma cidade de imigrantes. Impossível pegar um metrô sem cruzar com um estrangeiro, viajante ou descendente. Não são poucos os filmes a tratar dessa realidade pelo viés social, político ou cultural. Coube ao brasileiro Karim Aïnouz buscar uma compreensão existencial e cinematográfica desse movimento que impulsiona pessoas a buscar novos territórios e recomeços.

“Praia do Futuro” é seu quarto longa-metragem, que estreia mundialmente hoje, no Festival de Berlim, onde concorre ao Urso de Ouro. É também o projeto mais ambicioso e pessoal de Karim, filho de argelinos, nascido no Ceará, tendo morado em Paris, Nova York e em Berlim, onde alterna residência com o Brasil.

Não por acaso, o filme se posiciona como obra internacional, sem compromisso de fidelidade identitária com este ou aquele país, a não ser por razões particulares à história e a seu autor. A trilha sonora, por exemplo, conta com canções italianas, alemãs e inglesas, sendo “Heroes” a mais emblemática delas.

Cantada em inglês e alemão, a música de David Bowie sublinha o viés de cultura pop trazido para o roteiro por Felipe Bragança, com quem Karim já havia trabalhado em “O céu de Suely”. Personagens principais, os irmãos Donato (Wagner Moura) e Ayrton (Jesuíta Barbosa) respondem pelos apelidos de Aquaman e Speed Racer.

Na praia cearense que dá nome ao filme, uma tragédia une Donato a Konrad (Clemens Schick), imediatamente ligados fisica e amorosamente. Pouco tempo depois Donato deixa o Brasil, sem imaginar as consequências ou o impacto disso em Ayrton, o irmão mais novo. Em uma das melhores sequências, ele brinca em terreno baldio em Berlim, locação comum logo após a queda do Muro, atualmente cada vez mais raro como espaço a ser ocupado pela imaginação.

As sequências com motos em velocidade são sonora e visualmente instigantes, em cenas noturnas com a luzes coloridas distorcidas nos capacetes, representação do estado emocional dos personagens.

Estrangeiro em sua essência, o olhar de Karim busca horizontes pouco definidos entre o céu e o mar, mas principalmente a beleza possível entre quatro paredes ou no vazio nublado de quem se joga na vida. É o mistério redentor, como o próprio definiu na coletiva de imprensa.

PS 1: Nu frontal e sexo entre homens são colocadas em cena naturalmente, de forma a não causar polêmica ou espanto. No entanto, é o que deve acontecer, considerando os ânimos em torno de Wagner Moura, conehcido no Festival de Berlim como o Capitão Nascimento, de Tropa de Elite (Urso de Ouro em 2008, em júri presidido por Costa-Gavras). Desta vez, a decisão de qual será o melhor filme será de comissão liderada pelo norte-americano James Schamus (produtor de “O Segredo de Brokeback Mountain” e do recente “Clube de Compras de Dallas”).

PS 2: “Praia do Futuro” é a primeira co-produção entre Brasil e Alemanha realizado em âmbito oficial, firmado pelos dois países em 2008. O braço forte alemão é a Match Factory, responsável por filmes de Christian Petzold, Tom Tykwer e Apichatpong Weerasethakul. O filme também conta com a chancela da HBO, o que deve garantir a distribuição após a estreia comercial nos cinemas.

PS 3: Durante a Berlinale de 2012 entrevistei Karim Aïnouz, que estava começando as filmagens em Berlim e Hamburgo. Na conversa, o diretor compartilhou vários conceitos e visões que o guiaram pelo filme. Para ler, clique aqui.

Karim Aïnouz começa a filmar “Praia do Futuro” em Berlim – leia entrevista.

Karim Aïnouz começa hoje a rodar Praia do Futuro. Estrelado por Wagner Moura, o novo filme não foi batizado com o sugestivo nome do destino cearense por acaso. “Fiquei com vontade de filmar em casa”, diz o cineasta, em entrevista ao Diario de Pernambuco, no lobby do Hyatt Hotel, que uma vez por ano se torna o quartel-general da Berlinale. Casa, no entanto, é um conceito subjetivo. Principalmente para Karim, cearense, filho de argelinos, já morou em Paris, Nova York e agora tem residência no Brasil e na Alemanha.

Na busca de uma ponte entre os dois países, Praia do Futuro é o quinto trabalho de uma filmografia marcada por obras poéticas, pessoais e pela busca de novas formas narrativas, focada em personagens à margem, com seus corações despedaçados. Vide Madame Satã (2002), O céu de Suely (2006), Viajo porque preciso volto porque te amo (2009) e Abismo prateado (2011). O projeto começou a ser desenvolvido em 2007, em parceria com a também cearense Geórgia Araújo, da produtora Coração da Selva (Contra Todos, Antonia, Quanto dura o amor), com quem Karim havia trabalhado em seu primeiro curta. O roteiro é uma parceria entre Karim e Felipe Bragança (A alegria), que já havia escrito a última versão de O céu de Suely. “Quis filmar nos lugares que gosto, voltar um pouco para casa. Estava há um ano em São Paulo trabalhando na minissérie Alice. Por mais bacana que seja a HBO, televisão é um negócio industrial”.

As filmagens começam hoje em Berlim e no Mar do Norte, em Hamburgo, e devem seguir nas próximas cinco semanas. Depois, continuam em Fortaleza. A historia faz o caminho inverso. Na praia, o salva-vidas Donato (Wagner Moura) salva a vida de Konrad, um motoqueiro alemão (Clemens Schik, de 007 – Cassino Royale). A experiência o afeta a ponto de se cruzar o Atlântico em busca de algo que não sabe bem o que é. Oito anos depois, seu irmão mais novo, Ayrton (Jesuita Barbosa), vai atrás de Donato.

Coprodução entre Coração da Selva e a produtora alemã Hank Levine Film GmbH (também parceira da O2 Filmes em Cidade de Deus e Lixo extraordinário), Praia do Futuro tem orçamento de R$ 6 milhões e deve estrear nos cinemas somente em 2013. Na entrevista, Karim fala mais sobre o filme, super-heróis (sim, eles estão aqui) e sua relação com Berlim.

Entrevista >> Karim Aïnouz: “Berlim é uma cidade meio banguela, onde muita coisa ainda pode ser inventada”

O roteiro nasceu da vontade de fazer um filme que se passe em Fortaleza e Berlim. No começo, não definir parece ser mais importante que amarrar uma história.
Mais do que a narrativa, o que importa é o tom. Pra mim é sempre assim que começa, procurando o sabor que tem o filme, o perfume, o cheiro.

E que tom você procurou?
Vivemos um momento mundial que pra mim é muito esquisito. Sou de uma geração de utopias coletivas, que assumiu riscos e um certo perigo de viver. Nos últimos dez anos, cresceu uma politica global calcada no medo, no valorização da segurança, de fronteiras que se fecham. Por isso pensei em fazer um filme na praia, sobre gente que se aventura, que tem coragem de se lançar em aventuras sem saber se aquilo vai dar certo ou não.

E como a Praia do Futuro se conecta a Berlim?
São dois lugares em ruínas. A Praia do Futuro é um projeto imobiliário dos anos 1960-70, que era pra ser uma espécie de Barra da Tijuca, mas que não deu certo. É um projeto utópico, que não funcionou muito bem. E Berlim é uma cidade que se reconstruiu algumas vezes. Pensamos sobre o projeto contemporâneo de segurança e de cidades que se reinventam. E tem uma terceira coisa, Berlim era dividida entre duas cidades emblemáticas, de sistemas políticos antagônicos. Quando caiu o muro, a cidade quis virar uma terceira coisa, que acho que deu certo por um lado, às vezes não deu. Há uma relação forte com o que era o comunismo antes do muro, principalmente nas questões da vida cotidiana. Isso se junta com o capitalismo e se torna algo singular. Donato vai para a Alemanha atrás de um grande amor. Seu irmão, que o tratava como um herói, quer reencontrá-lo, mas não sabe se ele está vivo ou morto. O reencontro de irmãos é a expressão mais íntima do que ocorre na cidade.

E a relação com super-heróis?
O filme é sobre a coragem humana, em conflito com o que é super-humano. É um filme de aventura, mais do que tudo. Minha geração passou muito tempo fazendo cinema de observação, de contemplação. Quero fazer outra coisa, onde os personagens estão sempre em movimento. Não é um filme de ação, mas é mais cinético do que de estase. O que nos leva aos super-heróis. Donato não tem medo da água. O alemão que ele salva é um motoqueiro e o irmão se chama Ayrton, e também gosta de velocidade. Eles são o Aquaman, o Speed Racer e o Motoqueiro Fantasma. Super-heróis que se tornam heróis. Para mim, uma questão da hora é fazer cinema mais sobre o ser humano do que sobre super-heróis.

Como começou sua historia com Berlim?
Vim pra cá pela primeira vez em 1985. Estava na França com meu pai, estudando arquitetura e fiquei bastante impactado com a cidade. Eu era marxista e tinha uma fantasia sobre a Europa oriental e de Berlim como cidade partida, de um lado, a vitrine do capitalismo, de outro, cidade comunista. Quando acabei de filmar Madame Satã, ganhei bolsa do DAAD para passar um ano aqui, a mesma que convidou o Ignácio de Loyola Brandão e João Ubaldo Ribeiro, depois o Marcelo Gomes e agora o Bernardo Carvalho. Era como uma licença sabática, para fazer o que quiser e aí pintou a paixão pela cidade.

Senti que tinha algo acontecendo depois da queda do muro, que é um improviso parecido com o que vi em Nova York nos anos 1980, aquela bagunça super-inspiradora. É diferente dos outros lugares da Europa, em que tudo já está pronto, regulado. Berlim foi destruída, foi inteiramente bombardeada, e ainda está se entendendo. Costumo dizer que ficou uma cidade meio banguela, tem construções contemporâneas e um terreno vazio do lado, depois um playground. Me inspira muito esse processo de reconstrução, de como uma cidade com espaços que podem ser ocupados de maneiras distintas, porque muita coisa ainda pode ser inventada.

(Diario de Pernambuco, 27/02/2012)