“Estamos dentro de uma cabeça que sonha. Talvez esta seja a sua cabeça. Este é um país dos espelhos. E nós somos você”. A frase, retirada de “Asilo Arkham” (1989), a história em quadrinhos gótica de Grant Morrison e Dave McKean, traduz bem a tônica do curta-metragem “Loja de Répteis”, de Pedro Severien. Nele, um aparentemente abandonado casarão colonial recifense se torna o espaço onde a demência se manifesta como sintoma de um sistema de exploração dos corpos, humanos ou não.
De volta à HQ, diz o psiquiatra Amadeus Arkham, durante o processo de auto-diagnose que o levou ao internamento: “A casa é um organismo faminto por loucura. É o labirinto que sonha”. No filme, a esposa (Maeve Jinkings) tenta salvar o protagonista (Fransérgio Araújo) dessa espiral obscura, até que se torna vítima, sendo ela mesma subjugada pela vertigem. O mal, manifestado em concepção sonora e visual, se instala pela opção pelo cinema fantástico e de horror, sem que isso resulte em amarras que impeçam a expressão pessoal do diretor, afeito ao diálogo com a literatura, música e artes plásticas.
A atmosfera de pesadelo e delírio em que a narrativa opera é pontuada em dados de realidade simultânea, como na sequência cuja montagem é feita em um plano único, formado por imagens de câmeras de vigilância. A loja de répteis é mais do que um imóvel antigo perdido no tempo: é uma câmara que canaliza a loucura acumulada por séculos de ganância e servidão. E ela se amplia para a grande cidade, estamos todos enjaulados.
Em entrevista concedida no 47º Festival de Brasília, Pedro Severien fala sobre cinema, política e uma referência remota: desde cedo, se sentiu atraído pela literatura fantástica de Edgar Allan Poe. “Ele está no meu topo, assim como Borges, Garcia Márquez e João Ubaldo”. E não são poucas as ligações entre o tenebroso conto de Poe, “A queda da casa de Usher”, e “Loja de Répteis”. No entanto, o principal ponto de partida do diretor vem de si mesmo: o conto homônimo publicado no livro “O homem que explodiu”, de sua autoria.
![Pedro Cred. Junior Aragão (11)](https://andredib.wordpress.com/wp-content/uploads/2014/09/pedro-cred-junior-aragc3a3o-11.jpg?w=636)
Entrevista // Pedro Severien
Assim como seu curta anterior, “Canção para a minha irmã”, “Loja de Répteis” é uma adaptação de conto que você mesmo escreveu. Por que adaptar a própria obra?
Penso em adaptar outros autores, mas ainda não fiz porque isso envolve direitos autorais e poderia gerar outros entraves. Como tenho urgência de filmar, uso o meu trabalho como ponto de partida. Para mim é um processo muito prazeroso, porque é uma forma de mergulhar em novas portas daquela obra. Não se trata de reproduzir o que já está escrito, mas de abrir uma janela, entrar em outra dimensão e passear por um universo que eu mesmo criei, explorar aquela massa de ideias como fosse em um videogame. Dentro do meu primeiro longa, “Todas as cores da noite”, tem a adaptação de outro conto de minha autoria.
No caso de “Loja de répteis”, o conto funciona mais como sátira e é muito mais fantástico, pois se utiliza de elementos que na literatura são mais fáceis de lidar do que materializar no set. Eu também era mais jovem. No filme tive outros interesses, tanto de pesquisa de linguagem como de visão de mundo. Estava mais interessado nesse lugar das sombras dos personagens e da própria existência; na construção do roteiro, na pesquisa das dimensões da loucura e realidade; na força de ação e reação dos personagens e sua ligação com o animalesco. Me interessam esses mistérios, de como os seres humanos precisam lidar com a raiz animal e ao mesmo tempo etérea, da imaginação.
Na apresentação do curta no Festival de Brasília, você faz uma crítica da forma como o Recife vem sendo refém de empreiteiras e construtoras, pautadas principalmente pelo lucro. O filme como uma reação a esse projeto de cidade.
Não concebi o curta como uma metáfora da questão urbana, mas sim, existem influências. Pensei no discurso mais como um testemunho mesmo, que acabou provocando leituras ou até que gerou ruído. Gostei disso, tanto pra quem foi levado a ler de outra maneira como que gerou confusão. O filme tem elementos subterrâneos. Por exemplo, ele usa como cenário uma casa colonial decadente, cujas texturas impregnam os personagens.
Há uma conotação política bastante forte nisso, optar pelo gênero do terror e do fantástico para tratar da herança escravista nas relações humanas, hoje.
Para mim esta foi uma questão fundamental, olhar para o corpo humano reduzido a um produto. Pode se dizer que não há escravidão como em séculos passados, mas com certeza há um certo tipo de escravidão, em parte determinada pela cor da pele, que está sendo quebrada porque o sistema de preconceitos está ruindo. É reducionista olhar para a construção social como algo ligado principalmente ao poder econômico. Há uma tendência da mídia em discutir a economia como centro do desenvolvimento do país, mas este é apenas um aspecto. O desenvolvimento humano passa por outras questões. Quando coloco personagens que começam vendendo animais e terminam vendendo pessoas, chego na mesma constatação: vender um ser vivo, qualquer ser vivo, seja para ornamentação ou para sobrevivência, faz parte do mesmo processo de desumanização.
“Loja de Répteis” foi lançado logo após uma série de eventos protagonizados pelo Movimento Ocupe Estelita, que por sua vez, é consequência de uma série de pensamentos e debates estéticos e políticos que nos últimos anos vêm ocorrendo no Recife.
O movimento resulta da intersecção de grupos que já vinham discutindo a cidade, movimentos sociais, políticas públicas e uma arte que leve em conta a dimensão da realidade. O cinema já vinha construindo narrativas e aprofundando questões urbanas nas telas. Quando explode a ocupação física do terreno, para barrar o projeto doentio que é o Novo Recife, surge o ponto onde a insatisfação se materializa com uma ação política. E os filmes que fizemos nesse momento operam numa espécie de imaginário do cinema politico. Para mim, foi muito importante lidar com isso na linha de frente.
Alguns produtos que surgiram diretamente desse contexto são À margem dos trilhos, Vida Estelita, Braço armado das empreiteras e Ocupar, resistir, avançar. Além disso fizemos uma série de transmissões ao vivo, via streaming, que tem uma energia e possibilidades que me lembram muito a Teoria das Brechas de Jesús Martín Barbero, que diz que todo muro pode ser infiltrado por elementos do próprio sistema, que vão corroendo até derrubá-lo, como vem acontecendo com os muros da mídia corporativa. Sei que parece megalomaníaco mas é um ideal que estamos procurando.
E qual seria um próximo passo?
Esse movimento não vai ter fim. O nome pode mudar, pois é uma energia que explodiu e pode se materializar em outros movimentos como atualmente na Coligação da Cultura, que está interferindo positivamente na pauta das eleições. No episódio do Estelita o poder publico mostrou o quanto é conivente e refém à ação das empreiteiras. Isso pode servir para uma mudança na conjuntura política, pois tudo ficou tão explícito que um posicionamento da sociedade se torna necessário. O Novo Recife se tornará um monumento do quanto isso foi criminoso.