“O Som ao Redor” é o longa nacional mais premiado do 40º Festival de Gramado

Kleber Mendonça e a produtora Emilie Lesclaux (ao centro) comemoram premiação com atores Lula Terra e Maeve Jinkings (foto: Itamar Aguiar/Pressphoto)

A produção pernambucana “O Som ao Redor” é o longa-metragem nacional mais premiado do Festival de Gramado. E também um dos melhores filmes da temporada. Em cerimônia realizada na noite de sábado (18 de agosto), a ficção de Kleber Mendonça Filho foi eleita pelo júri oficial nas categorias melhor direção e melhor desenho de som e pelo júri da crítica e júri popular como o melhor filme do festival. Foi pouco.

O Kikito principal foi para o longa “Colegas”, um filme curioso, mas que não acrescenta ou traz nada de extraordinário, sobre três portadores de Síndrome de Down que fogem do internato para uma aventura de dimensões cinéfilas. Exibido no contexto de uma seleção forte, com filmes que olham para as tensões sociais e subjetivas do homem contemporâneo (para citar apenas dois, o longa “O que se move”, de Caetano Gotardo e o curta “O menino dos cinco”, de Marcelo Matos e Walace Nogueira), é no mínimo estranho premiar uma peça colorida e esperançosa, marcada pelo humor pseudo-incorreto que tende ao pastelão.

“Colegas” é engraçado e tem certa importância, que se torna pífia se comparado à de “O Som ao Redor”, um filme necessário não só por falar grande como cinema, mas por escancarar a crueldade e os descaminhos arquitetônico e social das grandes cidades. Sensorialmente instigante, o filme traz para a consciência um inferno sonoro e visual, que de tão presente e opessor, tende a se tornar imperceptível. Para isso, ele parte de uma observação implacável de uma realidade específica, a da classe média-alta recifense, para recriar com excelência de som e imagem o pesadelo urbano da vida contemporânea.

João (Gustavo Jahn) e Sofia (Irma Brown), em cena do filme “O som ao redor” (foto: Víctor Jucá)

Estreia – Após décadas de cinefilia, exercício da crítica e realização de curta-metragens, Kleber Mendonça acumulou repertório e referências que são apenas o ponto de partida para um impressionante e radicalmente pessoal longa de estreia. “O som ao redor” estabelece um ponto de vista particular e sem concessões, não só por denunciar o que há de doentio na convivênciahumana dos grandes centros, mas porque parte da história do próprio diretor: para se ter uma ideia, o cenário é a rua onde ele mora (no bairro de Setúbal) e uma das locações, o seu apartamento; a rua onde cresceu, em Casa Forte, também está no filme, por sua vez dedicado à sua mãe, autora de um estudo sobre a permanência de costumes servis após a abolição da escravatura.

No campo da filosofia, “O som ao redor” evoca Etienne de La Boetie (“Discurso da Servidão Voluntária”), Jacques Rousseau (“Quem se crê senhor dos outros é ainda mais escravo do que eles”, em “Contrato social”) e Wilhelm Reich (“Alguma coisa, bem escondida, atua contínua e eficazmente desviando a atenção daquilo que deveria ser focalizado… e a armadilha é a estrutura emocional do homem, sua estrutura de caráter”, em “O assassinato de Cristo”). No filme, isso se traduz, por exemplo, na postura senhoral dos mais ricos com relação a empregadas domésticas e demais trabalhadores.

Ao mesmo tempo em que retrata uma realidade particular, o filme traduz o sentimento coletivo de mal-estar, tensão e medo vividos por moradores das grandes cidades. Em termos estéticos, estamos na mesma esfera habitada por Michael Haneke, Lars Von Trier e Stanley Kubrick, eminentes estudiosos do comportamento humano. Só que não estamos na Inglaterra, Áustria ou na Lua, mas no Recife e seus arrebaldes.

Ali vive um grupo de cidadãos, uma pequena malha que, para existir, usa a vigilância e a fofoca como instrumentos de controle. Metade dos imóveis da rua tem dono, um coronel interpretado com brio pelo ator paraibano WJ Solha. O filme inicia após uma festa no apartamento de João (Gustavo Jahn), que termina com saldo positivo para ele e Sofia (Irma Brown), até que descobrem que o carro dela foi arrombado; na manhã seguinte, um grupo de seguranças particulares liderado por Irandhir Santos oferece proteção aos moradores.

A segurança pública e privada nas grandes cidades é tema recorrente, mas pouco se fala sobre sua origem, a herança colonial brasileira, e sobre as pequenas violências domésticas, que de tão incorporadas ao cotidiano, se tornaram invisíveis. “O Som ao Redor” toca nessas feridas, que seguem incomodando, ainda que sob efeito de anestésicos como uma nova TV de 50 polegadas.

Kleber Mendonça e Mônica Kanitz, presidente da Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), que concedeu a “O som ao redor” o prêmio da crítica (foto:Edison Vara/Pressphoto).

Gramado – “O Som ao Redor” chega ao Brasil quase um ano depois de ter sido rejeitado pelo Festival de Brasília, situação que, no fim, acabou beneficiando o filme, que logo depois foi selecionado pelo Festival de Roterdã, na Holanda. Foi o começo de uma bem sucedida carreira internacional, que inclui 15 festivais e vários prêmios. Ironia do destino, o longa será exibido em Brasília no mês que vem, fora de concurso. A estreia comercial no país ainda não está definida, mas Sílvia Cruz, da distribuidora Vitrine Filmes cogita o mês de novembro como uma possibilidade.

Em sua primeira exibição em solo nacional, “O Som ao redor” arrebatou opiniões da imprensa especializada. Nem mesmo um grave problema na projeção, que interrompeu a sessão aos 100 minutos por falha do alto-falante central, causou prejuízos ao filme, que foi reexibido no dia seguinte, com aplausos ao final das duas sessões.

Para o crítico paulista Luiz Zanin, “é um dos títulos importantes do atual cinema de ficção brasileiro, um dos filmes que serão discutidos daqui para frente”. Rodrigo Fonseca, de O Globo, escreveu que o filme levou “a mostra competitiva de cinema de Gramado a um terreno instável do risco e da potência”.

Na próxima sexta (24 de agosto), “O Som ao Redor” entra em cartaz em Nova York. Em matéria no New York Times, Larry Rother escreve que “Neighboring Sounds” (título internacional) promove “uma colisão entre passado e futuro em um presente fluido e inquieto” e tem “um olhar exuberante e vibrante, de acordo com o cenário tropical e um sutil e sofisticado desenho de som”.

Na coletiva de imprensa, o interesse dos jornalistas que lotaram a sala se tornou outro termômetro da relevância de “O Som ao Redor”. Não faltaram elogios e comparações com grandes obras e autores do cinema mundial. Por cerca de uma hora, Kleber Mendonça falou sobre diferentes temas. Leia os melhores momentos a seguir.

O som como personagem

O som foi fruto do trabalho de uma equipe excelente, que comparo com uma equipe de basquete, onde todo mundo tem que ser bom. A concepção sonora vem muito da minha percepção das cidades, que eu ouço muito. Cada uma tem sons específicos, São Paulo, por exemplo, tem um som doente e interessantíssimo, já o Recife envolve isso com o litoral e muito verde.

Política e Racismo

O Brasil nega, mas é um país muito racista. Sou filho de uma historiadora que estudou o momento em que escravidão foi abolida no Brasil. Ela viu que nada foi feito para receber a população de libertos e como isso reflete na forma de nos relacionar com essa classe e seus descendentes. Creio que por isso, diferente de países da Europa, a relação entre empregados e patrões é em parte profissional e, por outra, afetiva. temos empregados que são meio mãe, irmão, quase parentes. Mas sabemos que eles não são e isso é complicado, pois cria um meio termo muito confuso.

Por outro lado, como observador da nossa sociedade, percebo que houve mudança na maneira como as classes mais baixas ganharam um pouco mais de respeito. Isso é algo diferente, que me interessa muito e acho que está no filme.

Setúbal como locação

Moro naquela rua há muito tempo e desde 1990 fotografo e filmo aquele lugar. “Eletrodoméstica”, “Enjaulado”, “Vinil verde” foram rodados lá. Considero Setúbal um bairro completamente desinteressante que está sendo demolido, virou um canteiro de obras sem nenhuma ordem estética e, apesar de agora estar sendo muio valorizado, por conta dos investimentos no litoral sul, é um bairro sem personalidade, um não-lugar, similar a uma loja de conveniência. Isso me interessa, pois ali existem pessoas, e onde há o elemento humano, há histórias.

Referências

Aceito todas as referências que possam surgir em quem assistir ao filme, mas tenho as minhas próprias. O cineasta que mais esteve na minha cabeça é John Carpenter e Elia Suleman, este úlimo por filmar em em ângulos retos, recurso que Michael Haneke também usa. “Caché” é um filme muito forte sobre a França contemporânea e talvez faça parte do universo desse filme. Uma observação precisa veio de um crítico norte-americano apaixonado por cinema brasileiro, que viu na sequência de fotos inicial uma relação com “Cabra marcado para morrer”.

Crítica social e cinema de gênero

“O som ao redor” é um filme sobre a sociedade moderna ocidental – o Recife é apenas o ponto de partida. Quando comecei a escrever o roteiro estava claro de que seria um filme de realismo social, mas que teria outro aspecto muito claro, que é o cinema que fotografa o terror e o medo, pois no Brasil somos treinados pra isso. Ele chega no western e no filme de terror, sem nunca cruzar a linha. Talvez pisa nesses lugares e volta ao realismo social.

Outro filme que me identifico nesse sentido é “Trabalhar cansa”, de Marco Dutra e Juliana Rojas. Quando assisti imediatamente pensei que ele é um irmão de “O som ao redor”, bem diferente, mas com a mesma preocupação. Mas os filmes que eu mais percebo que tem uma conexão, quase como um jogral, é a própria produção pernambucana. Quem for ao Festival de Brasília vai ver um filme que gosto muito, “Doméstica”, de Gabriel Mascaro, que tem muito a ver com o meu filme. Outro em Brasília é “Boa sorte, meu amor”, de Daniel Aragão. São três filmes que triangulam sensações, idéias e desconfortos. Isso é muito bonito pois são filmes independentes que se completam deforma instigante e estimulante.

Menino-aranha

Há alguns anos surgiu no Recife surgiu a lenda urbana do menino-aranha, um garoto que escalava prédios para fazer pequenos furtos ou pelo prazer de entrar em lugares altos e foi assassinado a 300 metros de onde eu moro. Mariana Lacerda já fez um filme sobre ele e eu quis incluir esse personagem de maneira misteriosa. É um pesadelo da classe média ter seu espaco invadido, acho que todos nós já sentimos isso.

(Publicado no portal Cinema Pernambucano – http://www.cinemapernambucano.com.br)