Imigrante acidental

No domingo, um filme do México venceu limitações técnicas e se impôs como um dos melhores do 39º Festival de Gramado. Ao narrar a peregrinação de um pastor de cabras do México aos EUA, A tiro de piedra (2010) de certa forma subverte um tema caro aos dois países: a imigração ilegal. O filme é de uma poética singular, exemplar até, por evitar a abordagem político-social com que o assunto tem sido tratado no cinema.

À primeira vista, seu único problema foi de ordem logística: o rolo 35mm não chegou a tempo ao festival, o que obrigou a produção a exibir uma versão em DVD. Mas qualidade do primeiro longa de Sebastian Hiriat se impôs. O diretor é da mesma região que seu ator principal, Gabino Rodriguez, cujo rosto incomum, recentemente visto em Perpetuum Mobile (2009) e Assalto ao Cine (2011). Sua intimidade com a câmera tem algo de excepcional.

Certo dia, no caminho para casa, Jacinto (o pastor) encontra a chave de um rancho norte-americano. Na mesma noite, sonha que encontra um tesouro, liga os eventos e parte para a estrada. O filme é de fluxo constante: trens, carros, pessoas cruzam a tela, horizontalmente, até Jacinto chegar a seu destino. Impressiona a ingenuidade do personagem. Parece que nasceu ontem e vê o mundo pela primeira vez. Não ambiciona os EUA como os demais mexicanos que querem cruzar a fronteira. Imigrante incidental, avança em direção a seu sonho, sem compreender os riscos que corre.

Perdido em paisagens desérticas ou geladas, Jacinto é um anti-herói alheio à maldade humana, o equivalente a Travis, o esquisitão de Paris, Texas (1986), fonte da qual A tiro de piedra certamente bebe. A música original, baseada na cultura popular mexicana e de roupagem jazz, é outro trunfo.

A noite terminou bem, com o documentário Uma longa viagem, de Lúcia Murat, que gira em torno da juventude dela e de seus dois irmãos. A sessão foi dedicada a Caio Blat, que não pode vir a Gramado. Ele participa do filme interpretando Heitor, o irmão de Lúcia, bicho-grilo que nos anos 1970 deu duas vezes a volta ao mundo. Dotado da rara lucidez dos loucos, Heitor é um grande personagem. E o filme, um dos melhores da última safra

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