Prestando reverência à HQ, "300" renova um gênero do cinema

A estréia do filme “300” em 550 salas brasileiras a partir de hoje (sexta-feira), 30 de março, significa mais uma vitória para o marketing cinematográfico – especialmente os bolsos dos envolvidos na produção – do que para os admiradores da HQ originária e seu autor, Frank Miller.

Não que a adaptação seja ruim – ela não é. É que o circo em seu redor extrapolou a obra em si. Pouco importa do que se trata – o filme virou assunto do momento em quase todos os veículos de imprensa ocidental. Sobre a reepercussão no oriente, trataremos um pouco mais abaixo.

No Brasil, foi alta a febre nas semanas precedentes à estréia. Boa parte da quentura proveio da presença de Rodrigo Santoro no elenco, o que certamente fará diferença na bilheteria nacional de “300”, e nada mais. Interpretando a divindade digitalmente adulterada Xerxes (o Rei da Pérsia) durante duas ou três seqüências, Santoro não ajuda nem atrapalha. É certo que, para o ator, o papel coadjuvante (ou co-protagonista) pode garantir a oportunidade de trabalhar, desta vez com seu próprio corpo e voz, em outras boas produções. Já para quem assiste, bem, qualquer um poderia estar no lugar de Santoro.

A agressiva estratégia da produtora Warner, onipresente na mídia publicitária e espontânea (imprensa e fãs de quadrinhos), talvez tenha sido adotada tendo em vista a camisa de força em que sua cria se meteu: com a proibição para menores de 18 anos (certamente menos pelas duas cenas de sexo do que pelo sangue característico e constante nas histórias de Miller), a horda de adolescentes fissurados em “Senhor dos Anéis” ficou excluída. Os excessivos efeitos especiais e bichos estranhos de “300” com certeza fariam a cabeça deles.

Assim como os 157 minutos que mostram como inúmeras espadas se enfiaram nas carnes de quem lutou na Batalha das Termópilas, em 480 a.C., não chegam a compor um exemplo do que se chama filme épico, no sentido clássico (Ben Hur, Spartacus, Gladiador, Alexandre). Ponto a menos entre os adultos mais conservadores.

Sendo assim, como explicar as centenas de milhões que o filme dirigido por Zack Snyder (A Madrugada dos Mortos) vem arrecadando nestas três semanas em cartaz nos EUA? Enquanto Snyder humildemente repete mundo afora que sua pretensão foi “apenas quis fazer uma adaptação fiel à graphic novel”, Hollywood e sua máquina mais feroz do que a ira dos espartanos liderados pelo Rei Leônidas (em boa interpretação de Gerald Butler), mostra as suas garras.

Ao que parece, pela primeira vez sentida com toda a sua força no Brasil. A super-coletiva de imprensa ocorrida no Rio duas semanas atrás convocou 60 jornalistas latino-americanos, num evento de luxo inédito na terrinha – até então, o México ou os EUA era o anfitrião para os junkets. O resultado? Basta dizer que neste fim de semana de estréia a imprensa multiplica massiva e mais ou menos homogeneamente o mesmo mantra: incenso em Snyder, Butler e Santoro, interpretações políticas contestadas, milhões de dólares, etc. Poucos são aqueles que fizeram da própria coletiva a notícia, explicitando os mecanismos que regem a atual indústria de cinema americana.

Finalmente, ao filme. Mais transposição do que adaptação. Nada tão obsessivo quanto o quadro-a-quadro de Sin City, outra obra de Miller celebrada no cinema. Aqui, há alguns enquadramentos idênticos às páginas da HQ, intercaladas com seqüências que só a tecnologia do atual cinemão blockbuster pode oferecer: slow motion / fast-foward, manobras radicais de câmera, centenas de camadas de filtros e efeitos afins.

Praticamente toda a filmagem foi realizada em fundo azul, ou seja, com cenários criados em computador. O que permitiu a almejada “fidelidade” não só na caracterização dos personagens e seus diálogos. A luz, as belas cores de Lynn Varley, os cenários e até o traço espesso e áreas cheias de pontos granulados, estética adotada pelo desenhista permaneceram intactos. Uma estética que funciona extremamente bem no papel, em imagens estáticas. Ora, os excessos de “Sin City” já provaram que cinema não é quadrinhos em 24 frames por segundo. Em “300”, a presença da linguagem dos quadrinhos está melhor dosada, o que não impediu um cansativo clima de artificialidade.

Nem uma vírgula da narrativa original foi retirada, sendo uma tramóia acrescentada provavelmente para aumentar o papel de uma mulher entre tantos homens na tela. Nela, a rainha espartana (Lena Haedey) tenta convencer os subornados políticos gregos a apoiar a defesa do território capitaneada por Leônidas.

Quanto à trilha sonora, destaque para a cena em que os 300 espartanos marcham ao som pesado de guitarras. Renovação pop no gênero épico histórico? Muito provavelmente.

História da luta de uma minoria contra a expansão do mais poderoso império até então, “300” tem gerado interpretações contraditórias no tocante aos conflitos contemporâneos. A história tanto pode ser atualizada como a resistência árabe contra o deus Xerxes-Bush, quanto, no extremo oposto, ser entendida como um discurso de superioridade ocidental sobre o obscurantismo bárbaro dos persas / árabes.

Daí os protestos que fizeram o filme ser banido dos cinemas do Irã, país remanescente da Pérsia. Não ameniza a situação a máxima bushiana proferida aos gregos antes da luta decisiva contra os “bárbaros” persas: “hoje livraremos o mundo da tirania e misticismo”. Polêmica sempre é bom para aumentar o caixa.

Resenha originalmente publicada no site da Continente Multicultural

300 de Esparta: divagações sobre a suposta "fidelidade" do cinema aos quadrinhos


“Fidelidade” é uma palavra que tem sido repetida orgulhosa e infinitamente por Zack Snyder, diretor do filme “300“, inspirada na graphic novel homônima de Frank Miller. Muito bem divulgado pela imprensa, “300” está à disposição do público desde ontem, em 550 salas brasileiras. Por um lado, vitória para os quadrinhos, arte geralmente diminuída, aqui enobrecida pelo tratamento de luxo e evidência nunca desfrutada em sua centenária trajetória.

Por outro, problemas no tocante ao processo de adaptação me saltam aos olhos. Nas cenas acima, não resta dúvida. “Igualzinho”, não é?

Não é bem o caso da pintura abaixo, veja bem como os espartanos foram retratados:

Nada tão “macho” quanto os guerreiros de Miller.

Enquanto escrevia uma crítica de “300” para o site da Continente Multicultural, me questionei bastante sobre a utilização da linguagem dos quadrinhos no cinema. Naturalmente não cheguei a muitas conclusões. Como explicar a artificialidade e falta de fluidez de filmes como “300”, meu caro Watson? Foi inevitável, enquanto assistia ao filme, fiquei o tempo todo comparando: “nossa, é igualzinho mesmo!”.

Bom, tenho que admitir que a cópia transposta por Snyder é muito bem feita. Realmente, o filme conseguiu manter intacta a estética original. Não tão obsessivamente quanto Robert Rodriguez e o próprio Frank Miller fizeram em “Sin City“, clonagem quadro-a-quadro que chega a dar náuseas após duas horas de projeção. “300” utiliza mais recursos de cinema, graças a Zeus.

Talvez as melhores adaptações dos quadrinhos para o cinema sejam as assumidamente traduzidas para a linguagem audiovisual, ou seja, são cinema antes de tudo. Tomem, por exemplo, os filmes de super-heróis. Eles parecem bem resolvidos quanto a isso. Neles, a fidelidade está em, durante o processo de tradução estética entre uma linguagem (HQ) para outra (cinema), preservar as características dos personagens, o contexto em que foram criados, enfim, sua essência. Filmes como “Ghost World”, “Hulk”, “Homem-Aranha”, “X-Men” e “Quarteto Fantástico” vem fazendo isso muito bem.

Claro que não é o caso de invalidar experiências como “300” e “Sin City”. Elas não são meros subprodutos das HQs. Pelo contrário, apontam para um diálogo de linguagens onde só o equilíbrio pode gerar bons frutos. Quando este for alcançado, teremos filmes bem mais interessantes de se assistir. Um bom exemplo neste sentido é o não tão recente “American Splendor” (Robert Pulcini), que conta a história do roteirista de quadrinhos Harvey Pekar.

Júlio Bressane, em seu ótimo livro-ensaio “Cinemancia”, trata do processo de tradução de uma forma mais livre e essencial. De uma língua para outra, analisando o caso de São Jerônimo, que converteu a Bíblia do Sânscrito para o grego. E da literatura para o cinema, exemplificando com sua então recém lançada adaptação de Machado de Assis, “Brás Cubas”. Quem assistiu ao filme, sabe que ele é uma viagem de sons e luzes ao universo machadiano. Nem de longe passa por uma transposição literal de diálogos e descrições de ambiente contidos no romance original. O sentido e a maneira machadiana de olhar para a realidade, no entanto, brilha no filme inteiro.

Isso porque para Bressane, a recriação é imprescindível no processo de tradução. Tanto que seu Brás Cubas reinventado para o cinema é diametralmente oposto (e infinitamente superior) ao interpretado por Reginaldo Faria no filme de André Klotzel, que se dispôs a adaptar “fielmente” o livro de Assis. O máximo que uma obra assim pode atingir é o da reverência ao original. Um culto que termina em si, que não extrapola como arte.

De volta aos espartanos, o “fiel” (como um escravo?) diretor Snyder demonstra com orgulho ter reproduzido a luz, a textura, os diálogos, enquadramentos, exatamente como na HQ original, esta servindo como o mais perfeito storyboard do planeta. Um sinal de respeito e tributo, mas também de engessada submissão, característica limitante do potencial que um bom filme pode atingir.

Caro Watson, onde está Wally (Snyder)? Cadê o seu olhar como tradutor?

Por fim, como bem provou Mary Shelley, ao criar seu Frankenstein há quase dois séculos, encerro com a máxima nada matemática: a soma das partes nunca é igual ao todo.

Os 300 de Esparta invadem o Jornal do Commercio

O Caderno C do Jornal do Commercio (Recife) trouxe ontem, dia 25 (domingo), duas matérias sobre Os 300 de Esparta, que já foi assunto deste blog em janeiro. Para ter acesso às matérias, é necessário ser assinante do jornal, ou do portal UOL.

Em “Heróis vestem vermelho”, a repórter Carol Almeida trata do relançamento da série em quadrinhos em formato livro (capa acima), num belo trabalho da Devir Livraria. Na segunda, ela revela como foi o papo (no Rio de Janeiro) com o diretor da adaptação cinematográfica, Jack Snyder, e com Rodrigo Santoro, o único brasileiro a atuar na produção que estréia no Brasil neste dia 30 de março (sexta). Eles estarão no Brasil durante a semana toda, para promover a esperada adaptação da obra de Frank Miller.

Pra quem ainda não sabe, Rodrigo Santoro está quase irreconhecível interpretando Xerxes, o rei dos Persas, que em 480 a.C. invade a Grécia para ampliar seu império. Apesar de algumas interpretações enxergarem em Os 300 de Esparta uma crítica ao imperialismo norte-americano, o governo do Irã (país que fazia parte da Pérsia) condenou duramente a maneira como os persas são retratados, considerando o filme como um ataque à cultura iraniana, e atribuindo a ele “comportamento hostil, resultado de uma guerra psicológica e cultural”. Ao que parece, um filme nunca é só um filme, até para os iranianos…