Watchmen atropelado pelo ritmo

Em 1986, Alan Moore e Dave Gibbons lançam Watchmen, série divisora de águas no reino dos quadrinhos norte-americanos, e em parte responsável pelo conceito de literatura gráfica. Desde então, virou fenômeno cult, e choveram boatos sobre como seria sua improvável versão para o cinema. Eis que, vinte e três anos depois, o filme chega às telas regado pela mesma desconfiança e ansiedade dos primeiros tempos. Tudo isso para dizer que Watchmen, produção dirigida por Zack Snyder e financiada pela Warner / Paramount, estreia hoje, nos cinemas do mundo. Mais uma vez – e isso é sintomático – Moore pediu para retirar seu nome dos créditos.

A pretensão, dizem os produtores Lawrence Gordon e Lloyd Levin (os mesmos de Hellboy), é oferecer um produto ao mesmo tempo acessível a quem nunca ouviu falar na HQ original, e renovar a linguagem dos filmes de super-heroi, que já virou gênero. Para tanto, contrataram a grife de Snyder, que rendeu milhões dois anos atrás com 300, outra obra originalmente concebida para a peculiar e escorregadia linguagem dos quadrinhos.

O que parece ter escapado da compreensão desses senhores e suas corporações é que não basta clonar morbidamente cada quadro, diálogo e textura de cor para que, por transferência divina, o mesmo efeito cultural se estabeleça. De forma que, apesar de todo o respeito, admiração e reverência com que foi feito, Watchmen, o filme, deixa um gosto amargo na boca. Primeiro, pelo ritmo “toque de caixa”, necessário para espremer centenas de páginas em 2h40 de película. Segundo, pelo sentimento de que nós, o público, mais do que o filme, fôssemos o objeto manipulado e condicionado a dizer: “nossa, eles fizeram igualzinho ao original”.

Se há pontos a favor, eles estão no fato de que a fidelidade canina dessa transposição quadro a quadro (quase tudo continua lá, exceto a HQ paralela Contos do cargueiro e o texto do livro fictício Por trás da máscara) é um pouco menos mórbida do que o still / fast-forward que fez de 300 um video-game em longa-metragem. Sequências do tipo “this is Sparta!” continuam sendo a assinatura de Snyder, o que não chegaa atrapalhar a densidade dos personagens, cenários e situações criadas por Moore/Gibbons.

A trilha sonora poderia ser elemento chave de uma suposta recriação, choveu no molhado ao usar Hendrix, Joplin e outros “medalhões” da música americana que há muito transbordam significado suficiente para serem invocadas mais uma vez.

Não deixa de ser irônico que nos objetos mais utilizados pela trama, os relógios, estejam um dos obstáculos que até hoje dificultam a relação entre sétima e nona arte. Pois no cinema, quem conduz o ritmo e o tempo é o diretor; nos quadrinhos, fica a critério da subjetividade do leitor. E esta, não deve ser atropelada, ainda que, como diz Mr. Zimmerman, os tempos realmente estejam mudando.

Pois a voz de Bob Dylan, mesmo tendo a melancolia como principal característica, sempre soa bem aos ouvidos. E é ela quem apresenta os créditos iniciais de Watchmen, uma das poucas sequências que podem ser chamadas de recriação no novo filme de Snyder. Nela é repassada a história recente dos EUA, paralela à evolução do grupo de vigilantes que dá nome ao filme/HQ.

Esse é o mote desta narrativa construída em camadas: como seria o mundo real habitado por justiceiros encapuzados? Para Alan Moore, o ufanista Capitão América seria o Comediante, cínico e sem caráter; Superman seria Dr. Manhattan, usado como arma para vencer a guerra do Vietnã; Batman seria o Coruja, que vive uma crise de meia-idade; o Homem de Ferro é Ozymandias, empresário de sucesso disposto a evitar conflitos mundiais (se bem que ele está mais para o Überman de Nietzsche do que para qualquer supertipo). Talvez o único personagem sem comparação seja Rorschach e seu moralismo sociopata disposto a limpar “a escória” das ruas.

Provavelmente a série em quadrinhos mais cultuada de todos os tempos (seus doze episódios, agora encadernados nunca saíram de catálogo), Watchmen pode ser melhor compreendida na versão original, que acaba de ganhar nova edição nacional pela Panini. Por sua vez, a Aleph presta um grande serviço aos leitores brasileiros ao traduzir Os bastidores de Watchmen (Watch the Watchmen), em que Dave Gibbons abre os arquivos pessoais e revela o processo de criação desta distopia que atualizou o universo dos super-herois aos dilemas contemporâneos.

publicado no Diario de Pernambuco (com alterações)

Watchmen – o filme vem aí

Aproveitando a sacada de Evan Shaner (no post abaixo), o Quadro Mágico informa que Watchmen, o filme, tem estréia marcada para março de 2009.

A adaptação será dirigida Zack Snyder, o mesmo que trouxe para o cinema Os 300 de Esparta de Frank Miller. E realiza algo há décadas desejado – e temido – pelos leitores de quadrinhos.

No elenco não há super-astros: Malin Akerman como Laurie Juspeczyk (Silk Spectre); Billy Crudup como Jon Osterman (Dr. Manhattan); Matthew Goode como Adrian Veidt (Ozymandias); Jackie Earle Haley como Walter Kovacs (Rorschach); Jeffrey Dean Morgan como Edward Blake (O Comediante); e Patrick Wilson como Dan Dreiberg (Nite Owl).

Criado na década de 1980 por Alan Moore com desenhos de David Gibbons, Watchmen é, ao mesmo tempo, uma crítica ferrenha à política belicista norte-americana e ao universo alienante dos super-heróis.

Bem ao gosto de Moore, os personagens são paródias melhoradas dos super-famosos Batman, Superman, Mulher-Maravilha, Capitão América, etc. Todos eles são construidos com problemas psicológicos e familiares, tudo bem longe da perfeição divina desenhada, por exemplo, por Alex Ross.

Ao que parece, e a julgar pelas fotos de Clay Enos, a obsessão de Znyder em clonar quadro-a-quadro histórias de papel para a película continua firme e forte. Se isso é uma qualidade louvável ou desastrosa (como foi em 300), só o tempo dirá.

Lost Girls – Volume 2: as terras do nunca

Estas são as poucas cenas “censura livre” contidas no segundo volume da trilogia em quadrinhos Lost Girls (Devir Livraria, 112 páginas, R$ 65), de Alan Moore e Melinda Gebbie. Nele, as meninas crescidas Alice, Dorothy e Wendy continuam explorando a amizade íntima que construíram, enquanto narram umas às outras as aventuras sexuais que as lançaram, quando adolescentes, aos fantasiosos universos do País das Maravilhas, Oz e Terra do Nunca.

Tudo se passa em 1913, nas dependências de um luxuoso hotel austríaco. Sob a tutela de Alice, a mais experiente do trio, elas conduzem o leitor a um mundo de prazeres sensoriais e perceptivos.

Em entrevista ao jornalista Diego Assis, Alan Moore diz que Lost Girls só foi possível graças à extraordinária relação de intimidade desenvolvida com sua companheira, a desenhista Melinda Gebbie, que permitiu a ambos expressar suas mais profundas fantasias sexuais.

Ele ainda explica que, apesar de não ter a intenção de chocar ninguém com o livro, ele se coloca contra a hipocrisia ocidental de reprimir o sexo no dia a dia, ao mesmo tempo em que o torna objeto de lucro de uma indústria cultural de bens de consumo.

As terras do nunca está ainda mais picante, poético e exuberante do que o primeiro livro, Meninas crescidas. Aqui, entende-se pelo viés psicanalizante, quem é o gato sorridente de Alice e o Capitão Gancho, um senhor pedófilo que estragava as brincadeiras de Peter Pan, Sininho e Wendy.

Lost Girls, a HQ que devolveu à pornografia ao estado da arte.

Clássicos infantis em versão para adultos

Alan Moore e Melinda Gebbie: união amorosa e trabalho de qualidade

 

Alice, Wendy e Dorothy, as meninas dos clássicos infanto-juvenis “No País das Maravilhas”, “Peter Pan”, e “O Mágico de Oz”, já tiveram suas aventuras contadas inúmeras vezes. Mas nunca assim, tão apimentadas quanto no álbum em quadrinhos “Lost Girls – Meninas crescidas”, de Alan Moore e Melinda Gebbie, que acaba de ser lançado no Brasil. Este livro, somente para adultos, é o primeiro de três volumes que compõem uma das mais belas e provocantes histórias em quadrinhos já feitas.

A história se situa no ano de 1913, quando as personagens, já adultas, se encontram num luxuoso hotel austríaco. Lá, confidenciam detalhadamente suas experiências sexuais. O projeto levou quase 20 anos para ficar pronto e, durante o processo, os dois artistas iniciaram um relacionamento amoroso que dura até hoje.

Naquele tempo, Moore começava a se destacar por suas narrativas iconoclastas e terrivelmente bem construídas, como “Watchmen”, em que super-heróis são usados na guerra fria, e logo depois “V de Vingança”, a distopia orwelliana que dinamitou o discurso da democracia ocidental. Em “Lost Girls”, a subversão está em mostrar sexo explícito com a mesma naturalidade e bom gosto presentes nos escritos originais.

O projeto começou quando Moore entendeu os vôos mágicos de Peter Pan e Wendy como uma metáfora para as descobertas sexuais da adolescência. Sob este ponto de vista legitimamente freudiano, situações como o apressado Coelho Branco que leva Alice ao País das Maravilhas, e Dorothy a dar piruetas dentro do furacão, ganham dimensões insuspeitas até então.

A estética muda de acordo com cada capítulo, seguindo padrões de uma exaustiva pesquisa do casal sobre a pornografia feita na era vitoriana e na Belle Époque, “muito mais humana e centrada no prazer” do que a atual, “quase toda fotográfica”, disse o escritor ao periódico eletrônico Sci Fi Weekly, na ocasião do lançamento.

Ainda na entrevista, ele afirmou que o sexo tem sido sub-representado na literatura. “Há gêneros dedicados a todos os outros campos da experiência humana – até os mais rarefeitos como o mundo dos detetives, astronautas ou caubóis. Já a pornografia, o único gênero em que o sexo pode ser discutido abertamente, não tem reputação alguma, é desagradável, de baixo nível, e consumida às escondidas”.

Na contra-corrente do sexo tosco e perverso mostrado nas “Tijuana Bibles” dos anos 30 e 40, e das sacanas montagens digitais com bichinhos fofinhos que circulam na internet, cada quadro de “Lost Girls” é marcado por muito requinte e delicadeza. Um produto que eleva este gênero tão desqualificado ao nível da mais pura e transcendente arte.

Serviço
Lost Girls – Livro Um: Meninas Crescidas (Devir Livraria)
Quanto: R$ 65 (112 páginas)

Lost Girls: a obra prima pornográfica de Alan Moore e Melinda Gebbie

A Devir Livraria acaba de publicar uma obra prima em quadrinhos. Lost Girls – Meninas Crescidas, é fruto de 15 anos de trabalho feito a quatro mãos por Alan Moore (roteiro) e Melinda Gebbie (desenhos). Por conter cenas de sexo explícito, é proibido para menores de 18 anos. Por ter como protagonistas Alice, Wendy e Dorothy, famosas personagens da literatura infanto-juvenil, Lost Girls vem chamando a atenção e provocando polêmica.

No Reino Unido, terra natal de Moore e Gebbie, o livro está censurado. Só será liberado em 2008, quando a obra Peter Pan and the Lost Boys cairá em domínio público. Os atuais detentores dos direitos autorais não querem endossar a manipulação pornográfica a que os personagens foram submetidos.

A versão brasileira chega um ano depois da obra pronta, mas o atraso valeu a pena. A edição da Devir está impecável, caprichada em cada detalhe. Da tradução ao tratamento gráfico, que inclui sobrecapa em papel couché e capa com detalhes em dourado. O único lamento é que o volume único americano foi desmembrado em três por aqui. O primeiro volume, lançado semana passada, tem 112 páginas, e está sendo vendido por R$ 65. A opção pelos três volumes provavelmente foi tomada porque seria impraticável para o mercado nacional vender um livro por R$ 200, e um desperdício lançar o livro com menos qualidade gráfica.

Na ocasião do lançamento norte-americano, Moore lamentou que a pornografia tenha se tornado um gênero empobrecido, sub-utilizado como produto de entretenimento barato. Para ele esta seria a única forma de literatura onde é possível discutir o sexo em todos os sentidos. Por isso, Lost Girls foi concebido de acordo com a pornografia da era vitoriana, sob uma estética da Belle Èpoque.

Uma HQ que surpreende não só pelo requinte e ousadia visual, mas por trazer a assinatura de Alan Moore. Da minha parte, confesso não ter esperado nada tão bonito e poético da parte deste artista, mais conhecido por mostrar o lado podre da humanidade (vide Watchmen, V de Vingança, A Piada Mortal e Do Inferno).

Lost Girls , uma ode aos prazeres da vida, é a prova de que um artista pode se reinventar sem abrir mão do melhor de si.