Spiegelman revisto por ele mesmo

Ao lançar Breakdowns, há três décadas, o novaiorquino Art Spiegelman deu o primeiro passo para consolidar conceito cada vez mais comum hoje em dia: o de histórias em quadrinhos como obra de arte. Item de colecionador, o livro volta revisto e ampliado pelo autor, que fez uma introdução ilustrada tão interessante quanto a obra que a antecede, e um texto final que revisa quase 50 anos de carreira – seu primeiro trabalho foi publicado aos 13 anos de idade.

Breakdowns – Retrato do artista quando jovem (Quadrinhos na Cia, R$ 79) usa aquele momento definidor como mote para passar a limpo a história de uma vida. Por exigência de Spiegelman, a edição nacional manteve o formato álbum de luxo, com capa dura e papéis especiais.

A arte da capa sintetiza o recado: o cartunista de meia-idade escorrega não numa casca de banana, como na clássica “gag” de desenhos antigos, mas na própria obra realizada na juventude. Em capítulos, o novo material revê traumas de infância, vida conjugal, a forte presença dos pais e, claro, a descoberta dos quadrinhos como tábua de salvação. Para o autor, pode ser uma forma de lidar com os próprios fantasmas. Para o leitor, é a chance de se deleitar com novas possibilidades narrativas do criador de Maus (1992) e À sombra das torres ausentes (2004).

O livro original, publicado em 1978, traz as primeiras pranchas de Maus, visão pessoal do holocausto judeu (Spiegelman tem origem polonesa – seus pais sobreviveram a Auschwitz), que anos mais tarde seriam aprofundadas em mais de 300 páginas de uma HQ celebrada como a única a ganhar o prêmio Pulitzer. A relação de culpa com a mãe, que se suicidou no fim dos anos 60, e com o pai repressor também estão representadas.

Hoje a linguagem dos quadrinhos é usada para quase tudo, da confissão mais íntima à reportagem de guerra, e seus melhores autores têm status de artista. Mas os tempos eram outros e os que se dispunham a criar histórias com tinta e papel dificilmente eram reconhecidos como tal.

Spiegelman tinha certeza de que era um deles, e que seu livro, uma coletânea do que fez nos cinco anos anteriores, faria diferença no cenário da arte contemporânea daquele momento. Com a ajuda de amigos, colocou cinco mil cópias (algumas com problemas de impressão) no mercado. Ele tinha se encontrado enquanto autor e precisava olhar para o próprio trabalho fora do contexto precário em que foi publicado.

À época, pouca gente deu atenção às inquietações existenciais de um desenhista desconhecido. Mas nestas e outras histórias estão, em estado bruto, os elementos que anos depois dariam notoriedade ao autor e abriram caminho para uma série de autores de quadrinhos experimentais, autobiográficos e que dialogam com outras formas de arte.

Cia das Letras investe nos quadrinhos

Contrariando a tendência do mercado, que em 2009 foi tímido em novos produtos, a Companhia das Letras entrou com os dois pés no filão de quadrinhos adultos. Criou o selo especializado Quadrinhos na Cia., que nos últimos meses trouxe ao país importantes títulos estrangeiros. A primeira leva colocou nas prateleiras Retalhos, de Craig Thompson, Nova York – a vida na grande cidade, de Will Eisner, e O chinês americano, de Gene Lueng Yang. Os mais recentes, além de Breakdowns, são Jimmy Corrigan – O garoto mais esperto do mundo, de Chris Ware e Umbigo sem fundo, de Dash Shaw. A resposta do público foi imediata.

“A editora quis apostar no plano antigo de publicar quadrinhos com constância. Antes, eles eram lançados pelo selo Cia. das Letras, voltados para o público juvenil. Só que muitas vezes são quadrinhos adultos, que ficavam na seção errada das livrarias”, diz o editor André Conti, responsável pelo novo selo. “Seguimos a linha editorial da Companhia das Letras, que é descobrir bons autores contemporâneos e resgatar os clássicos. A diferença é que agora aumentou a dedicação para manter regularidade e a busca de quadrinhos autorais”.

Entre março e abril serão lançados Bordados, de Marjani Satrapi (Persépolis), o primeiro tomo de Scott Pilgrim, série canadense que mistura estética mangá e videogame, No coração da tempestade, de Will Eisner, Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho, Vishnu, de Ronaldo Bressane e Fabio Cobiaco, e Vento em mala frata, de Emílio Fraia e D.W. Ribatski. Os três últimos inauguram uma série baseada na interação entre escritores e artistas gráficos. O pernambucano Marcelino Freire e o gaúcho Guazzelli estão cotados para o projeto, mas ainda não há nada confirmado. A volta de Lourenço Mutarrelli (Natimorto, O cheiro do ralo) aos quadrinhos também está na pauta.

O revés econômico afetou o mercado de livros em quadrinhos, mas não os planos da editora. “Para nós, a resposta está muito boa. Retalhos, New York e Umbigo sem fundo são os mais vendidos”, diz Conti. Alémdo evidente interesse por quadrinhos com qualidade literária, a linha editorial da Quadrinhos na Cia. contemplará HQs de apelo estritamente visual. “Estamos abertos para apostar na diversidade”.

(Diario de Pernambuco, 01/02/2010)

Art Spiegelman fala sobre "Breakdowns"

A Quadrinhos na Cia, selo da Companhia das Letras dedicado ao gênero, acaba de lançar Breakdowns, de Art Spiegelman.

O livro traz material publicado nos anos 70 – entre ele, as páginas originais de Maus, acrescido de comentários ilustrados que ocupam quase metade da nova edição.

Em virtude do lançamento, um dos melhores do ano, a Folha de São Paulo conversou com o autor, que raramente dá entrevistas.

Alguns temas: auto-análise, criação, a linguagem dos quadrinhos, sua visita ao Brasil nos anos 90 e a amizade com R.Crumb.

Leia a íntegra aqui.

HQ inédita de Art Spiegelman na Piauí deste mês

A revista Piauí de julho traz uma história em quadrinhos inédita de Art Spielgelman.

Nela, o autor de Maus e À sombra das torres ausentes analisa como os cartunistas norte-americanos trataram o episódio em que, em 1939, um navio de judeus refugiados da Europa foi mandado de volta sem dó nem piedade.

Na mesma revista, há uma HQ de três páginas de Robert e Aline Crumb. Desta vez, eles refletem sobre a vida no bairro em que moram, numa pequena cidade do sul da França.

Art Spiegelman, criador de "Maus", cancela vinda à Flip (RJ)


Uma lástima.

Acabei de ler no Blog dos Quadrinhos que Art Spiegelman cancelou sua vinda ao Flip (Festa Literária de Parati) deste ano. Autor de Maus e À sombra das torres ausentes e editor da revista em quadrinhos RAW e da série Little Lit, Spiegelman iria presidir uma mesa sobre quadrinhos – a primeira a entrar para a programação oficial da Flip, mas devido à doença de um membro da família, vai permanecer nos EUA.

O cancelamento do debate devido à ausência do artista tem causado polêmica: afinal, importa mais a relevância dos quadrinhos no atual panorama literário, ou a presença do ganhador do Prêmio Pulitzer? A organização explicou que não há tempo hábil de convidar outro estrangeiro. Mesmo assim, não faltam brasileiros com conteúdo suficiente para o intento.

Como diria Charlie Brown – “sigh“…

Quadrinista americano Art Spiegelman vem ao Brasil, a convite do Flip 2007

Não é especulação, nem boato. Art Spiegelman estará no Brasil entre 4 e 8 de julho, a convite do Festival de Literatura Internacional de Parati – Flip, no Rio de Janeiro. É o que informou o caderno “Ilustrada” (Folha de São Paulo), na última sexta-feira. Segundo a matéria de Eduardo Simões, a confirmação veio diretamente da organização do evento, na pessoa de Cassiano Elek Machado, o novo diretor de programação do Flip.

Machado acertou em cheio: neste momento em que a “nona arte” está consolidando o inequívoco status de gênero da literatura, nada melhor do que convocar um vencedor do Pulitzer de melhor obra de ficção, pela graphic novel Maus, em 1992.

Esta será a primeira edição do Flip a incluir uma mesa redonda sobre quadrinhos na programação oficial.

História (do Brasil) em quadrinhos: entrevista com Spacca

É notável o crescimento da produção de HQs sobre episódios da História do Brasil. Nos últimos anos, tivemos “Hans Staden” (pelo pernambucano Jô Oliveira), “As Aventuras de Chalaça, o amigo do Imperador“, e até um quadrinho sobre a presença judaica em Pernambuco no século 20 (“Passos Perdidos, História Desenhada“). A mais recente adaptação histórica em quadrinhos será a Revolta da Chibata, assinada pelos cearanses Olinto Gadelha (roteiro) e Hemetério (arte), a ser lançada ainda este ano pela Conrad – em breve, publicarei um texto somente sobre eles aqui no Quadro Mágico.

Para tratar do assunto com propriedade, nada como a palavra de quem faz. Autor de “Santô e os pais da aviação” (biografia de Santos Dumont) e “Viagem Quadrinhesca ao Brasil” (sobre a presença do artista francês Jean-Baptiste Debret na terra brasilis), o veterano João Spacca fala, com exclusividade para este blog, sobre os meandres da criação e da viabilidade deste tipo de projeto que mistura educação, arte e, claro, diversão. Seu currículo inclui a criação de desenhos publicitários, educacionais, infantis, participação na revista Níquel Náusea de Fernando Gonzales, e quase dez anos de charge editorial na Folha de São Paulo.

Alguns trechos da entrevista, realizada pelo jornalista e compositor recifense, Germano Rabello, serão utilizadas numa futura matéria, ainda sem nome. A ele e a Spacca, obrigado pela generosidade vertida em palavras.

É presumivelmente mais trabalhoso fazer um trabalho sobre temas históricos. Compensa realizar?

É realmente muito mais trabalhoso. Há várias maneiras de se trabalhar com temas históricos: pode-se usar a história somente como ponto de partida e fantasiar o resto (por exemplo, a minissérie “Quinto dos Infernos”); pode-se escolher uma época bem manjada que todos sabem como funciona (como o Velho Oeste Americano). Minha proposta, ou melhor dizendo: o meu jeito de trabalhar, é ser bastante fiel aos fatos ocorridos; é aproveitar os eventos reais, e montar com eles uma boa história, usando a seleção e o recorte, e raramente a invenção.

No meu caso, tenho trabalhado com épocas menos abordadas pela ficção, o que me obriga a pesquisar muitas informações, sobre tudo: questões políticas, hábitos do cotidiano, as tecnologias disponíveis, a moda, o jeito de falar, a moeda.
Por exemplo, quanto a uniformes militares: a Primeira Guerra Mundial é muitíssimo melhor documentada do que o período 1890-1910. Felizmente na internet há “nerds” e colecionadores que se ocupam de todos os assuntos… Depois de localizada a informação, deve-se desenhar isso de maneira ao mesmo tempo clara e natural: os personagens devem usar os objetos com naturalidade, não como se estivessem visitando um museu.

Se compensa? Bem, comparando com outros trabalhos, o ganho financeiro é muito menor, claro. Seis quadros de storyboard para publicidade dariam 1.200,00 reais: se o Santô me rendesse isso, eu deveria ganhar 144 páginas X 1.200,00 = 172 mil reais, o que eu talvez ganhe um dia se vender uns 40 mil livros em livraria, haha! (foram vendidos cerca de 3 mil, o que é considerado uma boa marca).

O que me move é o desejo de realizar, de ser lido, e de ser um bom negócio a
médio e longo prazo – ou seja, de ter um dia a possibilidade de trabalhar só
com isso em outros álbuns de quadrinhos. O que, considerando a possibilidade de alguns desses projetos serem adquiridos em grande quantidade por escolas e pelo governo, é uma esperança viável. O “Santô” foi adquirido em um projeto de bibliotecas públicas para todo o Brasil (PNBE).

Sente que isso lhe dá uma certa “legitimidade”? A HQ precisa desse referencial para ser aceita em círculos intelectuais ?

Sim, eu busco um tipo de legitimidade ao apoiar minha narrativa em uma pesquisa sólida, verificada nos mínimos detalhes. O que não impede de errar… por exemplo, no Debret eu desenhei o Conde da Barca retratado pelo Debret muito jovem. Estou mais ou menos desculpado porque, em ultima análise, é o Conde visto pelo Debret, e o artista era muito grato ao ministro de D.João. Mas o fato é que em 1816 Barca já estava meio alquebrado. Aprendi isto na pesquisa para o trabalho seguinte, que estou fazendo agora (D.João VI no Brasil). Então me preocupo com essas coisas, pensando não só na crítica dos leitores de quadrinhos, mas dos especialistas, historiadores etc.

Mas é uma coisa minha. Não sei se HQ “precisa desse referencial para ser aceita em círculos intelectuais”. Tenho a impressão de que a HQ precisa desse e outros referenciais para ser aceita por quase todo mundo. A HQ, tradicionalmente, é um fruto da indústria cultural, uma revista barata de entretenimento descartável.

Mas como nos filmes B de Hollywood, surgiram autores que se destacaram e conseguiram fazer evoluir essa linguagem ao “estado da arte”. Houve poucos períodos áureos (de grande vendagem ou de grande qualidade) nos quadrinhos. Ou ela era marginalizada porque era vista como lixo cultural; ou como obra de entretenimento puramente infantil; ou mais recentemente, como comunicação anacrônica, lutando para sobreviver na era dos games e da internet. Como sou leitor de algumas HQs muito boas, sei que essa linguagem pode alcançar níveis altos de qualidade.

E essa é a minha referência, quero fazer histórias cada vez melhores, tendo os grandes mestres como modelo. Espero que ela seja aceita, primeiro, como entretenimento, como leitura gostosa, prazeirosa para qualquer leitor. Em primeiro lugar também, como uma HQ de qualidade para quem conhece e gosta (espero conseguir isto, é sempre uma meta). Fora disto, o que vier é lucro.

Porque acha que tantos trabalhos sobre história estão surgindo ?

Não sei! Tomara que seja um efeito dominó: alguns lançamentos vão surgindo, conseguem ter boas vendas e repercussão, o que motiva outros autores e editores a apostar nesse filão etc. Pessoalmente, acho importante (além de gostar) porque a História nos informa sobre a nossa identidade, quem somos, de onde viemos.

Nos anos 30-40 do século XX houve também um boom de trabalhos históricos; algumas narrativas da época hoje nos parecem um pouco ingênuas e patrióticas num sentido deturpado; por isso há necessidade hoje de recontar a História de um jeito mais franco, mais objetivo.

O meu “Santô” neste sentido, creio, conseguiu evitar a armadilha do ufanismo para contar de forma mais imparcial e complexa a história de “quem voou primeiro” ou “quem é o pai da Aviação”.

Será o efeito benéfico sobre os quadrinhos nacionais? Como você encara a abundância de títulos em livrarias e ausência de títulos (nacionais) nas bancas?

Eu aprendi a ler quadrinhos nas bancas, por isso lamento muito que não dê mais para fazer isso, da mesma forma. O cenário mudou muito: as bancas vendem de tudo – viraram uma loja de conveniência – vendem até revista… e ao mesmo tempo, deixaram de ser a principal fonte de informação barata – a internet ganha de longe.

O esquema de distribuição nas bancas, no entanto, parece que é o mesmo; só tem vez a publicação que vende muito e tem respaldo de outras mídias; além disso, um gibi fica pouco tempo na banca, corre o risco de ficar escondido e é recolhido logo e é vendido como papel velho…

Acho inviável, acho que é um esquema que acabou (por enquanto, pelo menos). O livro de quadrinhos na livraria é mais perene. Acabou virando um “alternativo de luxo”: o que não tem poder para venda massiva, vai tentar a sorte na livraria. Acho que é o que é possível, hoje. E tem vida mais longa.

Em que nível a Cia. Das Letras interferiu no seu trabalho? Eles
encomendaram o “Viagem quadrinhesca” depois do sucesso de “Santô”, ou você
propôs o tema?

Isso nasceu de um jeito meio inesperado. Logo em seguida ao “Santô”, eu propus à editora uma biografia de Monteiro Lobato, na mesma levada do Santô, com 120 páginas. E o projeto foi aceito e eu comecei a tocar. Mas ao mesmo tempo, eles me pediram uma HQ de 18 páginas com o tema “viagem”.

Podia ser qualquer coisa – o objetivo era comemorar os 20 anos da Cia numa edição coletiva, com outros quadrinhistas. Eu é que propus algo sobre História do Brasil, porque havia lido vários diários de viagem de estrangeiros ao Brasil no tempo do Império (Saint-Hilaire e outros). Aí pensei em Debret, e eu não conhecia direito a história dele. Li por alto e, apesar de não ter sido uma vida muito aventureira, encontrei alguns ganchos dramáticos que me ajudariam a construir uma narrativa interessante. Como o assunto é justamente o que a Lili Schwarcz (dona da editora) conhece profundamente, a primeira versão, com a qual eu não estava satisfeito, não
foi aceita. Ela fez muitas observações, e de fato eu tentei colocar muita coisa em apenas 18 páginas e ficou confuso.

Refiz o roteiro, focalizando mais o aspecto do pintor neoclássico nos trópicos, e ela gostou muito. Foi divertido, como se eu estivesse fazendo uma tese e ela fosse a orientadora. Nisso, a edição coletiva dançou. Mas eles já tinham aprovado a hitória e ela estava em produção, então eu sugeri a eles que fizessem da HQ um álbum,
completando com gravuras do Debret e cronologia etc. Eles toparam, e acabou ficando uma edição com cara de livro didático, que está sendo muito bem aceita pelos professores. E o Lobato continua de pé.

Nova HQ de Art Spiegelman no Brasil

Não bastasse ter publicado HQs inéditas de Angeli, Laerte e ilustrações de Millôr em edições passadas, a revista Piauí deste mês se superou ao trazer um trabalho inédito do americano Art Spiegelman.

“Retrato do artista quando jovem” segue a linha biográfica-experimental já conhecidos no Brasil através dos famosos livros Maus e À sombra das torres ausentes. Aliás, a história tem a mesma proposta da que Angeli publicou meses atrás, sobre sua relação de amor obsessivo com um vinil dos Rolling Stones. Só que Spiegelman vasculha sua memória um tanto perturbada para contar como começou a desenhar.