Cine PE – noite 2

Mais uma boa noite de curtas, a de ontem, no Cine PE.

A animação Céu, inferno e outras partes do corpo (RS) faz ótima adaptação da arte de Fábio Zimbres, o papa do quadrinho underground gaúcho. Seu diretor, Rodrigo John, fez parte da equipe de Otto Guerra, que trabalhou no longa Wood & Stock – sexo, orégano e rock’n’roll. No curta, entre o trabalho e o descanso, um cachorro humanizado passa por perturbações existenciais que se espalham de forma visceral pelo seu apartamento. No fim, uma frase de Machado de Assis arremata o pensamento. “Essa é a grande vantagem da morte: se não deixa boca para rir, não deixa olhos para chorar”.

Com elenco 99% infantil, Tempo de criança (RJ) se apropria desse universo ao focar em duas crianças que se cuidam e brincam enquanto a mãe está no trabalho. A impressão é que o próprio filme é feito por crianças. E isso é um elogio. Algo como crianças que dominam a linguagem do cinema. O diretor, Wagner Novais, não pode vir ao festival. Está em Paris com a equipe do longa 5X Favela – agora por nós mesmos, do qual foi um dos diretores (primeiro episódio, Fonte de renda)

Braxília (DF) trata da relação do poeta matogrossense Nicolas Behr com a cidade em que se mora desde os 14 anos. Através de sua obra, o filme olha para Brasília com necessário estranhamento. “Isso me pegou pela poesia do Nicolas. Em Brasília há um excesso de siglas e poucas pessoas. O mesmo incômodo que ele sentia nos anos 1970 eu sinto agora”, diz a diretora, Danyella Proença. No filme, Behr explica que Braxília é seu equivalente a Passárgada, uma cidade que existe a partir das pessoas. O momento mais descontraído é a tentativa do poeta – em vão – de atravessar uma avenida.

Cachoeira (AM) traz visão sobre os índios livre de preconceitos – de direita ou de esquerda. Isso já pode ser sentido na fala de apresentação do diretor, Sérgio José Andrade. “É uma visão nada estereotipada dos índios, diferente do boneco gigante de Tainá, que está lá fora”. O filme dramatiza episódio noticiado em 2004, em que jovens índios bebiam uma nociva mistura de álcool, até a morte. “Era como rituais xamânicos, mas com álcool. Como isso é muito transcendental, recolvi fazer uma alegoria, mostrar o lado místico dessa história”, diz o diretor.

Café Aurora (PE) trata dos limites de uma relação amorosa – de alguma forma, todos somos cegos ou surdos. Antes do filme, o diretor Pablo Polo fez justa homenagem a João Sagatio, chefe eletricista de longa carreira, iniciada com O pagador de promessas. Pena que as luzes do Cine PE acenderam antes do final, durante os créditos, para anunciar a homenagem a Camila Pitanga. Quebrou o clima do filme. É um desrespeito ao diretor, mais ainda por ser “da casa”.

Fôlego do cinema de Pernambuco

A presença de quatro produções pernambucanas inéditas no 43º Festival de Brasília é mais uma prova do bom momento do cinema feito no estado. O evento, que começa na próxima terça-feira e segue até o fim de novembro, costuma aplaudir filmes que refletem o atual momento político e apostam na criatividade narrativa.

Foi assim com os longas Baile perfumado, Amarelo manga, Baixio das bestas e curta-metragens de Camilo Cavalcante e Kleber Mendonça Filho, todos premiados em edições anteriores do festival.

De forma que Vigias, de Marcelo Lordello, Café Aurora, de Pablo Pólo, Acercadacana, de Felipe Peres Calheiros e My way, de Camilo Cavalcante, os novos selecionados para as mostras competitivas deste ano, já entram no páreo com esse background a favor.

Para saber um pouco sobre cada um, o Diario conversou com os realizadores. Confira a seguir.

Zelando pelo sono dos outros – Selecionado pelo Concurso de Roteiros Rucker Vieira, Vigias já foi visto no Recife no formato curta-metragem, em sessão especial promovida pela Fundação Joaquim Nabuco.

O novo corte também converte o documentário para o suporte 35mm, o que deve dar a ele novas cores e luzes. ´A narrativa agora está completa`, diz Marcelo Lordello, um dos realizadores da Trincheira Filmes. ´Ela precisava de mais espaço e tempo para dar conta de todos os personagens`.

Tudo foi feito com R$ 27 mil, impostos descontados. Para viabilizar o transfer para a película, o cineasta Daniel Aragão viajou para Los Angeles, onde o processo é 80% mais barato do que no Brasil.

Como o título sugere, os personagens do filme de Lordello são aqueles que ficam atentos nas portas dos condomínios, zelando pelo sono dos moradores. Seu recorte é mais sensorial do que geográfico.

Durante várias noites do Recife, uma equipe reduzida de sete pessoas visitou profissionais da vigilância da cidade.

´Meia hora de conversa bastava para entender o tipo de abertura e começar a filmar. Não queria um filme de pesquisa de personagem, de vida anterior. Em vez de obedecer algum tipo de dispositivo, me permiti sentir o tempo e observar a relação que se estabelece na hora`, explica Lordello.

Melancholic frevo – Veterano em Brasília, Camilo Cavalcante não adianta muito sobre My way, seu novo curta de ficção.

´É uma pequena parábola sobre a solidão humana. E nada melhor do que o Galo da Madrugada, esse bloco enorme, para encontrar mais um sofrendo na multidão`. Na base de duas câmeras (ele e Camilo Soares), um ator (Silvio Pinto, com quem já trabalhou em O presidente dos Estados Unidos), e muito suor, Cavalcante considera que fez um vídeo experimental, de resultado “bem emocionante”.

´Vai de Vassourinhas a My way, de Frank Sinatra. Se disser mais, perde a graça`, diz o realizador, que convida o público recifense a comparecer no Festival de Vídeo de Pernambuco, que também selecionou o curta.

Vivendo o momento – ´O filme é uma ode ao detalhe`, diz o diretor Pablo Pólo, sobre Café Aurora, seu primeiro projeto 100% autoral. Ele está ansioso para sentir o retorno do público de Brasília. ´É meu momento de realização artística, pois estreei como ator muito novo, depois me afastei e sempre havia uma lacuna para me expressar artisticamente`.

O projeto surgiu anos atrás, a partir da simples ideia de um personagem que se apaixona por outro. Ele é um barista que encara o desafio de se comunicar com ela, uma artista plástica que faz uma escultura e dá um tempo para tomar um café. ´Hoje vivemos conectados, escrevemos no computador enquanto ouvimos música. E no filme é o contrário, eles se desconectam do mundo, se dedicam a curtir o momento. A capacidade de viver as situações de forma profunda é o que une os personagens`.

Tem gente no CanavialAcercadacana é resultado de um processo de aproximação com a agricultora Maria Francisca, que há 40 anos mora em terreno rodeado por plantações de cana na Zona da Mata Norte e está ameaçada de perder a terra para um grupo usineiro.

O engajamento político dos realizadores evidencia a desproporção da disputa pela terra. ´Queremos discutir os lugares de poder e as possibilidades do cinema documentário interagir com isso`, diz o diretor Felipe Calheiros. ´Ao mesmo tempo, há cuidados que podem interessar do ponto de vista da construção da narrativa e montagem`.

A justiça concedeu o direito de usucapião a Dona Francisca, mas a usina recorreu e o caso ainda transcorre nos tribunais. Ela estará em Brasília com os realizadores e juntos divulgarão uma campanha pelo limite da propriedade da terra, uma proposta de emenda constitucional pela reforma agrária.

Brasília costuma receber bem filmes politicamente posicionados. Nesse sentido, Acercadacana tem tudo para se dar bem no festival. ´Tudo faz crer que a discussão vai ser boa. Estamos curiosos para essa sessão`.

Desde o início, o projeto foi bancado pela própria equipe. Para fazer o transfer para a película 35mm, houve aporte de R$ 40 mil da Fundarpe. Após a visibilidade obtida em Brasília, a ideia é começar a produção de um longa sobre o contexto da cultura do etanol.

(Diario de Pernambuco, 21/11/2010)