Um homem chamado coragem

Em 1908, os inquietos pela morte de Machado de Assis não tinham como saber que pouco tempo antes nascia outro grande escritor negro: o pernambucano Francisco Solano Trindade. Diferente de seu antecessor, que goza de fama mundial, a obra de Solano é algo que ainda precisa ser descoberta.

Poeta, pintor, cineasta, homem de teatro e pesquisador da cultura popular, Solano Trindade é considerado um vanguardista, tanto na política quanto nas artes. Apesar de não figurar no panteão dos imortais, ele vive através daqueles que são declamam e propagam sua obra, marcada pela sensibilidade e indignação perante as injustiças étnica e social.

No ensejo dos 100 anos, o Diario de Pernambuco preparou uma reportagem especial que busca entender quem foi, e qual o legado de Solano Trindade. Um recifense que, mesmo discriminado, perseguido e preso pelas ditaduras, ganhou o mundo e fez de sua vida uma obra de arte.

No próximo dia 24 (quinta-feira), Solano Trindade completará um século de vida. A data está sendo lembrada em eventos, intervenções e lançamentos. Em Garanhuns, cidade em que publicou seus primeiros versos, ele será declamado no dia do aniversário, na Casa dos Pontos de Cultura, pelos poetas Fernando Chile, Valmir Jordão, Miró, Cida Pedrosa, Silvana Menezes, Malungo, e Suzana Morais.

No mesmo dia, o poeta negro também estará presente no Recife, através do documentário Solano Trindade 100 anos, de Alessandro Guedes e Hélder Vieira. Realizado com recursos do Funcultura, o filme será exibido às 19h, no auditório da Livraria Cultura (Paço Alfândega). Com depoimentos de familiares e amigos de Solano, esta será uma oportunidade de conhecer melhor uma biografia “no mínimo, instigante”, na opinião dos diretores. “Fazer um documentário sobre a vida e obra de Solano Trindade foi um grande desafio. Quando eu tive o primeiro contato com sua obra, me interessei pelos variados temas que seus poemas abordam. Ele fala de questões sociais e da cultura popular de forma muito direta”, afirma Guedes.

No entanto, o maior tributo a Solano Trindade pode chegar somente no próximo mês, quando será homenageado ao lado de Josué de Castro, pelo 6o Festival Recifense de Literatura. Marcada para 24 de agosto no Teatro de Santa Isabel, a cerimônia de abertura será um encontro especial entre poetas inspirados em Solano Trindade e a Orquestra Sinfônica do Recife.

No calor do momento, três títulos estão chegando ao mercado editorial: as coletâneas O poeta do povo (Ediouro, R$ 24,90), Poemas antológicos (Nova Alexandria, R$ 35) e o livro infantil Tem gente com fome (Nova Alexandria, R$ 22). Ainda este ano, mais dois livros serão lançados: um volume com a obra completa de Solano, a ser publicada pela Fundação de Cultura do Recife, e a coletânea de ensaios Para não perder a saudade (Companhia Editora de Pernambuco), com organização da educadora Inaldete Pinheiro de Andrade. Para ela, a obra de Solano é uma “árvore frondosa”, que protege quem nela procurar abrigo.

Poeta da resistência – Ainda há muito a ser dito sobre Solano Trindade. Poeta, pintor, homem de cinema e teatro, e pesquisador da cultura popular, foi vanguardista tanto na esfera política quanto nas artes. Além de uma plena consciência étnica e social, tinha profunda certeza de seu opção enquanto artista combativo e popular, como revelou mais tarde, no prefácio ao livro Cantares a meu povo (1961): “Sem querer discutir o valor dos herméticos concretistas, neoconcretistas, dadaístas, etc (eruditos donos da cultura ocidental), prefiro levar ao meu povo uma mensagem, em liguagem simples, em vez de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais”.

Nascido no São José, bairro pobre, mas que “ficava bem bonito, metido num luar”, Solano cresceu no Pátio do Terço, em frente à casa de Badia. Seu pai, além de exercer o ofício de sapateiro, era mestre de pastoril. Daí o inevitável contato com a cultura popular tão presenta na sua obra: “Bumba meu boi / da minha infância / ‘Seu Capitão’ / minha fantasia / ‘Mateu Bastião’ / primeiro poema / que o povo me deu”, diz um de seus poemas.

Desde cedo, Solano Trindade revelou uma consciência artística, étnica e social incomum. Com vinte e poucos anos, após constatar que não havia negros nas universidades, fundou a Frente Negra Pernambucana, junto ao sociólogo José Vicente Lima (que chamava o movimento de segunda abolição), o pintor gaúcho Miguel Santos, e os intelectuais Gerson Monteiro de Lima e José Melo de Albuquerque. A primeira reunião se deu em 1936, no Clube dos Lenhadores. “Esse foi o nascedouro”, acredita o desembargador Gustavo Augusto, filho de Vicente Lima.

No mesmo ano, a FNP mudou o nome para Centro de Cultura Afro-brasileiro e, numa época em que começava a soprar pela Europa o vento do nazismo lançou uma carta-manifesto pela igualdade racial: “Não faremos lutas de raças contra raças, porém ensinaremos aos nossos irmãos negros que não há raça superior nem inferior e o que nos faz distinguir um dos outros é o desenvolvimento cultural”, diz o texto, que ainda invoca os escritores Humberto de Campos, Gilberto Freyre, Cruz e Souza, Henrique Dias, entre outros.

Mais do que nos versos, Solano vivia sua liberdade na prática cotidiana. Sua vida de viajante começou em 1940, quando viveu em Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Após rápida volta à terra natal, Solano partiu para o Rio de Janeiro. “Depois que ele viajou, nunca mais voltou”, disse Dona Maria da Penha, irmã de Solano, à reportagem do Diario. Ela conta que o poeta se foi, mas deixou esposa e filhos com a família, no bairro do Pina, para mais tarde reencontrá-los na capital carioca. Aos 91 anos, Dona Penha guarda a lembrança do irmão com carinho. “Ele era alegre e namorador”, lembra, risonha.

Solano nunca voltou ao Recife, mas a cidade sempre o acompanhou, tanto na poesia, quanto na figura dos amigos que aqui deixou, como provam as cartas enviadas a Vicente Lima. O primeiro livro, Poemas de uma vida simples, veio em 1944, e junto com ele, o reconhecimento literário. Nessa época, o jornalista e compositor Nestor de Hollanda afirmou Solano ser o primeiro poeta negro do Brasil. Logo depois, a repressão política da ditadura Vargas enxergou no poema-denúncia Tem gente com fome motivos para recolher os livros e prender seu autor.

Em 1950, ao lado de Edison Carneiro e da esposa Margarida Trindade, a inquietação artística o levou a fundar o Teatro Popular do Negro, com o qual viajou pelo Brasil e Europa e foi convidado por Gianfrancesco Guarnieri a participar da peça Guimba. Ainda no teatro, Solano Trindade foi o primeiro a encenar Orfeu, de Vinícius de Morais. No cinema foi co-produtor de Magia Verde, premiado em Cannes, e ator em seis filmes, entre eles, A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos.

No começo dos anos 60, Solano se muda para a histórica cidade paulista de Embu, onde se torna amigo do escultor Assis e inicia, com outros artistas, um movimento cultural que mudou inclusive o nome da cidade para Embu das Artes. Viveu lá até 1973, quando, doente, voltou para o Rio de Janeiro, sob os cuidados da filha Raquel.

Ainda nos anos 70, Solano voltaria ao cenário artístico através do grupo Secos e Molhados, que musicou o poema Mulher barriguda e Tem gente com fome. Este último, no entanto, novamente censurado, até que, em 1980, Ney Matogrosso conseguiu incluí-lo no álbum Seu tipo. “A faixa ficou muito tempo presa na censura. Todo ano, mesmo depois de sair do grupo, todo disco que eu fazia eu colocava a música lá. Até que um dia eles liberaram, sem explicação alguma do porque não podia antes”, disse Matogrosso, em depoimento para o documentário Solano Trindade 100 anos.

Em seus aspectos formais, a poesia de Solano “senta-se à mesa de Ascenso Ferreira e Manuel Bandeira com a consciência de que esta entre os mais íntimos dos seus”, afirma o crítico literário Márcio d’Oliveira. “Como se esquecer da locomotiva que atravessa a poesia de cada um destes – o Trem de Alagoas de Ascenso, o Trem de Ferro de Bandeira e o Tem gente com fome de Solano? Nesta comunhão de sons, movimento e imagem, vemos um sotaque que parte do folclorismo aristocrático, passa por um futurismo com leves pitadas de contestação e chega ao socialismo anti-racista”, analisa, em pertinente conexão entre Solano e Bandeira.

Afinal, assim como o conterrâneo farto do lirismo comedido e bem comportado, Solano Trindade fez de seus versos um convite à libertação: “não disciplinarei as minhas emoções estéticas / deixá-las-ei à vontade / como meu desejo de viver / É grande o espaço / embora se criem limites / Basta somente que eu sofra a disciplina da vida / mas a estética / deve ser sempre liberta”.

O mestre e seus herdeiros – Ele se foi em 1974, sem nunca ter voltado a Pernambuco. Seu legado, no entanto, segue ecoando na voz dos artistas que nunca deixou de influenciar. Destes, um dos maiores é o poeta França (1955-2007). Um ano após a morte de Solano, ele “incorporou” o mestre e seguiu não para as ruas de Embu das Artes, mas para as ladeiras e redutos de Olinda. Lá fundou o recital “Eu, poeta errante”, que toda quinta-feira mobilizava as pessoas em algum quadrante da cidade.

“A poesia de Solano Trindade foi escrita para ser declamada, e não para a leitura silenciosa. Ela carece do suporte da voz e do gesto, da expressão corporal. É poesia destinada ao espaço público – a tribuna e o palco. Diferente da poesia que se lê apenas com os olhos, na intimidade da casa”, escreve o professor de literatura Zenir Campos Reis, no texto de abertura da coletânea recém-lançada Poemas Antológicos.

França não foi o único a incorporar na própria vida a poética alegre e combativa de Solano. Outro de seus herdeiros é Inaldete Pereira de Andrade, que em 1989 fundou o Instituto Solano Trindade, com o objetivo de dar mais visibilidade ao poeta e trabalhar sua obra no contexto da educação. Por falta de recursos, a entidade fechou em 1996, mas Inaldete continuou. Aos 62 anos, ela está na ativa, promovendo oficinas de literatura em comunidades negras, em que utiliza os versos de Solano como recurso educativo. “A poesia de Solano é um instrumento para me comunicar com o cotidiano das pessoas. Ela tem potencial reflexivo, político, e todos os outros recursos que a didática pode oferecer”, afirma a educadora.

Os “filhos” de Solano também estão na cena recifense dos poetas ditos “marginais”, não somente na temática, como na inspiração ideológica. “Solano é a voz que ficou com a gente. Com ele, aprendi que sou meu próprio movimento, não levanto bandeira na Conde da Boa Vista. Solano fez essa opção quando tentaram trazer ele para a erudição e ele decidiu continuar com o povo. Ele abriu o caminho para a gente passar. Agora é seguir em frente para não esmorecer”, diz Fernando Chile.

Mas este não chega a ser um risco entre os admiradores de Solano Trindade. A palavra mais apropriada parece ser indignação. “Solano reunia todas as estirpes, e nós temos que reviver isso. Ele nunca teve um livro publicado em Pernambuco, mas foi o primeiro a levar o estado para a Finlândia, Eslováquia e outros países da Europa”, lembra o poeta Odmar Braga, cujo protesto é reforçado por Malungo, outro “filho” de Solano: “a pouca divulgação de sua obra em pleno centenário é uma vergonha”.

Depoimentos

“Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva” – Carlos Drummond de Andrade, em carta a Solano, 02/12/1944.

“Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável em sua atividade, poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro. O livro Cantares ao meu Povo é a tomada de consciência disso a que Sartre chamou de negritude” – Sérgio Milliet, poeta e crítico literário, em 1961.

“O Teatro Experimental do Negro funcionou como um núcleo ativo de conscientização dos negros, para assumirem orgulhosamente sua identidade e lutar contra a discriminação” – Darcy Ribeiro, extraído do livro Aos trancos e barrancos – como o Brasil deu no que deu.

“Mulher barriguda não é uma música ultrapassada pelos acontecimentos. Ela é atualíssima, infelizmente!” – Ney Matogrosso, em depoimento no documentário Solano Trindade 100 anos.

“Suas frentes de luta foram inúmeras. Em todas, ele teve proeminência, um papel estratégico. Nesse sentido, eu considero Solano uma das figuras maiores do século 20” – Sérgio Mamberti, ator e cineasta, em depoimento no documentário Solano Trindade 100 anos.

(Diario de Pernambuco, 20/07/2008) 

Centenário de Lula Cardoso Ayres passa em branco

Os 100 anos de Lula Cardoso Ayres, completados no último 26 de setembro, aguardam para serem devidamente comemorados. Até o momento, iniciativa alguma foi promovida pelo poder público ou privado para celebrar a vida e obra de um artista que conta com mais de 6 mil pinturas, desenhos, fotografias, murais e serigrafias espalhados pelo Brasil.

E também no exterior, em embaixadas do Brasil ou como o quadro que faz parte do acervo do Palácio de Buckingham, doado em 1968 pelo governador Nilo Coelho à rainha Elisabeth.

O único evento confirmado está marcado para o início de dezembro pelo Museu de Arte Moderna da Prefeitura do Recife, que promove uma exposição de fotografias feitas pelo artista. No mais, não faltam boas intenções, como as da Fundação Gilberto Freyre, que pretende organizar exposição no Espaço Cícero Dias da Secretaria da Fazenda. E a da secretaria municipal de Cultura, que desde o início da gestão está em diálogo com Lula Cardoso Ayres Filho para abrigar parte de seu acervo para uma das casas do Pátio de São Pedro.

“Queremos trabalhar também com o seu acervo de cinema, chegamos a cogitar sessões a céu aberto no Pátio, mas por enquanto não dá porque a reforma do Forte das Cinco Pontas deslocou o pessoal para uma das casas do Pátio”, diz o secretário Renato L.

“Os cem anos começaram agora”, diz Lula Cardoso Filho, que planeja as próprias ações. Há três anos, ele está impedido de levar à frente o instituto que levava o nome de seu pai por problemas administrativos, o que mantém não só a obra do artista como um rico acervo de filmes, livros e discos a portas fechadas.


O artista, fotografado por Alcir Lacerda
Acervo Fundação Joaquim Nabuco

Lula prevê que os impedimentos se resolvam até o fim do ano e o acervo do pai volte sob a tutela de uma nova instituição. “Com a volta do nosso trabalho, o primeiro projeto será de resgate e catalogação de sua obra”.

Das obras mantidas por instituições públicas, a maior coleção está na diretoria de documentação da Fundaj. São 60 livros, 112 ilustrações, quatro pinturas, 109 fotografias, 11 capas de revista e quatro capas de LPs disponíveis para consulta. No Museu do Estado há três telas, que pertenciam ao extinto Bandepe. No Museu de Arte Moderna de Olinda, há uma grande tela a óleo, da série Assombrações do Recife.

O Mac também pretende lançar uma retrospectiva do artista, para o ano que vem. Já um série de desenhos do acervo do Mamam esteve exposta entre abril e junho, na reinauguração do espaço.

Fotógrafo dos tipos humanos


Ascenso Ferreira beija a mão de Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante
Acervo Fundação Joaquim Nabuco

Um lado pouco conhecido, mas nem por isso menos importante de Lula Cardoso Ayres, o de fotógrafo, será apresentado ao público no mês de dezembro. Organizada pelo Mamam com curadoria de Geórgia Quintas, a exposição contará imagens já do acervo da Fundaj, acrescidas de fotos do arquivo pessoal do artista, que estão em fase de restauração, digitalização e ampliação.

“É um trabalho desconhecido, que envolve não só a exposição mas a recuperação, o registro e a reflexão desse material”, diz Beth da Mata, diretora do Mamam. Prevista para este mês, o evento foi reagendado para dezembro devido ao calendário do museu.

Imersa no levantamento de centenas de cromos e negativos, Geórgia diz que a pesquisa está sendo uma grande descoberta. “Lula não era conhecido como fotógrafo, mas era muito cuidadoso, era quase um etnógrafo. Além de folguedos e o carnaval, ele gostava de registrar tipos humanos, o casario e fachadas, que ele documentava com fins pragmáticos de trabalhar em exercícios pictóricos”.

Murais que sobrevivem ao tempo

Em determinado momento da carreira de Lula Cardoso Ayres, o muralismo se tornou sua principal atividade. Dos mais de 100 que foram espalhados pelo Brasil, poucos restaram para ilustrar a trajetória do artista. No Recife, alguns permanecem e estão disponíveis para apreciação. Mesmo os localizados em empresas ou instituições privadas, eles estão posicionados de forma a serem vistos por clientes ou visitantes. Já os instalados no Aeroporto dos Guararapes, apesar de situados em prédio público, devem permanecer fora de alcance por algum tempo.

O Diario de Pernambuco conferiu os dez principais murais do artista e fez um roteiro para quem pretende conhecer melhor essa obra. Além deles, a Universidade Federal Rural de Pernambuco mantém um grande painel de óleo sobre tela, que fica no seu auditório. Mesclada ao cotidiano, essas imagens por vezes podem se tornar invisíveis. Mas que talvez, justamente por isso, continuam vivas, testemunhando o dia a dia das pessoas que Lula tanto retratou.

Lula Cardoso Ayres Filho nos orientou nessa jornada. Ele lamenta que parte dos murais e painéis de seu pai tenha sido demolida, como o que ficava na antiga rodoviária no centro da cidade. “Até fim dos anos 1950, tudo era feito na parede. Depois ele começou a produzir em telas, ficou mais prático fazer o transporte, quando necessário”. O próximo mural a cair pode ser o que fica no antigo Instituto Oceanográfico, em Piedade, onde será construído um edifício. “Se houvesse respeito à obra de arte, eles poderiam fazer uma adaptação arquitetônica”, diz Lula.

Através desse roteiro, também é possível perceber a utilização de diferentes técnicas e a evolução do artista ao longo dos anos. Gilberto Freyre, que considerava Lula Cardoso um grande experimentador, escreveu em 1960 artigo em que coloca o artista como o inventor de um novo tipo de mural épico: “Não que esse épico signifique o convencionalmente heroico – que, aliás, já não corresponde ao moderno conceito de épico. Mas pelo que sugere de luta cotidiana do brasileiro sobre obstáculos ao seu desenvolvimento; pelo que evoca de confraternização de homens e mulheres de raças diversas e cores diferentes; pelo que valoriza das formas e das cores do Recife – cidade crescida à custa de tanta dor que nenhuma outra no Brasil, excede em martírio”.

Um roteiro de murais

1. Fundação Chesf de Assistência e Seguridade Social – Fachesf
Rua Paissandu, 58 – Boa Vista
1947, óleo sobre parede

Com 5,5 x 2,4 m, ele fica no segundo andar da instituição, em sala de reunião restrita a funcionários. Este é o primeiro mural de Lula Cardoso Ayres, que havia acabado de chegar da Usina Cucau. Daí a intensidade do tema rural. O trabalho, feito por encomenda do médico Arthur Moura, amigo do artista, o levou a assumir outros, que com o tempo se tornou sua principal atividade. Em 1988, um ano após a morte do artista, ele foi restaurado. Em 2007, ele passou por um novo processo de recuperação.

2. Citibank

Rua Marquês de Olinda, 126 – Recife Antigo
Década de 1960, desenho sobre cerâmica

São duas obras feitas por encomenda da instituição bancária, cujo prédio foi construído na mesma época. O principal foi concebido para incorporar o desenho da escada. Ele representa os telhados da cidade mas, dos murais remanescentes, este deve ser o que mais se aproxima do abstrato. Como as linhas têm a mesma inclinação da escada e do corrimão, é como se eles fizessem parte do painel.

3. Loja Emmanuelle
Rua Nova, 379 – Santo Antônio
1967 – resina sintética e óleo sobre painel

Realizada para o antigo Banco do Povo, este mural era originalmente composto de dois painéis sobre a vida no campo. O espaço virou ponto comercial, que adaptou o mostruário para preservar a obra.

4. Cine São Luiz
Rua da Aurora, 175 – Boa Vista
1952 – óleo sobre parede

Com a reativação do espaço pelo Governo do Estado, desde o início do ano a obra voltou a ornamentar o hall de entrada deste tradicional cinema de rua. A convite do grupo Severiano Ribeiro, o arquiteto Maurício Coutinho reservou a parede do hall de entrada do Cine São Luiz especialmente para o mural. Pouco antes do governo assumir o local, a Universidade Barros Melo executou a restauração da obra. “Ela mostra a transição da cidade, casarões, as cores. E também representa a transição da vida de fora para o mundo do sonho, do cinema”, diz Lula Cardoso Filho.

5. Microcamp Guararapes
Av. Guararapes, 154 – Santo Antônio
Década de 1960, desenho sobre cerâmica

Construído por Ademar da Costa Carvalho, o Edifício Al Mare conta com um painel posicionado no térreo. Aplicado em resistente cerâmica Conrado Sorgenicht, de São Paulo, o desenho de tons de verde e vermelho representa um engenho. Até dois anos atrás, o local era uma casa de jogos e o painel ficava ao lado de máquinas caça níquel e um cofre. Atualmente, ele fica dentro de uma sala de aula.

6. Restaurante Varanda
Sport Clube do Recife, Ilha do Retiro
1967 – resina sintética e óleo sobre painel

Torcedor do Náutico, de onde chegou a ser presidente, o artista superou o amor ao time e presenteou o clube rival com o painel que mostra o casario na beira do Capibaribe. A doação na verdade foi uma homenagem ao arquiteto Augusto Reinaldo, que desenhou o projeto da sede do Sport. Aluno de Lula Cardoso, ele separou uma parede para o painel, mas antes de executar a obra, morreu em acidente de avião. As condições do painel não são as ideais: a tinta está rachada e as cores apagadas em alguns pontos.

7. Caixa Econômica Federal
Shopping Recife – Boa Viagem
1960 – Resina sintética e óleo sobre tela

Dos três murais produzidos para a matriz do banco na Avenida Guararapes, hoje desativada, dois continuam disponíveis na agência do shopping. O terceiro foi retirado para restauro. O conjunto irá compor a entrada da futura sede da Caixa Cultural, que funcionará no antigo prédio da Bolsa de Valores.

8. Estação Central do Metrô
Rua 6 de Março, s/n – São José
1985 – Resina sintética e óleo sobre tela

Posicionado na área de embarque, estes são os últimos painéis criados por Lula Cardoso e representam as quatro regiões do estado: litoral, zona da mata, agreste e sertão. Incialmente, eles foram colocados no Museu do Trem. Com o espaço desativado, eles foram retirados e em 2007 foram restaurados e trazidos para o metrô. “Acredito que com a chegada do Centro Cultural Capiba ele volte para o local original”, diz Lula Cardoso Filho.

9 . Aeroporto Internacional dos Guararapes (Inacessível)
Praça Salgado Filho s/n – Imbiribeira
1957-58 – óleo sobre parede


Detalhe do mural Ciclos Econômicos
Acervo Infraero

Do conjunto original de cinco murais, três foram demolidos em 1982. Os dois restantes, intitulados Folclore e Ciclos econômicos, estão isolados na parte antiga, pois não puderam ser transferidos para o novo aeroporto, em 2004. De acordo com a assessoria de imprensa da Infraero, elas devem voltar a público com a inauguração da Asa Sul, obra sem data definida para entrega.

10. Edifício JK (Inacessível)
Av. Dantas Barreto – Santo Antônio
Anos 60 – óleo sobre parede

Um grande mural foi feito para a Casa da Indústria e representa trabalhadores de várias profissões e em diferentes fases da vida. O edifício foi desocupado pelo INSS em 1999 e deve voltar à ativa em 2011. Nele funcionará um campus da Faculdade Boa Viagem e Imip. O mural será restaurado e continuará posicionado no hall de entrada.

Lula Cardoso Ayres nos museus do Recife

Museu do Estado de Pernambuco
Av. Rui Barbosa, 960
Graças
Informações: 3426-5943

Galeria Ranulpho
Rua do Bom Jesus, 125
Recife Antigo
Informações: 3225-0068

Fundação Joaquim Nabuco
Rua Dois Irmãos, 92
Apipucos
Informações: 3073-6529

(Diario de Pernambuco, 03/10/2010)

Eterno Patativa

Há 100 anos nascia Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. O timbre trêmulo de sua voz se findou em 2002, mas o agricultor cearense que se tornou um dos maiores representantes da cultura popular nordestina continua na memória dos que o conheceram e se inspiram em sua obra. Em sua terra natal, as homenagens começaram desde 1º de março, e chegam hoje ao ponto máximo com queima de fogos, café literário, cantorias, programa de rádio, missa, shows de Dominguinhos e Fagner, e a inauguração da reforma da casa de taipa onde nasceu, na Serra de Santana, a 12 km de Assaré, agora aberta à visitação.

Sua vasta produção literária, ao contrário do que ocorre nas efemérides de escritores consagrados, não foi relançada em edições de luxo. Primeiro, porque isso iria contra a própria essência de Patativa, que optou por viver de forma simples, mesmo após o reconhecimento dos acadêmicos europeus. Segundo, porque seus livros, constantemente reeditados, nunca deixaram de frequentar as livrarias. Por outro lado, as declamações em áudio não estão acessíveis – e vale perguntar por que.

Em termos atuais, Patativa seria considerado analfabeto funcional, pois sabia ler e escrever com alguma dificuldade. No entanto, assim como ocorreu com Angenor de Oliveira, o Cartola, sua incrível habilidade com as palavras o tornou um dos maiores poetas brasileiros.

Órfão aos oito anos, o pequeno Antônio não teve vida fácil. Com a ajuda do irmão mais velho, sustentou a família na roça. Frequentou escola por apenas quatro meses. Aos 16 anos, comprou seu primeiro violão e passou a cantar de improviso. Aos 20, um tio o levou para a capital, onde foi apresentado ao escritor José Carvalho de Brito, que começou a chamá-lo de Patativa. Nos anos 50, com a ajuda de José Arraes de Alencar, publicou seu primeiro livro Inspiração nordestina, pela editora Borçoi.

Não bastasse ter perdido a visão ainda criança, em decorrência de mazela popularmente conhecida como dor-d’olhos, aos 64 anos Patativa foiatropelado ao atravessar uma avenida em Fortaleza. Foi para o Rio de Janeiro na busca de um melhor tratamento, mas foi hospitalizado como indigente, até ser reconhecido por um médico residente que era do Crato, e conheceu o poeta anos antes, na casa da mãe do ex-governador Miguel Arraes, outro cearense do Araripe.

Outro golpe veio em 1993, com a morte de Dona Belinha, a esposa a quem sempre se declarou e atribuiu ser fonte de sua alegria. Morreu aos 93, rodeado de familiares e amigos, que íam visitá-lo em caravanas.

No entanto, sua voz continua a ecoar no trabalho de artistas por ele inspirados, como Luiz Gonzaga (que gravou A triste partida), Fagner (Vaca estrela e boi fubá, depois gravada por Rolando Boldrin, Sérgio Reis e Pena Branca e Xavantinho). “Quando tinha 10 anos, eu adorava ouvir Patativa no rádio, eu imitava aquela voz matuta. Já adulta, descobri um livro dele na casa de um amigo, e vi nele o nosso rap-repente. Quis musicar isso”, disse a cantora Daúde, que no seu disco de estreia gravou Vida sertaneja.

Lirinha, que teve nas estrofes de Patativa uma das inspirações para sua performance com o Cordel do Fogo Encantado, esteve com o poeta em mais de uma ocasião. “A primeira poesia que declamei profissionalmente foi Espinho e fulô, em 1987, no 4º Congresso de Cantadores do Recife. Patativa entrava nos intervalos dos cantadores mas, diferentemente dos outros declamadores, ele improvisava na estrofe falada, que a gente chama nesse meio de glosa, e passava 15 minutos falando com as pessoas da plateia”, lembra Lirinha.

“Aprendi com Patativa que a poesia pode falar dos problemas sociais. Tenho com ele uma relação afetiva, de respeito e identificação por perceber que ele é moderno antes de tudo” – Daúde, cantora

“Patativa foi uma das minhas primeiras inspirações. Dos 12 aos 17 anos, eu queria fazer aquilo que ele fazia. Minha escola foi o vazio do palco e o microfone, e desenvolvi a técnica de interpretar longas poesias a partir dele e outros grandes declamadores” – Lirinha, ator, cantor e compositor

Dois poemas de Patativa

Trecho de A triste partida, eternizado na voz de Luiz Gonzaga

…Sem chuva na terra
descamba janêro,
Depois, feverêro,
E o mêrmo verão
Entonce o rocêro,
pensando consigo,
Diz: isso é castigo!
Não chove mais não!

Apela pra maço,
que é o mês preferido
Do Santo querido,
Senhô São José.
Mas nada de chuva!
Tá tudo sem jeito,
Lhe foge do peito
O resto da fé.

Agora pensando
segui ôtra tria,
Chamando a famia
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
Nós vamo a São Palo
Vivê ou morrê…

O amigo Joaquim Pinheiro Bezerra de Menezes, que acompanhou de perto parte da trajetória de Patativa, lembra episódio em que D. Hélder Câmara queria denunciar a violência de que foi vítima o Padre Henrique, torturado e assassinado em 1969 por agentes da ditadura. “Como a censura limitava muito a divulgação dos fatos relacionados com esta truculência, ocorreu ao Arcebispo que a literatura de cordel não passava pelos censores. Assim, apelou a alguns cordelistas mas não aceitaram a tarefa. Recorreu a Patativa que não só se prontificou a fazer os versos como não quis se esconder sob pseudônimo. Tenho um exemplar, oferecido ao meu pai pelo poeta”
Gentilmente, Pinehrio transcreveu transcreveu 5 das 64 estrofes:

O Padre Henrique e o Dragão da Maldade

E, por falar em injustiça
Traidora da boa sorte
Eu conto ao leitor um fato
De uma bárbara morte
Que se deu em Pernambuco
Famoso Leão do Norte.

Padre Henrique tinha apenas
29 anos de idade,
Dedicou sua vida aos jovens
Pregando a santa verdade.
Admirava a quem fez
A sua fraternidade

Tinha três anos de padre,
Depois que ele se ordenou
Pregava a mesma missão
Que Jesus Cristo pregou
E foi por esse motivo
Que o dragão lhe assassinou.

Por causa do seu trabalho
Que só o que é bom almeja
O espírito da maldade
Que tudo estraga e fareja,
Fez tristes acusações
Contra D. Hélder e a igreja.

Pensando no triste caso
Entristeço e me comovo,
O que muitos já disseram,
Eu disse e digo de novo,
O Padre Henrique é um mártir
Que morreu pelo seu povo.