Ceu, inferno e outras partes do corpo, Rodrigo John, 2011

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A dor da separação amorosa está representada de forma fiel e um tanto peculiar em “Ceu, inferno e outras partes do corpo”. Nele, o fundo do poço é mapeado no loop íntimo de afazeres domésticos e delírios da alma sofredora. A adesão ao martírio, no entanto, não é completa. Ao olhar para o (auto) abandono, Rodrigo John articula o solene e o ridículo, compondo, a partir do humor negro, um pano de fundo que coloca o coração partido no topo das manifestações do apocalipse.

Esta verdade é estabelecida de maneira absoluta desde o início, quando o protagonista, um cachorro humanizado, acorda de manhã e ignora outro inferno, o núcleo urbano em conflito enquanto transita do quarto ao banheiro, da cozinha à sala de jantar. Sons da cidade se entrelaçam até sumir sob um samba de Jamelão, dando conta do estado de espírito, ao mesmo tempo em que estabelecem o ritmo e a atmosfera do mundo particular à deriva. Enquanto arruma a casa e se arruma para o trabalho, visões da figura amada fazem seu coração literalmente sair pela boca.

Se na trilha musical o curta se beneficia da beleza e tristeza de um clássico da dor-de-cotovelo, no plano visual tem a seu favor o estilo irregular e sujo de Fábio Zimbres um dos melhores ilustradores e quadrinistas brasileiros, conferindo à história um frágil e condizente aspecto de rascunho. Da miséria sentimental ao esquartejamento e autoflagelação, o traço “feio” e tudo o que ele representa na história do quadrinho marginal brasileiro – entre tantos feitos, Zimbres é criador da revista “Animal” (1987-91) – estabelecem um interessante contraponto punk para a fossa infinita de quem leva a sério a fábula do amor romântico.

Fábio Zimbres se tornou mais conhecido no início dos anos 2000, quando teve uma tira diária, “Vida Boa”, publicada em jornal paulista de grande circulação. Nela, um cachorro melancólico propenso à filosofia barata compartilha desesperança no balcão de bar. Uma influência direta para “Ceu, inferno e outras partes do corpo”, com a diferença de que o antropomorfo de Rodrigo John não fala, cabendo ao diretor exercitar a habilidade no uso de expressões faciais e outros recursos não-verbais de expressão física e emocional. No entanto, ainda que de forma econômica, a palavra tem importância desde o início do filme, na letra da música (“Loucura”, de Lupicínio Rodrigues e Rubens Santos) e na epígrafe final, que alinha Machado de Assis ao espírito do filme: “Essa é a grande vantagem da morte, que se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar”.

“Ceu, inferno e outras partes do corpo” é uma obra com grande poder de síntese, na fronteira entre o cinema experimental e o narrativo. Sobre isso, Rodrigo disse, em entrevista concedida no Festival de Brasília de 2011: “A animação experimental vem dos primórdios do cinema, mas sempre foi mais marginalizada. Agora fronteiras estão se diluindo, o que permite a essas poéticas trazer para o cinema narrativo convencional um espaço para o caos e desordem. Temos que trabalhar com o imponderável, pois estamos lidando com seres humanos e um planeta que está explodindo”.

O diretor traz para esta conversa o uso de animais em cartuns e desenhos animados, tradição à qual o filme ironiza ao mesmo tempo em que torna conveniente. Ainda que domesticado pelos códigos da convivência, a atitude civilizada não elimina do personagem a essência canina, o que por um lado, por ser caricatura, gera identificação imediata, e por outro, torna as vísceras, membros e outras cenas de violência mais aceitáveis (outra tradição nos desenhos animados).

Outro diálogo importante é de ordem cinéfila, uma apropriação dos códigos de gênero, que alterna os delírios do protagonista na forma de suspense, filme de guerra e um sangrento musical. Aqui vale ressaltar a trilha original de matriz erudita, uma composição barroca que culmina em uma interessante sequência em rotoscopia vinculada ao clássico “Cantando na Chuva”.

Forma-se assim um filme de apelo universal, um elogio à liberdade criativa dos que optam pelo cinema de animação como via de expressão artística. De um lado, abre-se um horizonte infinito de possibilidades criativas; de outro, é preciso se adequar às imposições próprias da técnica, sob a consciência da manipulação tempo-espaço, base do discurso cinematográfico. Ao “resolver” os dois lados desta difícil equação, este curioso curta gaúcho adquire posição de destaque no panorama da animação brasileira.

(texto escrito em 2018 para o livro Animação Brasileira: 100 Filmes Essenciais, Ed. Letramento / Abraccine, com organização de Paulo Henrique Silva)

Nem Tudo é Verdade, Rogério Sganzerla, 1985

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É tudo verdade: Orson Welles esteve por seis meses no Brasil, filmando It’s all true. Inicialmente a ação estava alinhada a chamada “política de boa vizinhança”, direcionada à América Latina durante a Segunda Grande Guerra. Era 1942 e Welles, aos 27 anos, já gozava de carreira respeitável no rádio, teatro e cinema. Tudo indicava que o filme seguinte a Cidadão Kane seria um documentário sobre o samba carioca, se o enfant terrible não tivesse contrariado a vontade dos produtores, políticos e patrocinadores em reproduzir o discurso oficial. Caiu na boemia dos artistas e jornalistas e foi parar em Fortaleza, onde uma greve de jangadeiros mudou o rumo de um filme que nunca terminou.

De celebridade a persona non-grata, Welles voltou para casa demitido pelo estúdio RKO. Enquanto It’s all true se tornaria apenas o primeiro de seus projetos inacabados, como a adaptação de Moby Dick, No coração das trevas e Don Quixote, no Brasil, o genial primeiro fracasso ganhou proporções míticas, influenciando cineastas como  Glauber Rocha[1], Rogério Sganzerla e Lírio Ferreira[2].

Nem tudo é verdade: ao investigar a tumultuada temporada de Welles no Brasil, o filme que Rogério Sganzerla fez sobre o filme que Orson Welles não fez[3], reafirma a transgressão narrativa e ideológica como elementos inseparáveis da criação cinematográfica. O diretor catarinense compõe como quem olha para o espelho e se vê no norte-americano, a enfrentar imposições financeiras e regimes autoritários para praticar seu ilusionismo. A máquina de filmar é o instrumento mais mentiroso já inventado pelo homem, diz a narração, embriagada.

Se a presença de Welles teve como pano de fundo a ditadura de Vargas e a Segunda Guerra Mundial, Nem tudo é verdade, realizado entre 1978 e 1986, coincide com o fim do regime militar e o advento da Nova República, proclamada sob a morte de Tancredo Neves. Sganzerla via na obra interditada um precursor dos inúmeros problemas de Welles com a censura e a burocracia. Para ele, o Brasil maltratou Orson Welles.

“O filme mostra o abuso de autoridade, a prepotência, a truculência e a ignorância subdesenvolvida”, diz o diretor, em entrevista à Tribuna da Imprensa, em 14 de março de 1987. Vargas, o policial corrupto de A marca da maldade, é visto como uma referência direta ao presidente brasileiro.

O jogo de espelhos continua em estrutura que remete a Cidadão Kane – o começo pelo fim (a morte do jangadeiro Jacaré, último ato antes do diretor retornar aos EUA), o tom radiofônico-informativo do cinejornal, para então passar e repassar cronologicamente a jornada de conquistas e derrotas. “Sempre me considerei um vagabundo, um outsider em qualquer lugar do mundo”, diz Welles, a certa altura, na voz do ator e músico Arrigo Barnabé.

Fotografias, áudios da época, fragmentos de filmes, situações encenadas. Mais do que reconstituição histórica, Sganzerla realiza um documentário investigativo / poético / reflexivo com recursos de ficção que permitem compartilhar a realidade específica do autor. Diante da ausência do material filmado (os rolos de It’s all true foram descobertos pouco antes de finalizar a montagem), ele reorganiza os fatos sob o signo de elementos caros a qualquer tragédia: morte, paixões, abandono, traições e um pano de fundo bélico, interligados em uma miscelânea de arquivos sonoros, músicas, vozes embriagadas e leitura de registros jornalísticos em tom de programa policial. Não por acaso, o filme começa exclamando a data de nascimento de William Shakespeare, adorado por Welles.

O exercício de gêneros ficcionais se evidencia na encenação protagonizada por Arrigo Barnabé e Helena Ignez, espécie de caricatura da caricatura do deslumbramento vivido pelo artista gringo endeusado na colônia. E se completa no melodrama estabelecido em depoimento de Grande Otelo, brilhante testemunho da solidão dos trópicos a partir da saudade do amigo americano, a quem convoca a finalizar o filme do qual participou como ator.

Ao resgatar um sem número de frases ditas ou atribuídas a Welles, o filme molda a imagem do artista íntegro, cuja sensibilidade e observação o levaram à consciência social. “Não vivemos à beira de um abismo, mas nas suas profundezas. Nenhuma crença ou filosofia de vida pode tocar as almas que ainda respiram sobre os escombros”, diz, mais à frente, entre cenas da guerra.

A indomável relação entre ficção e realidade se desenrola sem intervalos, um fluxo fílmico e onírico em busca de olhos livres. Verdade + mentira = arte total, dizem Welles / Sganzerla. Apagam-se as fronteiras e, em última instância, predomina-se outra máxima, também trazida pelo filme: a verdade está no vinho.

[1] Em entrevista a João Lopes (1980), Glauber define Terra em transe como um duelo com Welles, um anti-Cidadão Kane. O século do cinema (CosacNaify, 2006)

[2] Em 1993 Ferreira dirigiu com Amin Stepple That’s a Lero Lero, sobre a passagem de Welles no Recife, pedindo a sua benção – e de muitos copos de úisque – para que o cinema pernambucano voltasse à vida.

[3] Orlando Senna, in. Tourada Panamericana. Revista Filme Cultura nº 45.

(texto escrito em 2017 para o livro Documentário Brasileiro: 100 Filmes Essenciais

Ilha das Flores: carta para o futuro

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Das qualidades de Ilha das Flores, a mais extraordinária é a de transmitir com originalidade e precisão a ideia de que valores básicos precisam ser revistos até que possamos efetivamente nos considerar seres humanos. A visão de Jorge Furtado é tão acessível quanto amarga e busca na representação do lixo o espelho da civilização.

Como uma nave espacial, o filme começa se aproximando da Terra e logo se mostra interessado em compreender o que se passa por aqui. No entanto, seu foco não está direcionado exatamente para o homem, mas para uma plantação de tomates, colocando homens e vegetais no mesmo nível de importância: ambos são objetos passíveis de dissecação.

Sublinhado pela trilha de O Guarani, a mesma que abria o programa de rádio A Voz do Brasil nos anos 1970, o tom solene e professoral da marcante narração de Paulo José reforça a referência à ordem militar e o que segue é uma sequência de situações em somos mostrados como animais alienados e pervertidos. De que adiantam o “tele encéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor” se utilizados para o acúmulo de bens pessoais, a exploração dos mais fracos e a degradação do planeta?

Ainda assim o filme transpira otimismo, pois acredita na tomada de consciência, a ser provocada por um inteligente jogo entre discurso verbal e cinematográfico que levanta e quebra, seduz e contraria expectativas a partir da sucessão e repetição de elementos que mudam de significado conforme a narrativa avança.

A forma inicialmente mecânica na interpretação de Paulo José remete ao pensamento baseado em predefinições, automático, como se o mundo coubesse numa enciclopédia (ou hoje, na Wikipedia). O excesso de informação mimetiza esta lógica, mas o filme não se submete a ela, vertendo sua torrente verborrágica para uma poderosa imagem da falência do processo civilizatório.

Narrar a trajetória de um tomate, da plantação ao descarte, é apenas uma das ironias aparentemente simplificantes das quais o curta se beneficia. Inicialmente o efeito desta estratégia envolve pela ludicidade. De forma aparentemente aleatória, tomates, japoneses, judeus, dinheiro, porcos, tempo e religiões são catalogados e conectados de forma a causar vertigem.

O efeito humorístico é quebrado aos poucos, quando imagens e palavras passam a não se corresponder exatamente, contrapondo o didatismo verbal a cenas da Inquisição, uma bomba atômica e do Holocausto nazista (a desvalorização do outro, comparado a lixo), até que o tom grave predomina e voltamos ao “cinema direto” estabelecido no início.

Hoje paradigmático, o irreverente trabalho de montagem de Giba Assis Brasil utiliza técnicas de vídeo, colagens, referências da publicidade e TV (estética do zapping) e antecipa a estrutura da internet, hipercomunicação, onde palavras acionam imagens de forma tão acelerada (e descartável) que em certos momentos o filme se assemelha a um dispositivo prestes a entrar em pane.

O formalismo manipulativo de Furtado não engessa o pensamento livre dedicado à denúncia dos desastres da loucura travestida de razão. Eleger um tomate o ponto de retorno para uma série exercícios intelectuais que conectam povos bíblicos à sociedade contemporânea foi a forma encontrada para evidenciar a tendência humana a desviar a atenção do que jamais deveria ser ignorado: a violação de direitos humanos e do planeta.

Ilha das Flores subverte não apenas os clichês da propaganda e TV, mas do próprio cinema documental, soprando fumaça (já no primeiro plano, sobre a Terra) e propondo um jogo de tensão e relaxamento que borra os limites do falso e verdadeiro, realidade e ficção.

Em vez de confundir, este recurso criativo leva ao desbloqueio do olhar e à construção de uma consciência. No lixão, a abordagem documental volta a ser a mesma utilizada no início do filme (e em outros filmes, como Gadanho¹, que inclusive utiliza trecho de A Voz do Brasil). Mas nossa percepção já não é a mesma e aponta para o quadro maior da miséria humana.

Ao fim, O Guarani retorna em dilacerante arranjo hendrixiano; Paulo José define liberdade declamando “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles, enquanto vemos pessoas colocadas abaixo dos porcos na cadeia alimentar. Estamos tão indignados quanto convertidos à possibilidade de, a partir das ruínas visíveis e invisíveis, buscar mudanças e bases mais justas para a convivência na Terra – nossa e das gerações futuras.

¹ curta paraibano dirigido por João de Lima e Pedro Nunes em 1979; este e outros pontos de comparação com Ilha das Flores podem ser acessados na monografia “Uma Super 8 e um gadanho na mão: reprodutibilidade técnica, percepção, e estética do lixo em Gadanho” (UFPB, 2014), de Odécio Antonio.

(texto escrito para o livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, 2016)

Ranking da crítica para os longas do Cine PE (escala de 0 a 5)

Convidei um grupo de cinco críticos para, durante o Cine PE, avaliar os longas em competição. O resultado saiu dia a dia, na cobertura que fiz para o Diario de Pernambuco. Agora, reuno todos no mesmo espaço.

Família Vende Tudo, de Alain Fresnot
João Carlos Sampaio / A Tarde (BA) = 1
Maria do Rosário Caetano / Revista de Cinema (SP) = 2
Orlando Margarido / Carta Capital (SP) = 3
Paulo Henrique Silva / Hoje em Dia (MG) = 2
Rodrigo Fonseca / O Globo (RJ) = 0
Média: 1,6

Casa 9, de Luiz Carlos Lacerda
João Carlos Sampaio / A Tarde (BA) = 2
Maria do Rosário Caetano / Revista de Cinema (SP) = 2
Orlando Margarido / Carta Capital (SP) = 3
Paulo Henrique Silva / Hoje em Dia (MG) = 2
Rodrigo Fonseca / O Globo (RJ) = 4
Média: 2,6

JMB, o famigerado, de Luci Alcântara
João Carlos Sampaio / A Tarde (BA) = 1
Maria do Rosário Caetano / Revista de Cinema (SP) = 3
Orlando Margarido / Carta Capital (SP) = 2
Paulo Henrique Silva / Hoje em Dia (MG) = 2
Rodrigo Fonseca / O Globo (RJ) = 0
Média: 1,6

Vamos fazer um brinde, de Cavi Borges e Sabrina Rosa
João Carlos Sampaio / A Tarde (BA) = 2
Maria do Rosário Caetano / Revista de Cinema (SP) = 2
Orlando Margarido / Carta Capital (SP) = 2
Paulo Henrique Silva / Hoje em Dia (MG) = 3
Rodrigo Fonseca / O Globo (RJ) = 2
Média: 2,2

Estamos juntos, de Toni Venturi
João Carlos Sampaio / A Tarde (BA) = 3
Maria do Rosário Caetano / Revista de Cinema (SP) = 4
Orlando Margarido / Carta Capital (SP) = 3
Paulo Henrique Silva / Hoje em Dia (MG) = 4
Rodrigo Fonseca / O Globo (RJ) = 4
Média: 3,6

Casamento Brasileiro, de Fauzi Mansur
João Carlos Sampaio / A Tarde (BA) = 2
Maria do Rosário Caetano / Revista de Cinema (SP) = 1
Orlando Margarido / Carta Capital (SP) = 0
Paulo Henrique Silva / Hoje em Dia (MG) = 3
Rodrigo Fonseca / O Globo (RJ) = 3
Média: 1,8