A dor da separação amorosa está representada de forma fiel e um tanto peculiar em “Ceu, inferno e outras partes do corpo”. Nele, o fundo do poço é mapeado no loop íntimo de afazeres domésticos e delírios da alma sofredora. A adesão ao martírio, no entanto, não é completa. Ao olhar para o (auto) abandono, Rodrigo John articula o solene e o ridículo, compondo, a partir do humor negro, um pano de fundo que coloca o coração partido no topo das manifestações do apocalipse.
Esta verdade é estabelecida de maneira absoluta desde o início, quando o protagonista, um cachorro humanizado, acorda de manhã e ignora outro inferno, o núcleo urbano em conflito enquanto transita do quarto ao banheiro, da cozinha à sala de jantar. Sons da cidade se entrelaçam até sumir sob um samba de Jamelão, dando conta do estado de espírito, ao mesmo tempo em que estabelecem o ritmo e a atmosfera do mundo particular à deriva. Enquanto arruma a casa e se arruma para o trabalho, visões da figura amada fazem seu coração literalmente sair pela boca.
Se na trilha musical o curta se beneficia da beleza e tristeza de um clássico da dor-de-cotovelo, no plano visual tem a seu favor o estilo irregular e sujo de Fábio Zimbres um dos melhores ilustradores e quadrinistas brasileiros, conferindo à história um frágil e condizente aspecto de rascunho. Da miséria sentimental ao esquartejamento e autoflagelação, o traço “feio” e tudo o que ele representa na história do quadrinho marginal brasileiro – entre tantos feitos, Zimbres é criador da revista “Animal” (1987-91) – estabelecem um interessante contraponto punk para a fossa infinita de quem leva a sério a fábula do amor romântico.
Fábio Zimbres se tornou mais conhecido no início dos anos 2000, quando teve uma tira diária, “Vida Boa”, publicada em jornal paulista de grande circulação. Nela, um cachorro melancólico propenso à filosofia barata compartilha desesperança no balcão de bar. Uma influência direta para “Ceu, inferno e outras partes do corpo”, com a diferença de que o antropomorfo de Rodrigo John não fala, cabendo ao diretor exercitar a habilidade no uso de expressões faciais e outros recursos não-verbais de expressão física e emocional. No entanto, ainda que de forma econômica, a palavra tem importância desde o início do filme, na letra da música (“Loucura”, de Lupicínio Rodrigues e Rubens Santos) e na epígrafe final, que alinha Machado de Assis ao espírito do filme: “Essa é a grande vantagem da morte, que se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar”.
“Ceu, inferno e outras partes do corpo” é uma obra com grande poder de síntese, na fronteira entre o cinema experimental e o narrativo. Sobre isso, Rodrigo disse, em entrevista concedida no Festival de Brasília de 2011: “A animação experimental vem dos primórdios do cinema, mas sempre foi mais marginalizada. Agora fronteiras estão se diluindo, o que permite a essas poéticas trazer para o cinema narrativo convencional um espaço para o caos e desordem. Temos que trabalhar com o imponderável, pois estamos lidando com seres humanos e um planeta que está explodindo”.
O diretor traz para esta conversa o uso de animais em cartuns e desenhos animados, tradição à qual o filme ironiza ao mesmo tempo em que torna conveniente. Ainda que domesticado pelos códigos da convivência, a atitude civilizada não elimina do personagem a essência canina, o que por um lado, por ser caricatura, gera identificação imediata, e por outro, torna as vísceras, membros e outras cenas de violência mais aceitáveis (outra tradição nos desenhos animados).
Outro diálogo importante é de ordem cinéfila, uma apropriação dos códigos de gênero, que alterna os delírios do protagonista na forma de suspense, filme de guerra e um sangrento musical. Aqui vale ressaltar a trilha original de matriz erudita, uma composição barroca que culmina em uma interessante sequência em rotoscopia vinculada ao clássico “Cantando na Chuva”.
Forma-se assim um filme de apelo universal, um elogio à liberdade criativa dos que optam pelo cinema de animação como via de expressão artística. De um lado, abre-se um horizonte infinito de possibilidades criativas; de outro, é preciso se adequar às imposições próprias da técnica, sob a consciência da manipulação tempo-espaço, base do discurso cinematográfico. Ao “resolver” os dois lados desta difícil equação, este curioso curta gaúcho adquire posição de destaque no panorama da animação brasileira.
(texto escrito em 2018 para o livro Animação Brasileira: 100 Filmes Essenciais, Ed. Letramento / Abraccine, com organização de Paulo Henrique Silva)