Sessão de Arte UCI Ribeiro apresenta: O milagre de Sta. Luzia

Radiografia do Brasil que toca sanfona, o documentário paulista O milagre de Santa Luzia (Brasil, 2008) tem Pernambuco como seu princípio e fim. Já no primeiro plano, Dominguinhos desponta no horizonte, a pé, na estrada que leva à Exu de Luiz Gonzaga. Da terra de Januário ao litoral, há vaqueiros e seus aboios e a poesia de Patativa do Assaré e sua voz trêmula, prestes a se despedir de nosso plano existencial.

Na capital, Dominguinhos encontra Arlindo dos Oito Baixos em seu reduto, no bairro de Dois Unidos, onde juntos animam um arrasta-pé. No interior da Paraíba, Pinto do Acordeon faz uma divertida versão para New York, New York, cantada em inglês caboclo, mais enrolado impossível. Joquinha Gonzaga, Camarão, Hélder Vasconcelos e Gennaro dão sua contribução antes da equipe pegar a estrada para o Sul – pois nem só de forró vive o acordeon.

No Mato Grosso, Dominguinhos apresenta músicos e ritmos diferentes dos nordestinos. Em São Paulo ele encontra Osvaldinho, amigo de longa data e jovens talentos como Gabriel Levy e Toninho Ferragutti e seus projetos experimentais e cosmopolitas. No Rio Grande do Sul, além de Renato Borghetti, seu nome famoso do “fole” no estado, somos apresentados a músicos de raiz, que vivem na área rural dos pampas.

De volta ao Nordeste, há o depoimento do pesquisador Raymundo Campos, com quem Dominguinhos gravou uma versão inédita de Triste partida. Num dos momentos mais emocionantes, Sivuca recebe Dominguinhos no seu apartamento em João Pessoa. Debilitado, o compositor fala sobre a nobreza e versatilidade do acordeon. E chora.

A despeito do mérito cinematográfico, momentos como este fazem o filme de Roizemblit importante documento sobre a música brasileira.

(Diario de Pernambuco, 27/11/2009)

As palavras do herdeiro

A história de Dominguinhos e Luiz Gonzaga começou em 1950. Época de ouro do baião, onde Gonzaga era o Rei e Dominguinhos era José Domingos de Morais, um menino de oito anos que tocava com os irmãos em Garanhuns. Quatro anos depois, foi Chicão, o pai biológico, quem fez a ponte entre o pequeno músico e o futuro pai artístico, que recebeu a família Morais dando de presente uma sanfona de 80 baixos. “Para nós era o céu”, conta Dominguinhos, em entrevista ao Diario.

Não tardou e Dominguinhos vingou. Consagrado por público e crítica, ele não só deu continuidade, como evoluiu e ampliou o legado da sanfona nordestina. A seguir, ele fala sobre a vivência com o mestre e os rumos do fole prateado, instrumento que um dia brilhou nas mãos de Januário e Gonzagão e hoje segue firme com o talento e a simpatia de seu herdeiro.


Entrevista // Dominguinhos: “Gonzaga enxergava quando um homem tinha valor”

Como Dominguinhos descreve Luiz Gonzaga?
Como o mais importante artista criador que esteve na sustentação da música popular nordestina. Ele foi essa figura que, sem atentar muito para isso, deixou uma imensa obra para seguir e aprender para que ele continue sendo lembrado e sua herança jamais se perca.

Desde que você era garoto, trabalhou com Gonzaga com bastante proximidade. Como foi a convivência com o Rei do Baião?
Ele era aquele sertanejo puro, forte, gente boa. Era duro, às vezes, fazia a gente ficar um pouco assustado, mas imediatamente tudo voltava para o lugar, sem encrenca, pedia desculpas.

Ele também era conhecido como pessoa generosa, com muitos apadrinhados. Isso chegava a ser um problema?
Era meio de veneta. Fazia as coisas meio no rompante, nem sempre acertava. Dava uns foras porque deixava pessoas que não tinham nada a ver se aproximar. Depois caía em si e reclamava. Mas era um ser humano muito bondoso. Enxergava quando um homem tinha valor. Não tinha ciúme. Fazia o trabalho dele e quem quisesse se encostar, não tinha problema.

Gonzaga tinha vários afilhados, mas nomeou você como único herdeiro.
Eu tinha 16 anos quando ele me apresentou como herdeiro artístico. Fiquei surpreso, na época nem sabia o que era isso. Estava gravando com ele numa sessão da RCA, no Rio de Janeiro. Era minha primeira vez no estúdio e ele saiu-se com essa. Zito Borborema, eu e Miudinho formamos o primeiro Trio Nordestino nessa mesma sessão. A gente cismou de fazer um trio como Gonzaga gostava de tocar e passamos a ensaiar. Depois saímos pra viajar pelo Nordeste. Também foi a primeira vez que andei de avião!

Por algum tempo, você também foi o motorista de Gonzagão, não é?
Sim, em algumas viagens, nos anos 60. Às vezes, ele nem ia junto, viajava de avião. Ele queria me levar para o Nordeste com Anastácia, minha parceira. E o jeito que ele arranjou era que eu fosse útil também fazendo propaganda nos lugares onde chegava, com uma corneta em cima do carro. Eu fazia propaganda, abria os shows, depois ele se juntava e fazia o resto do show. Essas viagens foram extraordinárias, eu aprendi muito. Nem Gonzaguinha tirou proveito como eu.

Por falar nisso, você ter sido o preferido de Gonzaga causava ciúmes da parte de Gonzaguinha?
Olha, se tinha ciúmes ou não, eu não prestava muito atenção (risos). Não ligava pra isso. Quando ele se chegou realmente para viver com o pai, eu já estava no convívio com Gonzaga há bem mais tempo. E nós fizemos uma amizade muito proveitosa, fomos parceiros. Não tinha besteira com ele não.

Quando você encontrou Luiz Gonzaga pela primeira vez?
Conheci Luiz Gonzaga em Garanhuns, com oito anos de idade. Eu tocava na porta do Hotel Tavares Correia com meus dois irmãos. Morais tocava a sanfoninha de oito baixos, eu tocava pandeiro e Valdomiro, o melê. Eu nem sabia quem ele era e ele deu dinheiro a meu pai e seu endereço no Rio de Janeiro. Depois eu e meus irmãos fomos para Olinda, onde ficamos internos por quatro anos na Escola Prática e Comercial. Depois, andamos muito pelo interior tocando e pegando bigu em caminhão. Quando meu pai se desenganou e viu que não tinha jeito, não dava pra ficar mais, disse: “vamos para o Rio de Janeiro procurar Luiz Gonzaga”. Meu irmão Morais já tinha ido fazia um ano com um amigo, Zé Paulo e pai tiveram a coragem de ir. Pegamos um caminhão e viajamos por onze dias. E deu certo. Foi aí que me juntei com Gonzaga.

Nos anos 60, Luiz Gonzaga amargou uma baixa na carreira, os discos não vendiam tão bem, o baião havia saído da moda. Como foi enfrentar esse momento?
Às vezes ele se desarvorava, se precipitava. Se aperreava, queria deixar o baião de lado, dizia que o povo não gostava mais dele. Mas isso era num dia. No outro, ele já estava com o pé na estrada. Continuou gravando e falando do Nordeste.

Nos anos 70 o acordeom foi reinserido na MPB e você fez parte disso. Como foi que se deu essa retomada?
Nos anos 50 havia o Mário Mascarenhas, grande professor que montava muita academias. Com o aparecimento da bossa nova, o acordeom começou a desaparecer, principalmente por causa do violão, da guitarra e o teclado, que saiu da igreja para tocar o iê-iê-iê. De repente, todo mundo começou a achar o acordeom pesado. Mas eu fiquei, assim como Chiquinha, também Chinoca, cearense do tempo da rádio Nacional que está no Rio até hoje, Edinho, tinha o Caçulinha, que tocava na chamada Regional de Pernambuco, ótimo músico, Orlando Silveira, Sivuca, que foi pra fora do país e voltou 18 anos depois. Até que o acordeom voltou a despontar devido à influência de Gilberto Gil e Gal Costa, que me colocaram pra tocar representando o Brasil na Midem (na França, em 1973) e depois gravando o disco Índia, no lugar do tecladista. A turma de estudantes universitários começou a redescobrir o instrumento e o acordeom voltou a entrar em evidência.

E hoje, para onde vai o forró sanfonado?
Estamos numa escalada de bons acordeonistas, que tocam muito bem. Nunca houve uma procura tão grande pelo instrumento como hoje em dia. Há muitos valores surgindo como Cezinha, Waldonys, Adelson de Viana. E os que tocam faz tempo, Chico Justino do Ceará, Gennaro que está por aí há muitos anos, mestre Camarão que já vem de muito antes, Arlindo dos Oito Baixos, Manoel Maurício, Geraldo Correia, que mora em Campina Grande, tem mais de 80 anos e é um dos maiores sanfoneiros de oito baixos do Brasil. Tem Luizinho Calixto, né? A sanfona tomou um rumo muito bom. Até os oito baixos estão sobrevivendo bem.

(Diario de Pernambuco, 02/08/2009)

Orquestra do Coque ganha mais projeção

O Teatro da UFPE estava repleto de integrantes da sociedade pernambucana, reunida para a entrega do 5º Prêmio Odebrecht de Engenharia. Se as estrelas da noite foram os três futuros engenheiros agraciados com a comenda, a “cereja do bolo” foi um show promovido especialmente para a ocasião, em que a Orquestra Cidadã dos Meninos do Coque receberam três convidados de peso: Dominguinhos, Yamandú Costa e Silvério Pessoa. Imagens e sons do encontro foram documentados para gerar um CD/DVD com renda revertida para a manutenção do projeto.

O namoro entre a Orquestra Cidadã com uma das maiores empreiteiras do País começou na Bahia, quando o presidente Lula pediu ao presidente da empresa para apoiar o projeto. O primeiro compromisso é a construção de uma sede própria. “Sempre que abraçamos um projeto procuramos deixar algo de sustentabilidade”, disse Érico Dantas, diretor de engenharia da Odebrecht e curador do evento. Ele disse à reportagem que conhece a realidade do Coque, pois há25 anos trabalhou no local para a construção do metrô. “Meu canteiro de obras era dentro do Coque”. E que o “caso” da Orquestra deve ser transformado em “causa”, e ser replicada como exemplo em outras comunidades pobres.

“Esse é um dos melhores projetos que já vi. Estão dando um caminho pra essa meninada que vem da favela. Eles estão lendo música como quem bebe água”, disse Dominguinhos, pouco antes de subir ao palco com o guitarrista Sandro Haick, com quem tocou Princesinha no choro, Molambo (mais Yamandu Costa), Légua tirana e Tenho sede. O sanfoneiro também lembrou da própria trajetória, de origem humilde, e do papel determinante do “padrinho” Luiz Gonzaga para o grande artista que ele veio a se tornar. “A situação hoje é pior, porque antes o comando era da família”, compara. Dominguinhos ainda disse que, de certa forma, a “mão de ferro” de Cussy assume a função atualmente tão rara de estabelecer disciplina.

Silvério, que já se apresentou com a Orquestra Sinfônica da Cidade do Recife e também do Rio de Janeiro, falou nos bastidores sobre o valor estético do diálogo entre popular e erudito. “É um tempero bem aceito pelo público”, disse o compositor. Ele acredita que o valor do encontro ali promovido está não só no repertório e arranjos, mas no olhar particular de cada um dos artistas envolvidos. O maestro Cussy de Almeida vê como positiva a presença da música popular no repertório da Orquestra. “Ela ensina a dimensão rítmica maravilhosamente bem. É importante que eles, como futuros profissionais, tenham um leque aberto de opções de trabalho”.

A Orquestra Cidadã nasceu sob auspícios do desembargador Nildo Nery e do Juiz de direito, João Targino, que convidaram Cussy de Almeida para assumir a direção artística. A primeira empresa a abraçar o projeto foi a Chesf. Depois vieram a Caixa, a Confederação Nacional das Indústrias, a Celpe, a Pamesa, a Unimed (através de planos de saúde gratuitos para os meninos), a Center Produções e agora, a Odebrecht. O grande objetivo é cobrir os custos da primeira etapa do curso, que custa cerca de R$ 1,5 milhão por ano (hoje são 130 alunos). “Dentro de dois ou três anos teremos 20 ou 30 músicos profissionais. Destes, pelo menos 10 deles terão condições de estudar fora do país”, disse o maestro.

Antes da apresentação dos meninos, foi exibido uma espécie de vídeo institucional em que, entre outros momentos, uma garota se alimenta após ser aprovada no teste de admissão. “Agora ela tem a chance de ter um futuro”, diz a voz do narrador; “são meninos que vêm do nada”, diz um militar; “sinto emoção de ver um filho da favela crescendo”, diz a mãe de um menino que vai se apresentar no programa do Faustão. Há também o encantamento do presidente Lula com a Orquestra. “Com o apoio de gente importante como Fausão e o presidente Lula, a Orquestra Cidadã está se tornando um marco da cultura pernambucana”, diz a peça de divulgação, que convida o público a “adotar” um menino ao custo de R$ 1 mil por mês, valor menor do que os R$ 2,6 mil necessários para manter um bandido na cadeia. “A escolha é sua”,completa a narração.

Uma matemática que pode não ser tão simples quanto parece, pois aqui não tratamos de números, mas de gente. Até porque, sem desmerecer o trabalho da Orquestra, deve haver mais opções na vida de um menino do Coque do que entrar para o projeto ou se tornar um bandido.

Show memorável de Dominguinhos

No Recife, a temporada de São João foi aberta da melhor forma possível: sob a benção de Dominguinhos. Na noite de sábado, o sanfoneiro fez um grande show de forró no Chevrolet Hall. Foram quase três horas de apresentação, em que cerca de 1.500 pessoas presenciaram um curso intensivo sobre o gênero criado há 60 anos por Luiz Gonzaga. Este, não há como negar, segue vivo através de Dominguinhos.

Gonzagão esteve presente ali não de forma nostálgica, daquela que engessa seu legado no esquema “pé-de-serra”. Tanto que clássicos como Baião, Forró no escuro, Juazeiro e Asa branca foram interpretados também com guitarra, baixo e bateria, e arranjos (a cargo do paulista Sandro Haick) que incuíram solos de blues e uma pitada de jazz. Além de Haick (na guitarra), Dominguinhos apresentou Mestrinho (jovem talento da sanfona), Edinho (zabumba), Flavinho (triângulo), João Neto (guitarra), seu irmão Valdomiro (agogô), Ivo (caxixi e reco-reco), Wellington (bateria) e Mongol (baixo).

Sem pressa, convidados se revezaram, e deram fôlego à apresentação num palco de ótima estrutura de luz e som (pena que a acústica do local deixe a desejar). O jovem Trio Juriti, apresentado como “afilhados” do compositor João Silva, mas que, de certa forma, agora são do próprio Dominguinhos; Guadalupe (ex-esposa de Dominguinhos), cantou De volta pro aconchego, em interpretação bem próxima à original de Elba Ramalho; Nando Cordel e Jorge de Altinho se empolgaram, e cantaram pelo menos cinco músicas cada; com Xote das meninas, Sabiá e Pelas ruas cantei, Alceu Valença injetou ainda mais alegria no salão; Eu só quero um xodó chegou pela voz da filha de Dominguinhos, Liv Moraes.

Apesar da estrutura pouco convidativa para dança (metade do espaço estava ocupado por mesas), vários casais se jogaram no forró. Mais para o fim, instalou-se o clima de arraial, com quadrilha e tudo. Era nítido o sorriso de satisfação no rosto de Dominguinhos, que aos 68 anos, reina absoluto no centro da festa. Que venham outras.