Amarga poesia da grande cidade

Estamos juntos (Brasil, 2011) traz um apanhado de situações inusitadas, vividas por Carmem (Leandra Leal), médica recém-formada, que chega do interior para fazer residência em hospital público da capital paulista. Após conquistar sete prêmios principais no último Cine PE, o longa de Toni Venturi chega hoje nos cinemas, onde ocupa raro espaço reservado a filmes “médios”, ou seja, capazes de vender mais de 100 mil ingressos, mas sem o apelo de um blockbuster.

Em ambientes fechados e predominantemente escuros, o filme faz uma investigação sobre o comportamento humano na cidade grande, ou melhor, como uma grande cidade pode condicionar essas relações.

À trama: Carmem mora com um homem que age como amante e consultor sentimental (não há indicações seguras sobre seu papel em sua vida), vivido por Lee Thayor. Ele acompanha de perto a aproximação de Juan (Nazareno Casero), saxofonista argentino que divide apartamento e projeto musical com o amigo em comum, Murilo (Cauã Reymond), gay assumido, classe média alta, que almeja carreira de DJ e o coração de Juan. A convite da enfermeira-chefe (Debora Duboc), Carmem se torna médica voluntária para prevenção de DST numa ocupação de sem-tetos. As coisas vão de mal a pior quando ela descobre estar com doença grave.

Para construir sua narrativa, Venturi convocou uma equipe poderosa: Lula Carvalho (fotografia), Hilton Lacerda (roteiro), Renata Pinheiro (arte). O resultado é um filme competente, bonito de ver, que explora as fragilidades e o lado obscuro da gana em viver.

(Diario de Pernambuco, 03/06/2011)

Cine PE sob protesto (noite seis)


O “OVNI” retrô Casamento brasileiro, de Fauzi Mansur

A mostra competitiva do Cine PE terminou na quinta, novamente esvaziada pela paranóia sobre um possível alagamento da cidade. De acordo com a organização, a chuva que caiu durante os sete dias de evento foi o motivo do público ter se reduzido em 50%. Ou seja, durante uma semana, 15 mil pessoas circularam pelo Teatro Guararapes e nas mostras infantil e itinerante.

O assunto principal da noite foi o tratamento dado pelo festival aos curtas. O motivo foi a soma do longa-metragem Estamos juntos, de Toni Venturi, ao programa, já que ele não foi exibido na quarta por conta de um aviso de tempestade. Originalmente, o plano seria exibir quatro curtas e, após intervalo, um longa. Com a mudança, a ordem foi randomizada para dois curtas + um longa + um curta + um longa + três curtas. Sem intervalo, para não estender ainda mais a duração.

O último curta, Mens sana in corpore sano, de Juliano Dornelles, terminou depois da 1h, em sessão para cerca de 300 pessoas, que aguardaram seis horas para assisti-lo. Carreto, de Cláudio Marques e Marília Hugues, ficou espremido entre dois longas. “Ele dialoga bem com os curtas digitais do começo, poderia estar lá”, diz Marília. “Isso não se deve às chuvas, mas à organização do evento. Até agora não tive explicação plausível”, diz Felipe Peres Calheiros, de Acercadacana.

Seu filme estava programado para 19h e foi exibido às 23h30. Como forma de protesto, uma faixa onde se lê “menos glamour, mais cinema” foi estendida ontem por realizadores, durante a cerimônia de premiação. Além deles, foram exibidos Peixe pequeno (PE), de Vincet Carelli e Altair Paixão, O rio e eu (PR), de Diego Lopes e Claudio Bitencourt e O céu no andar de baixo (MG), de Leonardo Cata Preta.

Alfredo Bertini, diretor do Cine PE, disse que não havia outra saída. “Os longas passaram antes porque dois membros do júri iriam para Cannes naquela mesma madrugada. Com mudanças desse tipo, sempre alguém se sente prejudicado. Disse a eles: ‘vocês são pernambucanos. Segurem a peteca”.

Outro ponto de tensão diz respeito ao melhor longa-metragem do festival. Após exibição de Estamos juntos e Casamento brasileiro, de Fauzi Mansur. Com Leandra Leal e Cauã Reymond, o primeiro é uma poderosa crônica sobre a vida na cidade grande
e sua influência nas relações entre os moradores. A união de talentos como Hilton Lacerda (roteiro), Renata Pinheiro (arte) e Lula Carvalho (fotografia) torna escandaloso o abismo estético entre este e os demais concorrentes.

Com aparência de uma fita VHS que saiu da máquina de lavar, Casamento brasileiro é um representante tardio do cinema popular dos anos 1970. O filme trata de um rapaz que monta as gravações do pai, que filma matrimônios numa cidade do interior, conduzidos por casamenteiro vivido por Nelson Freitas. Veterano da chanchada (A ilha dos paqueras e A noite do desejo), Mansur estava há 20 anos sem filmar e isso fica claro no resultado.

A crítica rachou ao meio. “Ele está mais vivo do que 90% da seleção do festival. Do ponto de vista da linguagem, é o único a criar um universo, o maior desafio do cinema de ficção. É também o melhor trabalho de atuação. Nelson é uma exceção de talento e carisma, que deveria ser tratado com mais respeito”, diz Rodrigo Fonseca, crítico de O Globo.


Mens sana in corpore sano, de Juliano Dornelles

Dois bons curtas – A mudança de horário pode ter reduzido o público, mas não o brilho dos curtas exibidos na quinta-feira. Os pernambucanos foram os mais instigantes. Parceria da Símio Filmes com a produtora Cinemascópio, Mens sana in corpore sano, de Juliano Dornelles, faz uma contribuição e tanto à filmografia zumbi. O filme esquadrinha o cotidiano de um adicto de academia, um professor de musculação movido a barras de ferro e esteróides. O cinemascope (tela larga) tem finalidade prática e conta a favor da imagem de luz e sombras tenebrosas construídas por Pedro Sotero. Humor negro, suor e músculos.

Produzido pela Asterisco, Acercadacana de Felipe Calheiros tem o grande mérito de unir rigor estético e engajamento político. A linguagem adotada para descrever a vida de Dona Maria Francisca, isolada em casebre no meio de um imenso canavial, é tão forte quanto sua denúncia – ela enfrenta a hostilidade da Petribu, uma empresa do açúcar que quer expulsá-la da casa onde mora há quatro décadas.

Em certo momento, há um “duelo” entre o chefe da segurança da empresa, com uma arma na cintura, e Dona Maria, com uma câmera na retaguarda. Bem lembrado por Hilton Lacerda, há um diálogo com Baixio das bestas (de Cláudio Assis), que também se passa na Mata Norte e constrói um espaço atemporal. A lucidez e verdade presentes no filme só aumenta a curiosidade do que Calheiros e a Asterisco devem fazer a seguir. Olho neles.

(Diario de Pernambuco, 07/05/2011)

Quebra-cabeça de muitos mundos

“Para ver as estrelas, tem que olhar de cima para baixo”. A frase, dita por personagem do longa Estamos juntos, é uma das formas que se tem para entender São Paulo. A cidade é cenário do novo filme de Toni Venturi (do premiado Cabra-cega), que estréia hoje, na mostra competitiva do Cine PE. O festival está dominado por produções paulistas e essa pode ser a favorita. A produção é da Olhar Imaginário (de Venturi) Aurora Filmes, responsável por Bicho de 7 cabeças, Carandiru e o recente Reflexões de um liquidificador. A fotografia é de Lula Carvalho.

O filme, que entra em cartaz no próximo 17 de junho, traz no elenco Leandra Leal, Cauã Reymond, Lee Taylor, Dira Paes, Débora Duboc e Sidney Santiago. A trilha sonora é de Bid, produtor de Afrociberdelia (1996), da Nação Zumbi. Todos estarão no festival, exceto Leandra, que está em Nova York e Reymond, que grava novela no Rio. “Estou muito feliz que a estréia vai ser no recife, cidade onde acontece a vanguarda da música, cinema e artes plásticas”, diz Venturi.

Há mais motivos para conferir a sessão de hoje: o roteiro de Estamos juntos foi escrito por Hilton Lacerda e a direção de arte é de Renata Pinheiro. “As pessoas veem Hilton como pertencente ao novo cinema pernambucano, mas ele vive em São Paulo há muitos anos. Isso foi decisivo para construir o roteiro”.

O título remete à saudação comum de companheirismo entre moçambicanos. A história trata das mudanças vividas pela jovem médica Carmem (Leandra), que se muda do interior do Rio para fazer residência em São Paulo. Faz amizade com o DJ Murilo (Reymond), que é mantido na capital pela família rica. O conflito surge quando conhece homem enigmático (Lee Taylor) e se entrega ao músico Juan (Nazareno Casero).

Lacerda conta que a experiência foi boa. “Trabalhei com um grupo diferente do que estou acostumado, tive que me cercar de outro universo, mas não tive que abrir mão das minhas convicções de roteiro. O filme é sobre estrangeiros e a cidade como quebra cabeça de muitos mundos, um núcleo pautado, inclusive, por movimentos sociais”. O argumento original de Venturi e Di Moretti foi visto pelo roteirista como uma limitação educativa. “Sou muito anárquico para escrever. O resultado é bastante surpreendente”.

Renata, que já fez a arte Feliz Natal de Selton Mello e A festa da menina morta, de Matheus Nachtergaele, descreve o filme de Venturi como uma grande produção. “Já tinha filmado em São Paulo, mas agora me aproximei do coração da cidade”. Um dos cenários é real: a sede do Movimento dos Sem Teto, um hotel antigo no centro de São Paulo. Outros cenários foram construídos do zero, como o hospital que Carmem trabalha, que ocupou parte do manicômio do Juqueri. “Precisava construir a arte com um pé na realidade forte de São Paulo e ao mesmo do ponto de vista do personagem, que vai mudando de percepção”.

Venturi diz que o projeto nasceu da vontade de falar da juventude no mundo urbano contemporâneo. “Me interesso no cruzamento de universos na grande cidade. Essa polifonia se cruza involuntariamente, se envolve, se estranha, convive no mesmo espaço”. Promete.

(André Dib, 04/05/2011)