A hora e vez do curta pernambucano

Dois mil e nove foi um ano e tanto para o curta-metragem pernambucano. Somente em Brasília, mês passado, quatro filmes estreantes deram o que falar e monopolizaram os principais prêmios. No Recife, eles serão exibidos pela primeira vez hoje, às 20h20, na programação da Expectativa 2010/Retrospectiva 2009 do Cinema da Fundação.

Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante, foi escolhido melhor filme, fotografia (Beto Martins) e som (Nicolas Hallet) em Brasília. É o segundo de uma trilogia de documentários poéticos sobre as diferentes versões da Ave Maria de Schubert: a primeira, cantada por Stevie Wonder e transmitida diariamente às 18h por uma FM do Recife; agora, o diretor olha para os costumes arcaicos e modernos do povo do Sertão, ao som da Ave Maria sertaneja, de Luiz Gonzaga; o próximo curta, ainda sem nome, mostra a relação da burguesia com a Santa e terá como trilha a Ave Maria de Gounod.


Recife frio, em foto não publicável em jornais

Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, é uma comédia que usa elementos de ficção científica, documentário e musical para narrar o dia em os recifenses foram obrigados a adaptar costumes e valores culturais e econômicos a uma inversão climática radical. O filme brinca com as paisagens típicas da cidade e ainda conta com locações em Calhetas, Gramado e litoral da África do Sul. No elenco, Andrés Schaffer, Yannick Ollivier, Junior Black, Pedro Bandeira e Lia de Itamaracá. Durante a sessão em Brasília Recife frio causou furor, foi aplaudido duas vezes antes da sessão acabar e venceu como melhor curta (público e crítica), direção e roteiro (júri oficial). Sua carreira está só começando: no último domingo, foi eleito melhor filme (júri oficial e popular) no 13º Festivalde Cinema Luso-Brasileiro em Santa Maria da Feira (Portugal).

Com produção de Isabella Cribari e direção de arte de Dantas Suassuna, a ficção Azul, de Eric Laurence demonstra força nas imagens e sons (Hallet, também premiado em Brasília) e na atuação de Zezita Matos, que interpreta uma senhora que todos os dias leva a mesma carta, escrita pelo filho (Irandhir Santos), para que a amiga (Magdale Alves) a leia. Ela vive numa casa isolada no Agreste, construída especialmente para o curta, e que remete a outro locus, o da solidão existencial.

A linguagem caótica/anárquica de Faço de mim o que quero, de Sérgio Oliveira e Petrônio Lorena, gerou risadas e certo estranhamento na plateia de Brasília. Parte da crítica adorou o filme, que deve ser o primeiro inteiramente dedicado ao universo do brega. Com imagens e sons típicos, o filme incorpora a permissividade inerentes à música como experimento de linguagem. Tudo parte de uma câmera-carrinho de CDs pirata, literalmente o veículo de divulgação dos artistas, para setornar um delírio que passa por programas de TV, salões de beleza e paquera na praia de Brasília Teimosa, que gerou uma sequência em formato fotonovela, onde uma dançarina (a atriz Samara Cipriano) contracena com Rodrigo Mell (autor de Chupa que é de uva). Para a sessão, os diretores convidaram alguns artistas, entre eles o Conde do Brega, João do Morro, Kelvis Duran e a banda Vício Louco, que devem permanecer para o bate papo com o público.

Amanhã, às 21h10, o programa traz mais quatro curtas da nova safra: o inédito Teatro da alma, de Deby Brennand, Nossos ursos camaradas, de Fernando Spencer, Confessionário, de Leonardo Sette e Tchau e bênção, de Daniel Bandeira. Nas duas noites, os realizadores participam das sessões e depois conversam com o público.

(Diario de Pernambuco, 16/12/2009)

Festival de Brasília // Pernambucanos de olho no Candango

A 42ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começa hoje, com a pompa de sediar a primeira exibição pública do filme Lula, o filho do Brasil. Até o dia 24, seis longas e doze curtas-metragens concorrem ao troféu Candango, sinônimo de prestígio para os realizadores.

Afinal, falamos do mais antigo e um dos mais conceituados festivais do país. Quatro novos curtas pernambucanos estreiam no evento: Faço de mim o que quero, de Sérgio Oliveira e Petrônio Lorena, Azul, de Eric Laurence, Recife frio, de Kleber Mendonça Filho e Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante.

Juntos, eles correspondem a um terço dos filmes em competição, clara demonstração da força do cinema feito no estado. Laurence, que concorre pela primeira vez no festival, enxerga na situação favorável mais do que talento de seus realizadores. “É reflexo do apoio e incentivo que o cinema têm recebido em Pernambuco”, diz o cineasta.

Estrelado por Zezita Matos, Magdale Alves e Irandhir Santos, Azul é o terceiro curta de ficção dirigido por Laurence (Entre paredes), que também assume a montagem. Na equipe estão Antonio Luiz Mendes (fotografia), Isabella Cribari (produção executiva), Dantas Suassuna (direção de arte) e Carlinhos Borges (trilha sonora). Inspirado em conto de Luzilá Gonçalves (Uma doce maneira de ir morrendo), o roteiro gira em torno da solidão de uma mulher analfabeta que mora numa casa isolada e todos os dias procura uma amiga que lê a mesma carta, escrita pelo filho.

Se o curta de Laurence estabelece um locus existencial / ficcional (o cenário foi especialmente construído pela produção), Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante, se debruça nas possibilidades da interseção documentário / poesia. O filme utiliza a mesma estrutura de Ave Maria ou mãe dos oprimidos (2003), desta vez aplicada ao universo do Sertão, onde, às 18h, as rádios executam a música Ave Maria sertaneja, de Luiz Gonzaga.


Ave Maria ou mãe dos sertanejos, de Camilo Cavalcante

“Diferente do anterior, que mostrava a quase resignação dos moradores do centro do Recife com Nossa Senhora, entre os sertanejos há uma relação mais íntima”, fala Camilo, duas vezes premiado em Brasília (por História da eternidade e O presidente dos Estados Unidos). Seu novo “filho” conta com fotografia de Beto Martins, som de Nicolas Hallet, edição de Caio Zad e produção de Stella Zimmermann.

Recife frio, do crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho (outro ganhador de Candangos por Vinil verde e Noite de sexta, manhã de sábado), parte da suposição de que a capital pernambucana passou por mudanças climáticas que inverteram a temperatura proporcionada pelo sol intenso. O plano inicial era simular um falso documentário, com depoimentos dos cidadãos que mudam hábitos para se adaptar às novas condições que tornaram o Recife, nas palavras do diretor, “um cenário de ficção científica”. Enxuta, a equipe é formada por Kleber, Emilie Lesclaux e Juliano Dornelles.

O universo da música brega é o mote de Faço de mim o que quero, parceria entre Petrônio Lorena (O som da luz e do trovão, 2004) e Sérgio Oliveira (Porcos corpos, 2003). Rodado em locações como a praia de Brasília Teimosa (entre Boa Viagem e o centro do Recife), o filme procura traduzir a cultura mais popular da capital ao acompanhar um carrinho de CDs que propaga o som de compositores do gênero, como o Conde do Brega, não por acaso, um dos personagens.

(Diario de Pernambuco, 17/11/09)