Quadro Mágico completa 10 mil acessos e sorteia 3 HQs

Dez mil acessos em 70 dias não é um número extraordinário para um blog, considerando a magnitude da audiência proporcionada pela internet. Mesmo assim, é motivo de celebração, já que este Quadro Mágico se sustenta com as próprias pernas, independente de grandes portais ou patrocinadores.

O contador foi instalado recentemente, mas este sítio está na ativa desde setembro de 2006. O formato “blog” é efêmero, por não permitir uma navegação horizontal: uma postagem praticamente anula a anterior, formando arquivos nesses links da coluna à direita. Nessas gavetinhas, orgulho-me de ter arquivado críticas de HQs, filmes de ficção e documentários, entrevistas, notícias, programação de cinema e espaços alternativos, oficinas de arte e outros eventos.

Dividindo essa alegria, este blog promove pela primeira vez o sorteio de três HQs:

PEQUENO LIVRO DE ESTILO DE SNOOPY, de Charles Schulz (Conrad)

Revista RAGÚ nº 4 (R$ 23, Via Lettera)

Revista FRONT nº 17 (R$ 32, Via Lettera)

Para concorrer, basta enviar um email para andrehdib@gmail.com, escolhendo qual a publicação preferida. O resultado sai na semana que vem.

73 anos de Pato Donald

Donald Fauntleroy Duck, mais conhecido como Pato Donald, completou 73 anos no último dia 9 de junho. Uma boa forma de comemorar a data é curtindo as histórias criadas por Carl Barks (1901-2000), o desenhista/roteirista que praticamente inventou o personagem. Claro que ele já existia antes de Barks, mas foi ele quem deu personalidade ao pato, criou quase todos os outros personagens (Tio Patinhas, Gastão, Professor Pardal, Irmãos Metralha e Maga Patalógica) e até mesmo colocou Patópolis no mapa.

Apesar das histórias que criou não levarem sua assinatura (havia apenas um automático “Walt Disney”), elas são facilmente identificáveis não somente pelo traço, mas também pelo alto grau de inventividade em relação à maioria das HQs Disney. Barks era quase um poeta dos quadrinhos. Na foto abaixo, ele autografa revistas em evento na Finlândia.

A Editora Abril, que mantém a revista Pato Donald desde 1950 (foi a primeira publicação da empresa), está relançando cronologicamente todas as histórias de Carl Barks. Atualmente, as Obras Completas de Carl Barks estão no 27º volume.

Clássicos infantis em versão para adultos

Alan Moore e Melinda Gebbie: união amorosa e trabalho de qualidade

 

Alice, Wendy e Dorothy, as meninas dos clássicos infanto-juvenis “No País das Maravilhas”, “Peter Pan”, e “O Mágico de Oz”, já tiveram suas aventuras contadas inúmeras vezes. Mas nunca assim, tão apimentadas quanto no álbum em quadrinhos “Lost Girls – Meninas crescidas”, de Alan Moore e Melinda Gebbie, que acaba de ser lançado no Brasil. Este livro, somente para adultos, é o primeiro de três volumes que compõem uma das mais belas e provocantes histórias em quadrinhos já feitas.

A história se situa no ano de 1913, quando as personagens, já adultas, se encontram num luxuoso hotel austríaco. Lá, confidenciam detalhadamente suas experiências sexuais. O projeto levou quase 20 anos para ficar pronto e, durante o processo, os dois artistas iniciaram um relacionamento amoroso que dura até hoje.

Naquele tempo, Moore começava a se destacar por suas narrativas iconoclastas e terrivelmente bem construídas, como “Watchmen”, em que super-heróis são usados na guerra fria, e logo depois “V de Vingança”, a distopia orwelliana que dinamitou o discurso da democracia ocidental. Em “Lost Girls”, a subversão está em mostrar sexo explícito com a mesma naturalidade e bom gosto presentes nos escritos originais.

O projeto começou quando Moore entendeu os vôos mágicos de Peter Pan e Wendy como uma metáfora para as descobertas sexuais da adolescência. Sob este ponto de vista legitimamente freudiano, situações como o apressado Coelho Branco que leva Alice ao País das Maravilhas, e Dorothy a dar piruetas dentro do furacão, ganham dimensões insuspeitas até então.

A estética muda de acordo com cada capítulo, seguindo padrões de uma exaustiva pesquisa do casal sobre a pornografia feita na era vitoriana e na Belle Époque, “muito mais humana e centrada no prazer” do que a atual, “quase toda fotográfica”, disse o escritor ao periódico eletrônico Sci Fi Weekly, na ocasião do lançamento.

Ainda na entrevista, ele afirmou que o sexo tem sido sub-representado na literatura. “Há gêneros dedicados a todos os outros campos da experiência humana – até os mais rarefeitos como o mundo dos detetives, astronautas ou caubóis. Já a pornografia, o único gênero em que o sexo pode ser discutido abertamente, não tem reputação alguma, é desagradável, de baixo nível, e consumida às escondidas”.

Na contra-corrente do sexo tosco e perverso mostrado nas “Tijuana Bibles” dos anos 30 e 40, e das sacanas montagens digitais com bichinhos fofinhos que circulam na internet, cada quadro de “Lost Girls” é marcado por muito requinte e delicadeza. Um produto que eleva este gênero tão desqualificado ao nível da mais pura e transcendente arte.

Serviço
Lost Girls – Livro Um: Meninas Crescidas (Devir Livraria)
Quanto: R$ 65 (112 páginas)

Lost Girls: a obra prima pornográfica de Alan Moore e Melinda Gebbie

A Devir Livraria acaba de publicar uma obra prima em quadrinhos. Lost Girls – Meninas Crescidas, é fruto de 15 anos de trabalho feito a quatro mãos por Alan Moore (roteiro) e Melinda Gebbie (desenhos). Por conter cenas de sexo explícito, é proibido para menores de 18 anos. Por ter como protagonistas Alice, Wendy e Dorothy, famosas personagens da literatura infanto-juvenil, Lost Girls vem chamando a atenção e provocando polêmica.

No Reino Unido, terra natal de Moore e Gebbie, o livro está censurado. Só será liberado em 2008, quando a obra Peter Pan and the Lost Boys cairá em domínio público. Os atuais detentores dos direitos autorais não querem endossar a manipulação pornográfica a que os personagens foram submetidos.

A versão brasileira chega um ano depois da obra pronta, mas o atraso valeu a pena. A edição da Devir está impecável, caprichada em cada detalhe. Da tradução ao tratamento gráfico, que inclui sobrecapa em papel couché e capa com detalhes em dourado. O único lamento é que o volume único americano foi desmembrado em três por aqui. O primeiro volume, lançado semana passada, tem 112 páginas, e está sendo vendido por R$ 65. A opção pelos três volumes provavelmente foi tomada porque seria impraticável para o mercado nacional vender um livro por R$ 200, e um desperdício lançar o livro com menos qualidade gráfica.

Na ocasião do lançamento norte-americano, Moore lamentou que a pornografia tenha se tornado um gênero empobrecido, sub-utilizado como produto de entretenimento barato. Para ele esta seria a única forma de literatura onde é possível discutir o sexo em todos os sentidos. Por isso, Lost Girls foi concebido de acordo com a pornografia da era vitoriana, sob uma estética da Belle Èpoque.

Uma HQ que surpreende não só pelo requinte e ousadia visual, mas por trazer a assinatura de Alan Moore. Da minha parte, confesso não ter esperado nada tão bonito e poético da parte deste artista, mais conhecido por mostrar o lado podre da humanidade (vide Watchmen, V de Vingança, A Piada Mortal e Do Inferno).

Lost Girls , uma ode aos prazeres da vida, é a prova de que um artista pode se reinventar sem abrir mão do melhor de si.

Dois links maneiros, cortesia de Germano Rabello

Germano Rabello, quadrinista, músico, consultor e amigo de longa data, me recomendou dois links hoje. Quero dividi-los com vocês, queridos leitores do Quadro Mágico.

O primeiro leva ao Mundo Fantasma, um blog português (ao que o linguajar indica) sobre quadrinhos. Uma olhada rápida e saquei entrevistas com Johnny Ryan, Peter Bagge, Joe Matt e Jim Woodring. Tá valendo…, e entra para o rol de sites recomendados por este humilde escriba (na coluna à direita).

O segundo conduz ao site de Stephen Malkmus (quem se lembra de seu show no Abril Pro Rock de 2001?), que traz logo na primeira página uma animação stop-motion de responsa.

Matéria sobre "A Relíquia" (de Eça de Queiroz) em quadrinhos, na Folha de Pernambuco de hoje

Hoje saiu uma matéria minha na Folha de Pernambuco. É sobre o lançamento de A Relíquia, romance de Eça de Queiroz, adaptado para os quadrinhos por Marcatti. Nas lojas ainda este mês. Leia entrevista feita com o artista pelo Quadro Mágico aqui.

Parakuki – novo CD com arte de Paulinho do Amparo

Saindo do forno mais um CD com a capa assinada por Paulinho do Amparo. Parakuki é o primeiro projeto solo de Shina, ex-integrante de várias bandas pernambucanas durante os anos 90. Por enquanto, ele pode ser comprado a R$ 12 pelo email shinadabanca@hotmail.com, ou então na filial da loja Chilli Beans do Shopping Tacaruna (limite Recife/Olinda). Para os leitores deste blog, sai por R$ 10. É só se identificar na hora da compra.

Capas de discos ilustradas ou com histórias em quadrinhos são uma combinação certeira. Remontam aos álbuns de jazz desenhados por Gene Deitch nos anos 30 e 40. Do namoro do underground com o rock’n’roll, o caso mais representativo é a capa de Cheap Thrills, a banda de Janis Joplin, por Robert Crumb. No Brasil, Tubarões Voadores (1984), do meu conterrâneo Arrigo Barnabé, trouxe a alucinada arte de Luiz Gê para o universo da música. Mais recentemente, Aystelum, de Ed Mota, traz no encarte uma história de detetive, arte da talentosa Edna Lopes, esposa de Motta e autora da poética HQ Amana ao Deus Dará.

Em Pernambuco, Paulinho do Amparo vem experimentando não só a linguagem dos quadrinhos em capas de CDs, mas o próprio formato e matéria prima desse produto. Os CDs de seu selo, 3 ETs Records!, são encartados em envelopes de papelão serigrafados e dobrados. O resultado, rústico e artesanal, faz seu trabalho ser como uma marca própria, reconhecida à distância. O que fez da cantora Isaar de França (CD Azul Claro), do grupos Mundo Livre (Bêbadogroove) e Orquestra Contemporânea de Olinda, e do cineasta Cláudio Assis (Baixio das Bestas) entrarem no rol dos clientes de Paulinho.

O encarte abaixo é do CD A Misteriosa Luz Negra, dos 3 ETs. Clique para ampliar.

Pra quem quiser saber mais sobre o CD de Shina, publico abaixo o texto de apresentação que escrevi para ele Parakuki:

Shina-o-town – Parakuki

“Papai, toma parakuki”, disse o menino Ian, do alto dos três anos de idade. Ele segurava entre os dedos o pequeno, aliás, invisível, parakuki. O pai, codinome Shina-o-town, abriu a boca e fez que comeu. Sorriso nos lábios do garoto. Mal sabia que sua fantasia infantil renderia mais do que este momento em famíla: parakuki virou CD.

O projeto Parakuki é uma viagem com beats eletrônicos, funk, hip hop, ragga e afoxé. É também o primeiro vôo solo de Shina, “Shina com S, você jamais esquece”, brinca o cantor, compositor e percussionista, para se diferenciar do quase-xará, vocalista do grupo Del Rey: a pronúncia é a mesma; o conteúdo, um tanto diferente.

As bases misturam samplers e os inconfundíveis sons low-fi produzidos no estúdio 3 ETs Records!, do olindense Paulo do Amparo. Um amigo “desde a idade da pedra lascada”, Paulinho não está no projeto por acaso. Para Shina ele é uma espécie de guru. Se conheceram antes mesmo dos longínquos 1990, quando tocaram na Massa Encefálica, a banda punk hardcore que tinha na formação Hugo Carranca (ex-Bonsucesso e atual Guardaloop) e Davi Ratz-Azary na formação.

Letra e voz são matéria prima pra qualquer MC, e é onde reside a força criativa de Shina. Crescido em São José, bairro de tradicional blocos carnavalescos, ele faz questão de informar que, por volta dos dez anos, era tricampeão de frevo, e que desde cedo aterrorizava na capoeira. Passado que se reflete nas letras de Parakuki, assim como a crítica ao racismo, o registro do cotidiano dos camelôs e os recentes ataques de tubarão na praia de Del Chifre, onde costumava pegar onda na adolescência.

Parakuki é um novo “marco zero” na carreira de quem já tocou na Sô Severino (com Tânia Cristal) e Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos Inúteis; gravou dois CDs com Girimum e seus Machiches, banda em que também compôs e cantou, de 1993 a 2004; teve passagem por dois Abril Pro Rock (1996 e 1997, na jam session em homenagem a Chico Science, com Max Cavalera, Otto, Nação Zumbi e O Rappa), dois PE No Rock (1997 e 2004) e pelo Festival de Inverno de Garanhuns (1996), quando Jorge Cabeleira abriu para Alceu Valença.

Se essa história fosse uma roda de capoeira, Shina arriscou levar rasteira, esquivou, ensaiou o rabo-de-arraia, saiu na bananeira e deu a volta ao mundo, pra começar tudo de novo.

Tome Parakuki você também!

André Dib

Leia "Vagabond vol.12" no Dia do Samurai!

Feliz Dia do Samurai!

24 de abril é o dia do samurai. A data faz parte do calendário oficial das cidades de São Paulo (desde 2005) e Ribeirão Preto (desde 2006). Ela foi criada em homenagem ao Sensei Jorge Kishikawa, fundador do Instituto Niten, considerada a maior escola de cultura e técnica samurai fora do Japão.

Para comemorar no mundo dos quadrinhos, a Conrad lançou esta semana o 12º volume da série Vagabond (212 páginas, R$ 27,90), de Takehiko Inoue. A edição de luxo da história de Musashi é um dos melhores e mais longos trabalhos contínuos da editora paulista.

Desenhado com primazia de detalhes, o mangá tem pouca conversa e muita contemplação, intercalada com lutas violentas. Uma narrativa fluente, que prende o leitor até o a última página.

"O Alienista" em quadrinhos: um bom exemplo de adaptação

Os irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá fizeram uma bela versão em quadrinhos de “O Alienista” (R$39,90), de Machado de Assis. Editado pela Agir, recentemente adquirida pela Ediouro, o livro está sendo anunciado como o primeiro de uma série a adaptar clássicos da literatura brasileira. Que venham mais.

Longe da chatice das adaptações convencionais, os autores acertaram a mão. Não mutilaram o texto para caber em poucos quadros (tiveram espaço para isso, são 72 páginas), fizeram bom uso da linguagem dos quadrinhos: sequências em silêncio, cores em tons de sépia, uso de metáforas e um traço que caracteriza com pompa e nobreza os personagens deste conto passado no fim do século 19.

Talvez por isso a palavra “quadrinhos” está ausente da capa. Os editores preferiram usar o eloqëente “Grandes clássicos em graphic novel“. Não importa o nome, a obra é um convite irresistível a conhecer o alienista original.

Outro trabalho dos irmãos desenhistas, “De:TALES” (Dark Horse), acaba de ser indicado ao Eisner Awards, o “Oscar” dos quadrinhos, na categoria “Melhor edição americana para material estrangeiro”.

Quadrinista americano Art Spiegelman vem ao Brasil, a convite do Flip 2007

Não é especulação, nem boato. Art Spiegelman estará no Brasil entre 4 e 8 de julho, a convite do Festival de Literatura Internacional de Parati – Flip, no Rio de Janeiro. É o que informou o caderno “Ilustrada” (Folha de São Paulo), na última sexta-feira. Segundo a matéria de Eduardo Simões, a confirmação veio diretamente da organização do evento, na pessoa de Cassiano Elek Machado, o novo diretor de programação do Flip.

Machado acertou em cheio: neste momento em que a “nona arte” está consolidando o inequívoco status de gênero da literatura, nada melhor do que convocar um vencedor do Pulitzer de melhor obra de ficção, pela graphic novel Maus, em 1992.

Esta será a primeira edição do Flip a incluir uma mesa redonda sobre quadrinhos na programação oficial.

Literatura em quadrinhos: Marcatti revela como adaptou Eça de Queiroz

Assim como muitos, fui apresentado ao trabalho do grande Marcatti nos idos de 1986, folheando a revista Chiclete Com Banana. Diferente da acidez de Angeli e do pastelão de Glauco, suas HQs faziam comédia de humor negro com todo tipo de perversão sexual e escatológica. Ou seja, com treze anos, aprendi que uma história em quadrinhos pode ser uma coisa bem suja.

Corta pra 2006. Marcatti surpreende ao lançar “Mariposa” (pela Conrad), história longa e trágica de um triângulo amoroso, em formato livro, capa e papel especial. Bem diferente do papel jornal da chiclete ou da revista em quadrinhos que lançou nos anos 90, Fráuzio. Até agora, foi o melhor tratamento dado a um trabalho seu.

Digo até agora porque a Conrad está rodando “A Relíquia“, em que Marcatti adaptou para os quadrinhos o romance do escritor português Eça de Queiroz (1845-1900). O resultado são 186 páginas de quadrinhos, produzidas em 17 meses de trabalho. O lançamento será ainda neste semestre.


Pelos desenhos, dá pra sacar que vem por aí material de primeira qualidade.

Na entrevista abaixo, Marcatti falou para o Quadro Mágico sobre o processo de recriação de “A Relíquia”, e suas impressões sobre quadrinhos e literatura. Ao que parece, ele deu um tempo na escatologia explícita para se dedicar à obra de Eça de Queiroz, de acordo com Marcatti, uma corrosiva crítica à burguesia católica do século 19.

ENTREVISTA // MARCATTI
“Foi a mais longa e trabalhosa HQ que já fiz”

Qual o motivo da escolha de “A Relíquia”?

Foi sugestão da Conrad a adaptação da obra de Eça de Queiroz através do meu trabalho. O Alexandre Linares enviou-me uma cópia de “A Relíquia” deixando-me completamente à vontade para fazer da forma que eu quisesse. Essa liberdade permitiu que eu tomasse todas as decisões a respeito. Mesmo assim, acabei por optar em fazer a adaptação buscando o máximo de fidelidade. Eu nunca havia lido qualquer livro do Eça e fiquei muito impressionado com sua força e, em muitos casos, com a ousadia com que ele abordou a burguesia católica do século 19!

Fale um pouco sobre o método adotado na “tradução” para a linguagem dos quadrinhos. Foi algo pré-estabelecido, ou mudou no desenrolar do trabalho?

De início, fiquei preocupado. Uma obra clássica com longos trechos que, apesar de contundentes e fascinantes, pouco tinha de cenas e movimentos que dessem fluência na linguagem das HQs. Minha solução foi utilizar e embutir essas magníficas observações do Eça de Queiroz dentro das cenas e das condutas das personagens. Fiz com que suas atitudes e comportamentos tentassem traduzir a carga corrosiva das críticas do autor. Foi tudo construído na fase de desenvolvimento do roteiro. Decidi que só começaria a desenhar quando eu tivesse definido completamente a mecânica narrativa.

Pensar um romance em imagens deve pedir muita imaginação e pesquisa. Como foi o seu processo de criação?

A maior parte da pesquisa que fiz foi em relação a arquitetura e o vestuário comuns em Portugal do século 19. Transformar o livro em imagens é que foi mais trabalhoso. Primeiro anotei somente as cenas do livro. Em separado, fiz um resumo conceitual do livro. Um resumo bem pequeno, quase uma resenha. Apenas para registrar o foco geral do livro. Como se eu tivesse perguntado diretamente ao Eça: “Que tipo de reação você esperava das pessoas que leram essa obra?”. Infelizmente, coube a mim dar a resposta. Mas foi justamente esse ponto de vista que alicerçou e orientou toda a recriação das cenas. Gostei bastante dessa experiência e fiz com tanto prazer que nem parece que levei 17 meses nessa adaptação.

Deve ter sido o teu quadrinho mais trabalhoso, não?

De fato, foi a mais longa e trabalhosa HQ que já fiz. Mas, eu não sinto isso. Quando olho as datas que coloquei em cada uma das páginas originais, eu fico surpreso. Tenho realmente a sensação que fiz tudo em pouco mais de 2 meses. Foi uma lição! O Eça é uma escola. Acho que, se não fosse por esse trabalho, eu precisaria fazer mais umas 10 histórias para aprender tudo o que aprendi fazendo “A Relíquia”.

Na sua opinião, os quadrinhos compreendem um gênero literário?

Sempre pensei em HQ como forma literária. Para mim, não faz nenhum sentido a distinção entre “literatura e quadrinhos”. Soa-me estranha a expressão. Acredito que a forma pouco respeitosa como os norte-americanos enxergam a linguagem das HQs, somada a indiscutível influência cultural que exercem sobre o resto do planeta, contribuiu muito para essa distinção. Enquanto na Europa muios autores de HQ são reverenciados como gênios literários, a maioria dos grandes nomes da HQ norte-americana têm esse reconhecimento graças muito mais pelo sucesso comercial.

Tal como subdividir em prosa, verso, conto, novela etc, HQ é uma forma de exercer literatura. Caso contrário é o mesmo que fazer a distinção entre “conto e literatura”.

300 de Esparta: divagações sobre a suposta "fidelidade" do cinema aos quadrinhos


“Fidelidade” é uma palavra que tem sido repetida orgulhosa e infinitamente por Zack Snyder, diretor do filme “300“, inspirada na graphic novel homônima de Frank Miller. Muito bem divulgado pela imprensa, “300” está à disposição do público desde ontem, em 550 salas brasileiras. Por um lado, vitória para os quadrinhos, arte geralmente diminuída, aqui enobrecida pelo tratamento de luxo e evidência nunca desfrutada em sua centenária trajetória.

Por outro, problemas no tocante ao processo de adaptação me saltam aos olhos. Nas cenas acima, não resta dúvida. “Igualzinho”, não é?

Não é bem o caso da pintura abaixo, veja bem como os espartanos foram retratados:

Nada tão “macho” quanto os guerreiros de Miller.

Enquanto escrevia uma crítica de “300” para o site da Continente Multicultural, me questionei bastante sobre a utilização da linguagem dos quadrinhos no cinema. Naturalmente não cheguei a muitas conclusões. Como explicar a artificialidade e falta de fluidez de filmes como “300”, meu caro Watson? Foi inevitável, enquanto assistia ao filme, fiquei o tempo todo comparando: “nossa, é igualzinho mesmo!”.

Bom, tenho que admitir que a cópia transposta por Snyder é muito bem feita. Realmente, o filme conseguiu manter intacta a estética original. Não tão obsessivamente quanto Robert Rodriguez e o próprio Frank Miller fizeram em “Sin City“, clonagem quadro-a-quadro que chega a dar náuseas após duas horas de projeção. “300” utiliza mais recursos de cinema, graças a Zeus.

Talvez as melhores adaptações dos quadrinhos para o cinema sejam as assumidamente traduzidas para a linguagem audiovisual, ou seja, são cinema antes de tudo. Tomem, por exemplo, os filmes de super-heróis. Eles parecem bem resolvidos quanto a isso. Neles, a fidelidade está em, durante o processo de tradução estética entre uma linguagem (HQ) para outra (cinema), preservar as características dos personagens, o contexto em que foram criados, enfim, sua essência. Filmes como “Ghost World”, “Hulk”, “Homem-Aranha”, “X-Men” e “Quarteto Fantástico” vem fazendo isso muito bem.

Claro que não é o caso de invalidar experiências como “300” e “Sin City”. Elas não são meros subprodutos das HQs. Pelo contrário, apontam para um diálogo de linguagens onde só o equilíbrio pode gerar bons frutos. Quando este for alcançado, teremos filmes bem mais interessantes de se assistir. Um bom exemplo neste sentido é o não tão recente “American Splendor” (Robert Pulcini), que conta a história do roteirista de quadrinhos Harvey Pekar.

Júlio Bressane, em seu ótimo livro-ensaio “Cinemancia”, trata do processo de tradução de uma forma mais livre e essencial. De uma língua para outra, analisando o caso de São Jerônimo, que converteu a Bíblia do Sânscrito para o grego. E da literatura para o cinema, exemplificando com sua então recém lançada adaptação de Machado de Assis, “Brás Cubas”. Quem assistiu ao filme, sabe que ele é uma viagem de sons e luzes ao universo machadiano. Nem de longe passa por uma transposição literal de diálogos e descrições de ambiente contidos no romance original. O sentido e a maneira machadiana de olhar para a realidade, no entanto, brilha no filme inteiro.

Isso porque para Bressane, a recriação é imprescindível no processo de tradução. Tanto que seu Brás Cubas reinventado para o cinema é diametralmente oposto (e infinitamente superior) ao interpretado por Reginaldo Faria no filme de André Klotzel, que se dispôs a adaptar “fielmente” o livro de Assis. O máximo que uma obra assim pode atingir é o da reverência ao original. Um culto que termina em si, que não extrapola como arte.

De volta aos espartanos, o “fiel” (como um escravo?) diretor Snyder demonstra com orgulho ter reproduzido a luz, a textura, os diálogos, enquadramentos, exatamente como na HQ original, esta servindo como o mais perfeito storyboard do planeta. Um sinal de respeito e tributo, mas também de engessada submissão, característica limitante do potencial que um bom filme pode atingir.

Caro Watson, onde está Wally (Snyder)? Cadê o seu olhar como tradutor?

Por fim, como bem provou Mary Shelley, ao criar seu Frankenstein há quase dois séculos, encerro com a máxima nada matemática: a soma das partes nunca é igual ao todo.

Os 300 de Esparta invadem o Jornal do Commercio

O Caderno C do Jornal do Commercio (Recife) trouxe ontem, dia 25 (domingo), duas matérias sobre Os 300 de Esparta, que já foi assunto deste blog em janeiro. Para ter acesso às matérias, é necessário ser assinante do jornal, ou do portal UOL.

Em “Heróis vestem vermelho”, a repórter Carol Almeida trata do relançamento da série em quadrinhos em formato livro (capa acima), num belo trabalho da Devir Livraria. Na segunda, ela revela como foi o papo (no Rio de Janeiro) com o diretor da adaptação cinematográfica, Jack Snyder, e com Rodrigo Santoro, o único brasileiro a atuar na produção que estréia no Brasil neste dia 30 de março (sexta). Eles estarão no Brasil durante a semana toda, para promover a esperada adaptação da obra de Frank Miller.

Pra quem ainda não sabe, Rodrigo Santoro está quase irreconhecível interpretando Xerxes, o rei dos Persas, que em 480 a.C. invade a Grécia para ampliar seu império. Apesar de algumas interpretações enxergarem em Os 300 de Esparta uma crítica ao imperialismo norte-americano, o governo do Irã (país que fazia parte da Pérsia) condenou duramente a maneira como os persas são retratados, considerando o filme como um ataque à cultura iraniana, e atribuindo a ele “comportamento hostil, resultado de uma guerra psicológica e cultural”. Ao que parece, um filme nunca é só um filme, até para os iranianos…

ECRGO – a maior loja de quadrinhos usados da internet brasileira?

Um gibi passa no máximo um mês na banca, para então, como diz o desenhista Spacca dois posts abaixo, “ser vendido como papel velho”. Eu, que guardava minhas revistinhas com excessivo esmero – lavava as mãos antes de ler, e sentia cada amasso nas páginas como se fosse em mim -, sempre achei essa efemeridade um tanto cruel. Como criança dos anos 80, procurava os quadrinhos das décadas anteriores nos poucos pontos que se davam ao trabalho de vender, comprar e trocar gibis usados e muitas vezes embolorados.

Eis que ontem, pesquisando outro assunto no Google, descobri a ECRGO , uma loja virtual de compra e venda de gibis antigos. Na primeira página já dei de cara com reproduções de capas antigas como a acima, que me fizeram relembrar do tempo em que cuidava da minha velha coleção.

Sediada em Ribeirão Preto – SP, a ECRGO significa “Empresa Colecionadora de Revistas Gilciliano de Oliveira”. Gilciliano, 35 anos, não tem por que se queixar dos negócios. Vende bem para o Brasil e também para Portugal. Tem 300 fiéis clientes cadastrados no site.

Somando mais de 6 mil itens invendáveis em sua coleção particular (chegou a pagar R$ 800 num site de leilões pela revista Mickey número um), em 1992 Gilciliano resolveu entrar no circuito de compra e venda de gibis. “Eu via um futuro promissor no mercado de revistas, haja vista que gastava um bom dinheiro comprando revistas para minhas coleções. Via como um negócio que no futuro se sustentaria por sí só. Na época eu até tinha emprego, mas não imaginava a dimensão que isto ia tomar, os negócios cresceram bem com a implantação das vendas via internet. No ano 2000 saí de meu emprego, e hoje trabalho apenas com isto”, conta o empresário a este blog.

Gilciliano garante que tem a maior variedade de revistas em quadrinhos usadas e raras da internet brasileira: dispõe para venda cerca de 2 mil gibis antigos. Tem informações detalhadas sobre cada um: reprodução da capa, conservação e até peso (cerca de 50 a 100 gramas cada). Os preços variam de R$ 3 a R$ 150, dependendo da raridade da peça – a mais antiga data de 1950 (o faroeste Super X).

No meio de tantos relançamentos de luxo, é interessante encontrar redutos de gibis antigos como o de Gilciliano. E você, conhece algum?

O novo Capitão América?


Não é George Bush, mas poderia ser um de seus soldados do mal. Pois é, no começo deste mês mataram o vovô dos quadrinhos Capitão América. O assassinato pode ter ocorrido por razões ideológicas, já que, como bem colocou Nirlando Beirão em resenha da revista Carta Capital, somente Dick Cheney tem estômago pra fazer o jogo sujo.

Interpretações à parte, já se fala na volta triunfante. O site da Marvel colocou no ar mais lenha em torno do mistério da volta do mais imperialista dos justiceiros encapuzados: sem palavras, sugere que Frank Castle, o personagem cujo alter-ego é o truculento Justiceiro, incorpore a identidade assumida durante 60 anos pelo patriota Steve Rogers. Uma boa provocação por parte da editora: de qualquer maneira, a figura acima simboliza a nova América bem melhor do que a inocência moralista do antigo Capitão que, quem diria, deixará saudades.

História (do Brasil) em quadrinhos: entrevista com Spacca

É notável o crescimento da produção de HQs sobre episódios da História do Brasil. Nos últimos anos, tivemos “Hans Staden” (pelo pernambucano Jô Oliveira), “As Aventuras de Chalaça, o amigo do Imperador“, e até um quadrinho sobre a presença judaica em Pernambuco no século 20 (“Passos Perdidos, História Desenhada“). A mais recente adaptação histórica em quadrinhos será a Revolta da Chibata, assinada pelos cearanses Olinto Gadelha (roteiro) e Hemetério (arte), a ser lançada ainda este ano pela Conrad – em breve, publicarei um texto somente sobre eles aqui no Quadro Mágico.

Para tratar do assunto com propriedade, nada como a palavra de quem faz. Autor de “Santô e os pais da aviação” (biografia de Santos Dumont) e “Viagem Quadrinhesca ao Brasil” (sobre a presença do artista francês Jean-Baptiste Debret na terra brasilis), o veterano João Spacca fala, com exclusividade para este blog, sobre os meandres da criação e da viabilidade deste tipo de projeto que mistura educação, arte e, claro, diversão. Seu currículo inclui a criação de desenhos publicitários, educacionais, infantis, participação na revista Níquel Náusea de Fernando Gonzales, e quase dez anos de charge editorial na Folha de São Paulo.

Alguns trechos da entrevista, realizada pelo jornalista e compositor recifense, Germano Rabello, serão utilizadas numa futura matéria, ainda sem nome. A ele e a Spacca, obrigado pela generosidade vertida em palavras.

É presumivelmente mais trabalhoso fazer um trabalho sobre temas históricos. Compensa realizar?

É realmente muito mais trabalhoso. Há várias maneiras de se trabalhar com temas históricos: pode-se usar a história somente como ponto de partida e fantasiar o resto (por exemplo, a minissérie “Quinto dos Infernos”); pode-se escolher uma época bem manjada que todos sabem como funciona (como o Velho Oeste Americano). Minha proposta, ou melhor dizendo: o meu jeito de trabalhar, é ser bastante fiel aos fatos ocorridos; é aproveitar os eventos reais, e montar com eles uma boa história, usando a seleção e o recorte, e raramente a invenção.

No meu caso, tenho trabalhado com épocas menos abordadas pela ficção, o que me obriga a pesquisar muitas informações, sobre tudo: questões políticas, hábitos do cotidiano, as tecnologias disponíveis, a moda, o jeito de falar, a moeda.
Por exemplo, quanto a uniformes militares: a Primeira Guerra Mundial é muitíssimo melhor documentada do que o período 1890-1910. Felizmente na internet há “nerds” e colecionadores que se ocupam de todos os assuntos… Depois de localizada a informação, deve-se desenhar isso de maneira ao mesmo tempo clara e natural: os personagens devem usar os objetos com naturalidade, não como se estivessem visitando um museu.

Se compensa? Bem, comparando com outros trabalhos, o ganho financeiro é muito menor, claro. Seis quadros de storyboard para publicidade dariam 1.200,00 reais: se o Santô me rendesse isso, eu deveria ganhar 144 páginas X 1.200,00 = 172 mil reais, o que eu talvez ganhe um dia se vender uns 40 mil livros em livraria, haha! (foram vendidos cerca de 3 mil, o que é considerado uma boa marca).

O que me move é o desejo de realizar, de ser lido, e de ser um bom negócio a
médio e longo prazo – ou seja, de ter um dia a possibilidade de trabalhar só
com isso em outros álbuns de quadrinhos. O que, considerando a possibilidade de alguns desses projetos serem adquiridos em grande quantidade por escolas e pelo governo, é uma esperança viável. O “Santô” foi adquirido em um projeto de bibliotecas públicas para todo o Brasil (PNBE).

Sente que isso lhe dá uma certa “legitimidade”? A HQ precisa desse referencial para ser aceita em círculos intelectuais ?

Sim, eu busco um tipo de legitimidade ao apoiar minha narrativa em uma pesquisa sólida, verificada nos mínimos detalhes. O que não impede de errar… por exemplo, no Debret eu desenhei o Conde da Barca retratado pelo Debret muito jovem. Estou mais ou menos desculpado porque, em ultima análise, é o Conde visto pelo Debret, e o artista era muito grato ao ministro de D.João. Mas o fato é que em 1816 Barca já estava meio alquebrado. Aprendi isto na pesquisa para o trabalho seguinte, que estou fazendo agora (D.João VI no Brasil). Então me preocupo com essas coisas, pensando não só na crítica dos leitores de quadrinhos, mas dos especialistas, historiadores etc.

Mas é uma coisa minha. Não sei se HQ “precisa desse referencial para ser aceita em círculos intelectuais”. Tenho a impressão de que a HQ precisa desse e outros referenciais para ser aceita por quase todo mundo. A HQ, tradicionalmente, é um fruto da indústria cultural, uma revista barata de entretenimento descartável.

Mas como nos filmes B de Hollywood, surgiram autores que se destacaram e conseguiram fazer evoluir essa linguagem ao “estado da arte”. Houve poucos períodos áureos (de grande vendagem ou de grande qualidade) nos quadrinhos. Ou ela era marginalizada porque era vista como lixo cultural; ou como obra de entretenimento puramente infantil; ou mais recentemente, como comunicação anacrônica, lutando para sobreviver na era dos games e da internet. Como sou leitor de algumas HQs muito boas, sei que essa linguagem pode alcançar níveis altos de qualidade.

E essa é a minha referência, quero fazer histórias cada vez melhores, tendo os grandes mestres como modelo. Espero que ela seja aceita, primeiro, como entretenimento, como leitura gostosa, prazeirosa para qualquer leitor. Em primeiro lugar também, como uma HQ de qualidade para quem conhece e gosta (espero conseguir isto, é sempre uma meta). Fora disto, o que vier é lucro.

Porque acha que tantos trabalhos sobre história estão surgindo ?

Não sei! Tomara que seja um efeito dominó: alguns lançamentos vão surgindo, conseguem ter boas vendas e repercussão, o que motiva outros autores e editores a apostar nesse filão etc. Pessoalmente, acho importante (além de gostar) porque a História nos informa sobre a nossa identidade, quem somos, de onde viemos.

Nos anos 30-40 do século XX houve também um boom de trabalhos históricos; algumas narrativas da época hoje nos parecem um pouco ingênuas e patrióticas num sentido deturpado; por isso há necessidade hoje de recontar a História de um jeito mais franco, mais objetivo.

O meu “Santô” neste sentido, creio, conseguiu evitar a armadilha do ufanismo para contar de forma mais imparcial e complexa a história de “quem voou primeiro” ou “quem é o pai da Aviação”.

Será o efeito benéfico sobre os quadrinhos nacionais? Como você encara a abundância de títulos em livrarias e ausência de títulos (nacionais) nas bancas?

Eu aprendi a ler quadrinhos nas bancas, por isso lamento muito que não dê mais para fazer isso, da mesma forma. O cenário mudou muito: as bancas vendem de tudo – viraram uma loja de conveniência – vendem até revista… e ao mesmo tempo, deixaram de ser a principal fonte de informação barata – a internet ganha de longe.

O esquema de distribuição nas bancas, no entanto, parece que é o mesmo; só tem vez a publicação que vende muito e tem respaldo de outras mídias; além disso, um gibi fica pouco tempo na banca, corre o risco de ficar escondido e é recolhido logo e é vendido como papel velho…

Acho inviável, acho que é um esquema que acabou (por enquanto, pelo menos). O livro de quadrinhos na livraria é mais perene. Acabou virando um “alternativo de luxo”: o que não tem poder para venda massiva, vai tentar a sorte na livraria. Acho que é o que é possível, hoje. E tem vida mais longa.

Em que nível a Cia. Das Letras interferiu no seu trabalho? Eles
encomendaram o “Viagem quadrinhesca” depois do sucesso de “Santô”, ou você
propôs o tema?

Isso nasceu de um jeito meio inesperado. Logo em seguida ao “Santô”, eu propus à editora uma biografia de Monteiro Lobato, na mesma levada do Santô, com 120 páginas. E o projeto foi aceito e eu comecei a tocar. Mas ao mesmo tempo, eles me pediram uma HQ de 18 páginas com o tema “viagem”.

Podia ser qualquer coisa – o objetivo era comemorar os 20 anos da Cia numa edição coletiva, com outros quadrinhistas. Eu é que propus algo sobre História do Brasil, porque havia lido vários diários de viagem de estrangeiros ao Brasil no tempo do Império (Saint-Hilaire e outros). Aí pensei em Debret, e eu não conhecia direito a história dele. Li por alto e, apesar de não ter sido uma vida muito aventureira, encontrei alguns ganchos dramáticos que me ajudariam a construir uma narrativa interessante. Como o assunto é justamente o que a Lili Schwarcz (dona da editora) conhece profundamente, a primeira versão, com a qual eu não estava satisfeito, não
foi aceita. Ela fez muitas observações, e de fato eu tentei colocar muita coisa em apenas 18 páginas e ficou confuso.

Refiz o roteiro, focalizando mais o aspecto do pintor neoclássico nos trópicos, e ela gostou muito. Foi divertido, como se eu estivesse fazendo uma tese e ela fosse a orientadora. Nisso, a edição coletiva dançou. Mas eles já tinham aprovado a hitória e ela estava em produção, então eu sugeri a eles que fizessem da HQ um álbum,
completando com gravuras do Debret e cronologia etc. Eles toparam, e acabou ficando uma edição com cara de livro didático, que está sendo muito bem aceita pelos professores. E o Lobato continua de pé.

Revistas de cultura abrem espaço para humor e quadrinhos

Mais humor e quadrinhos invadindo revistas de cultura: a Continente Multicultural de março traz um especial sobre humor gráfico no Brasil, enquanto a Revista Cult dedicou seu dossiê de março à “revolução” dos quadrinhos.

Na Continente, três matérias tratam de caricaturistas e chargistas que fizeram e fazem história nos jornais e revistas brasileiras desde os anos 30 do século 19. A principal, assinada por Carlos Haag, traça um panorama nacional e cronológico sobre o assunto, a partir de 1837, quando um desenho de Manoel de Araújo Porto-Alegre denunciava um caso de corrupção nos Correios. Pioneirismo desmentido pelo cartunista e pesquisador Laílson Cavalcanti, que em sua matéria recorre à publicação primordial O Carcundão , jornal satírico publicado no Recife entre 25 de abril e 16 de maio de 1831 para indicar uma ilustração anônima de um burro corcunda destruindo a coices uma coluna grega como a primeira caricatura publicada no Brasil. Por sua vez, Diego Dubard se debruça sobre a pouco valorizada história do cartunismo pernambucano, uma trajetória que tomou vulto com a vinda da Corte Real ao Brasil, passou por Gilberto Freire assinando com um pseudônimo, por um talentoso menino que morou na rua, conhecido como Gato Félix, até desembocar no conhecido Papa-Figo e a produção atual. Abaixo, um desenho do Gato Félix:

Surpreendente o número de páginas dado pela Cult para tratar de quadrinhos, praticamente ausentes das páginas da revista especializada em literatura nos mais de dez anos de revista. Reflexo da mudança de editora, ou da mudança no mercado de quadrinhos? O pesquisador Gonçalo Jr. faz o diagnóstico no texto “Bancas em baixa, livrarias em alta“, e conclui que a crise das revistas em quadrinhos de banca de jornal tem mais a ver com a falta de criatividade da atual produção do que com a suposta ameaça da internet e jogos eletrônicos. Afinal, nos anos 80, auge comercial dos gibis, já havia televisão… De quebra, matérias sobre a história das graphic novels, censura, musas eróticas das HQs, e uma entrevista com um Ziraldo um tanto antipático.

Nova HQ de Art Spiegelman no Brasil

Não bastasse ter publicado HQs inéditas de Angeli, Laerte e ilustrações de Millôr em edições passadas, a revista Piauí deste mês se superou ao trazer um trabalho inédito do americano Art Spiegelman.

“Retrato do artista quando jovem” segue a linha biográfica-experimental já conhecidos no Brasil através dos famosos livros Maus e À sombra das torres ausentes. Aliás, a história tem a mesma proposta da que Angeli publicou meses atrás, sobre sua relação de amor obsessivo com um vinil dos Rolling Stones. Só que Spiegelman vasculha sua memória um tanto perturbada para contar como começou a desenhar.

Quadrinhos de graça na Palestina, Líbano e Iraque

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Revistas em quadrinhos estão sendo distribuídas de graça para jovens árabes vítimas da guerra. Quem dá o recado é de Naif Al Mutawa, criador do THE 99, a HQ que circula no Oriente Médio desde o ano passado. São vinte mil exemplares grátis, fruto de uma parceria entre a editora kwaitiana Teshkeel, a transportadora Aramex e a Unesco.

“Quando criança, livros e quadrinhos eram minha maior proteção contra os problemas. Me ensinaram que a verdade, justiça e amizada são admiráveis qualidades. Acredito que as crianças de nossa região que foram atingidas pela guerra, desapropriação e pobreza precisam desta mensagem mais do que nunca”, diz Mutawa.

THE 99 é o nome dado ao grupo de super-heróis islâmicos concebidos nos moldes da americana Marvel Comics. O agrupamento é formado por jovens do mundo todo (tem um brasileiro na parada), que desenvolveram poderes especiais concedidos por Alah, e previstos no Alcorão.

O uso da estética Marvel em The 99 não é mera coincidência: Mutawa, através de sua editora, a Teshkeel, detém os direitos de publicação de personagens como o Homem Aranha, Super-homem e X-Men nos países de língua árabe. Todos estes títulos fazem parte do pacote concedido à Unesco, onde Mutawa acumula prêmios como escritor de livros infantis.

Militante do diálogo pacífico entre os hemisférios, Mutawa não vê conflito algum em conciliar super-heróis muçulmanos e norte-americanos na mesma editora. Pelo contrário, é justamente neste cruzamento de culturas que sua busca se realiza: diminuir o preconceito em torno do islamismo.

Em 2006 entrevistei Naif Al Mutawa, em virtude de sua visita ao Brasil durante a edição o FIHQ-PE. Antecipo uma frase que considero bem importante. “O cristianismo não deve ser reduzido ao nazismo ou à membros da Ku Klux Klan, assim como o islamismo não deve ser reduzido à Al-Qaeda”. Salam!

Qual é a busca mais importante de “99”?

A busca mais importante é mostrar aos leitores muçulmanos e não-muçulmanos os atributos de Deus, como compaixão e misericórdia, sabedoria e criatividade. Sua missão mais importante é esta, e não pensar do Islã como seqüestradores ou sinônimo de Al-Qaeda. Igualando o Islã a essas agendas terríveis é como ligar o cristianismo ao nazismo. A busca mais importante de “99” é promover a crença na bondade da cultura islâmica.

Como o projeto “99” pode reduzir o preconceito contra o Islã?

Os extremistas não são culpa do Islã. Eles são culpa dos extremistas. O cristianismo não deve ser reduzido a nazistas e membros da Ku Klux Klan, assim como o Islã não deve ser reduzido a Al-Qaeda. Pesquisei no Alcorão os elementos para a criação de histórias. Acredito firmemente que o que você lê em um texto tem muito com o que você vive. Se você olhar para um texto com ódio, você vai ver o ódio. E se você olhar com compaixão, amor e tolerância … você vai ter idéias como o “99”.

Por que o incidente da caricatura de Maomé entre a Dinamarca e o Oriente Médio é, na sua opinião, o fundamentalismo em ambas as partes?

Porque ambas as partes estão a apontar para uma lei codificada para apoiar suas ações, que são  deploráveis ​​em ambos os casos. O jornal dinamarquês (e em outros jornais ocidentais) de alguma forma, sentiu que era seu direito dado por Deus publicar imagens do profeta como um terrorista e citar o direito de Liberdade de Expressão. Por outro lado, muçulmanos que reagiram violentamente para proteger o profeta, sentiram que este era seu direito. O jornal dinamarquês poderia facilmente ter usado outra pessoa para comunicar a mesma mensagem, não o profeta. Os muçulmanos que entraram na onda poderiam facilmente ter reagido da forma como o próprio profeta agiu quando sua legitimidade foi contestada, 1500 anos atrás. Ele fez isso com perspicácia política, um sorriso, e alianças formadas com o mais forte dos fortes. Ele não se comportou como um desordeiro indefeso gritando nas ruas. Eu acho que as emoções das pessoas foram manipuladas, elas se sentiram ofendidas, mas existem outras maneiras de lidar com essas violações.

E o maior perdedor foi o governo dinamarquês. Os muçulmanos querem desculpas por uma violação feita pelo setor privado (um jornal). E pobre governo dinamarquês, o maior defensor dos Direitos Humanos e protetores de vítimas de tortura em todo o mundo (que, aliás, acontece de forma desproporcional no mundo islâmico) foram forçados a pedir desculpas por algo que está fora do seu controle. A reação mais absurda foi a de um filósofo belga, que disse que os muçulmanos devem ser expostos a esses quadrinhos a cada semana para que eles pudessem se acostumar a eles. Tanta arrogância só vem dos lábios de um fundamentalista verdade.

Existe alguma orientação política explícita no seu trabalho?

Nenhuma. Minha única preocupação é que a religião e cultura islâmicas se manifestem em temas e arquétipos positivos para muçulmanos e não-muçulmanos. Acredito muito fortemente que o que você planta é o que você colhe. Coloco minha educação e paixão pelo Alcorão em  mensagens positivas, traduzidas em arquétipos. Fico longe da religião e política, mas na série, dois lados lutam para ganhar o controle da 99 pedras. Cada um tem uma agenda divergente. Um quer destruir e dominar, o outro quer curar e unificar. Eu não julgo os personagens. Só os apresento.