20 anos sem Gonzagão // O Rei e o Doutor do Baião

Fortaleza (CE) – Compositor que reinventou o baião, primeiro grande parceiro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira (1915-1979) se tornou a atração principal do 19º Cine Ceará. O documentário sobre sua história, O homem que engarrafava nuvens, foi exibido no evento no último domingo, data em que Gonzaga completou 20 anos de morte. Para receber o público, um trio de forró tocava as músicas da dupla. Teve até quem dançasse enquanto esperava a abertura das portas do Cine São Luiz.

“Aqui tem mais de cem Teixeiras”, garante Evangelina Margarida, prima do advogado que prefere classificar como poeta-compositor. Responsável pela convocação da família, dividida entre Fortaleza e a pequena Iguatu, a cidade natal do criador de clássicos como Asa Branca, Baião, Assum preto, Paraíba e Juazeiro, Margarida recebia o primo, Gonzagão e a cantora Carmélia Alves na própria casa durante os shows no interior cearense. “Ele poderia ter sido um mito, mas era muito recatado”. A prima descreve Teixeira como simples, afetuoso e um flautista de mão cheia – com 13 anos, ele tocava nas sessões do Cine Majestic em Fortaleza. “Nosso avô Lafayette ensinou as primeiras notas”.

Após a parceria, Teixeira continuou a compor, mas nem tanto. O parente Eurico Teixeira Júnior lembra que, enquanto advogado, ele se dedicou à luta pelos direitos autorais dos músicos, à época vitimizados por contratos leoninos com as gravadoras. Mais tarde, como deputado federal, criou a Lei Humberto Teixeira, que financiou a circulação de artistas em caravanas pelo Brasil e outros países. Como suplente da Câmara dos Vereadores de Iguatu, Eurico pretende promover um festival de música e um memorial em homenagem ao filho mais famoso da cidade.

Denise Dummont, filha de Teixeira e produtora do longa dirigido por Lírio Ferreira, subiu ao palco para apresentar o filme visivelmente emocionada, por “trazer esse homem de volta para casa”. “Luiz Gonzaga foi a cara do baião, mas meu pai foi o doutor do baião, apelido dado pelo próprio Gonzaga como reconhecimento. É normal que o intérprete ofusque o homem que compôs as canções. Por isso, ele nem sempre teve o reconhecimento que merece”, diz Dummont, antes da projeção começar.

Longa-metragem resgata figura do compositor

Ao longo da estreia cearense de O homem que engarrafava nuvens, as palmas incontidas e gente cantando junto deixaram claro de que o doutor do baião pode não ser tão conhecido assim, mas não há fronteiras para sua obra. Esse é justamente um dos objetivos do longa: contar a história do baião através de seus idealizadores e intérpretes, de Luiz Gonzaga à David Byrne e a japonesa Miho Hatori.

Com lançamento comercial previsto para outubro – mês dos 30 anos de morte de Humberto Teixeira – o novo longa Lírio Ferreira reconstitui a década de ouro do baião (1946-56) com imagens de arquivo costuradas a depoimentos. Método já utilizado no documentário anterior, Cartola – música para os olhos. “São trabalhos irmãos, com o mesmo DNA, apesar do Cartola ser mais lúgubre e noturno, e este ser mais solar, colorido”, diz Ferreira, ao Diario. “No Cartola, optamos por colocar uma ‘ponta preta’ no filme, para representar o sumiço dele enquanto viveu com uma terceira mulher, entre Deolinda e Dona Zica. Essa ‘ponta preta’ começaem 1944 e termina em 1954, exatamente a década de ouro no baião. Não foi só a história com a mulher que colocou Cartola na obscuridade. Aquela ponta preta é O homem que engarrafava nuvens. É aí que os filmes se completam”.

Mais do que um documentário sobre uma fase obscurecida da MPB, O homem que engarrafava nuvens é um acerto de contas pessoal em que a filha parte em busca do pai que a criou, mas foi negado por tanto tempo. Em momento “divã”, de emoções carregadas, Dummont pergunta quem era o pai à própria mãe, que deixou tudo por outro homem e foi morar em Nova York. “Eu tinha muito ressentimento. Amava minha mãe, mas por 50 anos fiquei pensando como ela foi capaz de me abandonar”, disse a atriz, na coletiva de imprensa ontem pela manhã.

20 anos sem Gonzagão // De Exu a Nova York


Byrne: de Psycho Killer ao baião de Gonzaga e Teixeira

A conexão Exu-Nova York pode ser longa, mas foi percorrida com rapidez por Luiz Gonzaga. Ainda nos anos 1940, suas músicas, escritas em parceria com Humberto Teixeira, deram o tom não só da música brasileira. De Peggy Lee a Carmen Miranda, de Dizzy Gillespie a Amália Rodrigues, não foram poucos os artistas a cantar o baião. O apelo era tanto que, nos anos 50 a música Paraíba foi parar no Japão, na voz de Keiko Ikuta.

Os “anos de ouro” do baião há muito se foram, mas não a força da obra gonzagueana. No fim dos anos 60, Frank Zappa promoveu um improvável encontro entre o rock experimental e Gonzagão, que foi sampleado no disco We’re only in it for the money.

Atualmente pelo menos duas bandas de forró sediadas em Nova York comprovam o alcance do legado do mais famoso filho de Exu. Uma delas é a Forró For All, mantida desde 1998 pelo sanfoneiro norte-americano Rob Curto, que se apresentou no Recife, durante o São João, e semana passada no Festival de Garanhuns. A outra é Forró In The Dark, que em 2006 lançou o álbum Bonfires of São João com participação especial de Bebel Gilberto e David Byrne.

Byrne escolheu tocar e cantar White wing, ou melhor Asa branca, performance devidamente registrada no último filme de Lírio Ferreira, O homem que engarrafava nuvens. Mais do que músico de longa data (parte dela na liderança do grupo Talking Heads), ele é fundador do selo Luaka Bop, que tem no catálogo artistas brasileiros (entre eles Tom Zé e Os Mutantes) e coletâneas de ritmos tradicionais e contemporâneos, como Brazil Classics, que abre com a faixa O fole roncou, de Gonzaga, e o recente What’s happening in Pernambuco?.

Em turnê pela Europa com Brian Eno (hoje se apresentam no Barbican Theatre, em Londres), Byrne respondeu a entrevista a seguir, por e-mail, com mediação da atriz Denise Dummont, produtora do longa de Ferreira e filha de Humberto Teixeira.

Entrevista // David Byrne: “É como brincar de texano com chapéu de cowboy”

Você surpreendeu o público brasileiro tocando baião com o chapéu de cangaceiro. Qual foi a sensação?
É como brincar de texano com chapéu de cowboy. Todo mundo sabe que eu não sou, mas o chapéu, em ambos os casos, é sinal de carinho pelos músicos e compositores regionais. Acredito que no caso de Luiz Gonzaga e Hank Williams é também sinal de empatia com a classe operária do Nordeste brasileiro ou com o Oeste norte-americano.

O que te levou a gravar com o grupo Forró In The dark?
Mauro Refosco e eu tocamos juntos por cerca de 10 anos e me perguntou se poderia colaborar com ele. Foi fácil, porque tínhamos feito um show com Gilberto Gil há alguns anos, onde juntamos minha versão para o inglês de Asa branca com a versão dele. Então Mauro sabia que eu poderia tocar a música. No estúdio, Mauro sugeriu que nós mudássemos juntos alguns acordes. Depois eu coloquei letras nessa parte do arranjo.

Quando surgiu seu interesse por Luiz Gonzaga? Pois além da Tropicália, Mutantes e Bossa Nova, outras músicas daquinão são tão conhecidas na parte de cima do mundo…
Estive na Bahia em meados dos anos 80, na rota para o Festival do Rio, onde apresentei meu filme True stories. Quando estava lá ouvi axé e forró no rádio e gravei alguns programas. Depois, toquei alguns trechos e perguntei às pessoas que tipo de música era aquela e quem estava cantando. Naquela época quase não havia informação em inglês sobre essas músicas (e certamente não tinha internet!). Então o único jeito de descobrir músicas era perguntar. Eu lembro que, alguns anos antes, fui apresentado a Bruno Barreto em uma festa em NY e perguntei a ele sobre os discos de Gil, Caetano e Milton, que tinha adquirido recentemente. Eu também queria saber que espaço esses artistas ocupavam na cultura brasileira. Me apaixonei por suas músicas, mas elas me pareciam boas demais para ser populares, se você me entende…

Há ligação entre sua música e a de Luiz Gonzaga?
Culturalmente estamos bem distantes, embora músicos consigam com frequência encontrar meios de se conectar, superando barreiras sociais.

Você vê conexão entre a cultura do forró e o folclore norte-americano?
Claro. Eu expliquei a Denise que quando eu comecei a entender o que significa Asa branca, imediatamente vi uma ligação entre o Dust bowl ballads que Woody Guthrie cantava nos Estados Unidos. São músicas sobre fazendeiros que precisam sair de suas casas após anos de seca – poderia haver algo mais similar? Aquelas músicas de Guthrie, claro, foram super influentes para Bob Dylan e muitos outros, na medida em que eram planas, melódicas e políticas ao mesmo tempo – da mesma forma, músicas de forró são folclóricas, catchy (ficam na cabeça) e políticas também – ao contar histórias sobre os desvalidos. Veja a letra de uma canção chamada Do re mi – Dó é a primeira nota musical, é claro, mas na gíria americana dough (que tem a mesma pronúncia) também significa pão/dinheiro. Guthrie dá um aviso para os refugiados de Oklahoma ou Arkansas, que deixaram suas terras e foram para a Califórnia começar uma nova vida.

O que você vê de especial, diferente ou peculiar na estrutura musical do forró?
A instrumentação africana, indígena, alemã e portuguesa, tudo isso misturado. Não deveria funcionar, mas funciona!

"O homem que engarrafava nuvens", de Lírio Ferreira, hoje, no Cine Ceará


Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: parceria preciosa e nem sempre conhecida

O homem que engarrafava nuvens, documentário de Lírio Ferreira, será exibido hoje à noite no 19º Cine Ceará.

Nada mais simbólico. Hoje se completam 20 anos desde que Luiz Gonzaga morreu.

Além disso, fazem 30 que se foi Humberto Teixeira, parceiro na criação dos primeiros e definitivos sucessos.

Na sala de imprensa, a produtora do longa, a atriz Denise Dumont, protesta ao ler os jornais locais, que dedicaram várias páginas ao velho Lua.

Ela tem motivos para tanto: é filha de Teixeira, o “doutor baião”.

Apenas uma matéria fala sobre o trabalho do pai. No título: “Humberto Teixeira reforçou parceria”.

“Ele criou a parceria!”, responde Denise.

O filme foi a forma de Denise apresentar o pai ao mundo, que sem saber o “conhece” via palavras cantadas por Gonzagão. É dele as letras de Asa Branca, Baião, Assum preto, Paraíba, Juazeiro, entre outros.

Projetado primeiramente em Nova York, no Museum of Modern Art (Moma), O homem que engarrafava nuvens percorreu festivais internacionais como o prestigiado International Documentary Film Festival of Amsterdam (IDFA), e mostras do Rio de Janeiro e do Pantanal, em Campo Grande, onde foi premiado pelo público e júri.

No último Cine PE, ele foi exibido fora de concurso, após a cerimônia de premiação.