Lira do que virá

A partir deste domingo, o mundo será testemunha da reinvenção de um artista. É quando José Paes de Lira, o Lirinha, disponibilizará para download as músicas de seu novo álbum. Mais pop que nunca, Lira fica melhor a cada audição e já chega como sério candidato a melhor álbum do ano. As doze faixas refletem a necessidade de demarcar um novo território, ao mesmo tempo em que revelam um eficiente trabalho de estúdio. É o trabalho mais pessoal de Lirinha, que, por inquietações estéticas, encerrou o Cordel do Fogo Encantado em fevereiro de 2010.

A expectativa em torno do trabalho solo aumentou com o anúncio da banda, um power-trio formado por Pupillo (Nação Zumbi), Bactéria (ex-Mundo Livre) e Neilton (Devotos). Além de tocar uma bateria stand-up (com três tons, construída especialmente para o projeto), Pupillo assina a produção, mixada em Paris.

As participações são mais que especiais: Otto e Ângela Rô Rô cantam em Valete; Fernando Catatau (Cidadão Instigado) e Miguel Marcondes (Vates e Violas) tocam violões em Sidarta; em sua última gravação em estúdio, Lula Côrtes toca tricórdio em Adebayor; outros convidados são Bozó, Maestro Forró, Sidclei e João Diniz Paes de Lira, filho de Lirinha. O álbum também demarca uma nova fase de Lirinha como cantor, mais contida e livre para experimentar novos timbres e texturas. “Tudo isso é muito novo pra mim. São canções melodiosas, tive que me reinventar como intérprete”.

Por mais ostensivo que fosse o culto dos fãs do Cordel, Lirinha sempre foi maior que o grupo. Em seu processo de rompimento, o regionalismo deixou de ser central para ser um elemento a mais em sua música. O compromisso com a poesia, no entanto, continua visceral. Lira, diz o Houaiss, é “repertório de letras de música popular reunidas em um volume”, ou “a poesia lírica; o estro, a inspiração, a arte poética”.

Lira parte de uma vontade urgente e legítima de ser novo, diferente. Arrisca e acerta. Tem muito de viciante. Mas principalmente, aponta para a importância de mudar, para que continuemos a nos reconhecer.

Entrevista >> Lirinha: “É a primeira vez que faço uma poesia tão pessoal”

Você está lançando material na internet no 11 de setembro, uma data bastante simbólica…
Na verdade não procurei uma data especial. Desde que terminamos o disco, já tinha o plano de lançá-lo na internet 15 dias antes do lançamento do CD, em outubro, e do primeiro show, que será em Natal. Escolhi o 11 de setembro, que marca a emancipação de Arcoverde e de uma série de cidades vizinhas. Mas sei que é também uma data impossível de se desvincular do ataque às Torres Gêmeas. Mas é um dia de desfiles em Arcoverde, então vou ajudar a enfeitar isso.

Lira conta com ótimos músicos. Como foi o processo de criação?
Foi dificil sair de um grupo estabelecido, de agenda cheia, para outro esquema, onde nada estava armado. Quando comecei construir as melodias, me juntei com Pupillo e pensamos como usar a linha de baixo, sintetizadores. Daí parti para o trabalho de letras, tocava todas as músicas em casa. Tudo levou um ano e meio.

As músicas refletem anseios atuais ou algo que você cultiva há tempos?
Esse trabalho tem uma mudança de conteúdo muito forte. É a primeira vez que faço uma poesia tão pessoal, com o meu olhar. No Cordel não me sentia nesse direito, pois era parte de um grupo. Agora me sinto em total liberdade e muito instigado a usar outros recursos de escrita, que trago comigo desde que comecei a carreira, mas nunca tinha utilizado. As composições são atuais mas tem a ver com toda a minha trajetória.

A sonoridade é bem diferente do que você vinha fazendo com o Cordel, que era mais ligada ao sertão. Por que você “desgarrou”?
Para encontrar a minha própria música. Fui pra um interior meu e nunca me senti tão autor. Por outro lado, minha lógica poética continua ligada a uma escola primeira, a dos cantadores. O exercício de ruptura com vem ocorrendo há alguns anos, desde que incorporei João Cabral, Alberto da Cunha Melo e as minhas próprias letras, que apontavam parra outras possibilidade que não a poesia trovadoresca, medieval.

Com o componente geográfico superado, que lugar você sente ocupar?
Estamos na década de 10, algumas discussões estão superadas. Nos anos 1990, tínhamos a necessidade de diferenciação territorial, devido à globalização e o surgimento da internet. E a música tinha objetivo de levantar bandeiras, por exemplo, misturar eletrônico e regional, para mandar o recado de ser cosmopolita e raiz. Isso foi perdendo o sentido, hoje fazemos música com todos os elementos possíveis, sintetizador, piano acustico, guitarra. Tudo está em transição, talvez esta geração esteja fazendo os últimos CDs. É como a metáfora das raizes e árvores. As raízes caminham, nos movimentamos. Isso é muito importante na construção da minha identidade.

Você tem shows marcados em Natal e São Paulo. Quando se apresenta no Recife?
Recife é forte, é a nossa casa. Quero chegar em novembro, com o show mais maduro.

(Diario de Pernambuco, 10/09/2011)

Festival de Gramado // Um Balzac para pensar o cinema

Nem Luciano Szafir, nem Paula Lima. A estrela da noite de domingo foi Honoré de Balzac. Não é pouco, para um festival que celebra os famosos do momento, evocar o escritor francês nascido 200 anos atrás. Pois foi através de Balzac e de obras em torno dele que o cineasta baiano Geraldo Sarno encontrou elementos para refletir sobre o processo de criação artística.

Com citações de Paul Valéry (“Nada é mais abstrato do que aquilo que é”), pintura, literatura e música erudita, o viés de O último romance de Balzac é, no mínimo, polêmico. O filme traz à tona a obra O avesso de um Balzac contemporâneo (Editora Lachâtre, R$ 48), análise “arqueológica” feita pelo psicólogo Osmar Ramos Filho sobre uma obra psicografada por Waldo Vieira (parceiro de Chico Xavier) em 1965, pelo espírito de Balzac. Faz também uma livre adaptação em de A pele de Onagro, um dos primeiros romances do escritor. Dentro da estética do cinema mudo, este “filme dentro do filme” é estrelado por José Paes deLira, mais conhecido como o Lirinha do Cordel do Fogo Encantado. Também estão no elenco Simone Spoladore e Ernesto Sollis.

Geraldo e Lirinha se encontraram na predileção de ambos por cantadores da fronteira Pernambuco/Paraíba foi fundamental para que Lirinha topasse entrar no projeto. Nos anos 1960, Geraldo rodou vários documentários sobre o tema. Por sua vez, declamadores como Pinto do Monteiro e Patativa do Assaré foram a primeira referência arrebatadora na formação de Lirinha.

Na manhã seguinte à exibição, durante o debate com a imprensa, o filme deu o que falar. Alguns não resistiram à tentação de taxá-lo de espírita, que estaria engrossando essa tendência que está tomando conta do cinema nacional. Hoje, por exemplo, Sylvio Back exibe em Gramado seu Contestado – restos mortais, documentário de 2h30 em que, através de 30 médiuns, ex-combatentes narram detalhes da guerra que ocorreu há 100 anos entre o Paraná e Santa Catarina. De formação marxista e com outros filmes que abordam questões religiosas como Viramundo, Iaô e Deus é um fogo, ele nega qualquer inclinação espírita do longa. “O filme não tem visão religiosa ou doutrinária. Eu não sou espírita. Respeito a visão do Waldo, que encaro como o processo de criação em que o artista, mesmo não religioso, pode viver. Não são poucos os artistas ou filósofos que se dizem possuídos no momento de criação”.

De acordo com Sarno, a interpretação do professor Osmar traz aspectos centrais na obra de Balzac, inéditos na crítica mundial. Que levaram não somente à A pele de Onagro, como ao pasticho de uma pintura de Paul Potter, considerado por Balzac como o Rafael dos animais. O projeto original incluía uma viagem a Paris, para documentar o universo do autor, logo abandonado em prol da releitura de Onagro. Nele, Rafael Valentin (Lirinha) aceita abreviar sua vida, em troca da realização de todos os seus desejos.

Ao Diario, Lirinha disse que antes de aceitar o papel, precisou superar sua resistência com as exigências do cinema. No entanto, no fim da ressaca provocada pela separação do Cordel do Fogo Encantado (seu primeiro disco sem o grupo sai no começo do ano), ele tem motivos para se identificar com Balzac e seu personagem. “A Teoria da Vontade é uma metáfora do trabalho artístico, em que ele encara dificuldades e decepções em busca do reconhecimento. Também me identifico com a ideia do suicídio na arte, a busca pelo recomeço, a morte como o inicio de algo novo. E Rafael vai cada vez para o subterrâneo, até chegar na situação de que ele não pode mais se apaixonar senão morre”. Além de protagonizar Balzac, Lirinha faz uma pequena homenagem a Glauber Rocha no inédito Transeunte, novo filme de Eryk Rocha.

Após a sessão e também no debate, não foram poucas as críticas ao filme de Sarno. O diretor responde que procura filmes de ruptura. E que assume o risco “suicida” de fazer o que não sabe. “Espero não ser aceito por quem busca entretenimento. Quero estar contra a corrente. Talvez não crie uma nova língua, então gaguejo para não falar a língua do cinema dominante”.

Diario de Pernambuco, 10/08/2010)

Eterno Patativa

Há 100 anos nascia Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. O timbre trêmulo de sua voz se findou em 2002, mas o agricultor cearense que se tornou um dos maiores representantes da cultura popular nordestina continua na memória dos que o conheceram e se inspiram em sua obra. Em sua terra natal, as homenagens começaram desde 1º de março, e chegam hoje ao ponto máximo com queima de fogos, café literário, cantorias, programa de rádio, missa, shows de Dominguinhos e Fagner, e a inauguração da reforma da casa de taipa onde nasceu, na Serra de Santana, a 12 km de Assaré, agora aberta à visitação.

Sua vasta produção literária, ao contrário do que ocorre nas efemérides de escritores consagrados, não foi relançada em edições de luxo. Primeiro, porque isso iria contra a própria essência de Patativa, que optou por viver de forma simples, mesmo após o reconhecimento dos acadêmicos europeus. Segundo, porque seus livros, constantemente reeditados, nunca deixaram de frequentar as livrarias. Por outro lado, as declamações em áudio não estão acessíveis – e vale perguntar por que.

Em termos atuais, Patativa seria considerado analfabeto funcional, pois sabia ler e escrever com alguma dificuldade. No entanto, assim como ocorreu com Angenor de Oliveira, o Cartola, sua incrível habilidade com as palavras o tornou um dos maiores poetas brasileiros.

Órfão aos oito anos, o pequeno Antônio não teve vida fácil. Com a ajuda do irmão mais velho, sustentou a família na roça. Frequentou escola por apenas quatro meses. Aos 16 anos, comprou seu primeiro violão e passou a cantar de improviso. Aos 20, um tio o levou para a capital, onde foi apresentado ao escritor José Carvalho de Brito, que começou a chamá-lo de Patativa. Nos anos 50, com a ajuda de José Arraes de Alencar, publicou seu primeiro livro Inspiração nordestina, pela editora Borçoi.

Não bastasse ter perdido a visão ainda criança, em decorrência de mazela popularmente conhecida como dor-d’olhos, aos 64 anos Patativa foiatropelado ao atravessar uma avenida em Fortaleza. Foi para o Rio de Janeiro na busca de um melhor tratamento, mas foi hospitalizado como indigente, até ser reconhecido por um médico residente que era do Crato, e conheceu o poeta anos antes, na casa da mãe do ex-governador Miguel Arraes, outro cearense do Araripe.

Outro golpe veio em 1993, com a morte de Dona Belinha, a esposa a quem sempre se declarou e atribuiu ser fonte de sua alegria. Morreu aos 93, rodeado de familiares e amigos, que íam visitá-lo em caravanas.

No entanto, sua voz continua a ecoar no trabalho de artistas por ele inspirados, como Luiz Gonzaga (que gravou A triste partida), Fagner (Vaca estrela e boi fubá, depois gravada por Rolando Boldrin, Sérgio Reis e Pena Branca e Xavantinho). “Quando tinha 10 anos, eu adorava ouvir Patativa no rádio, eu imitava aquela voz matuta. Já adulta, descobri um livro dele na casa de um amigo, e vi nele o nosso rap-repente. Quis musicar isso”, disse a cantora Daúde, que no seu disco de estreia gravou Vida sertaneja.

Lirinha, que teve nas estrofes de Patativa uma das inspirações para sua performance com o Cordel do Fogo Encantado, esteve com o poeta em mais de uma ocasião. “A primeira poesia que declamei profissionalmente foi Espinho e fulô, em 1987, no 4º Congresso de Cantadores do Recife. Patativa entrava nos intervalos dos cantadores mas, diferentemente dos outros declamadores, ele improvisava na estrofe falada, que a gente chama nesse meio de glosa, e passava 15 minutos falando com as pessoas da plateia”, lembra Lirinha.

“Aprendi com Patativa que a poesia pode falar dos problemas sociais. Tenho com ele uma relação afetiva, de respeito e identificação por perceber que ele é moderno antes de tudo” – Daúde, cantora

“Patativa foi uma das minhas primeiras inspirações. Dos 12 aos 17 anos, eu queria fazer aquilo que ele fazia. Minha escola foi o vazio do palco e o microfone, e desenvolvi a técnica de interpretar longas poesias a partir dele e outros grandes declamadores” – Lirinha, ator, cantor e compositor