Mostra de SP // "Um dia na vida", de Eduardo Coutinho

Um dia na vida (Brasil, 2010), novo trabalho de Eduardo Coutinho, quase não pode ser chamado de filme. É pouco menos do que experimento, algo mais do que provocação. Como de praxe na obra recente do documentarista, seu método foi revelado no início do longa. Só que, desta vez, as regras também valem para a exibição.

O que Coutinho batizou de “material gravado como pesquisa para um filme futuro” é resultado de 19 horas de programação da TV aberta, editados em 94 minutos. O recorte foi feito para ser exibido uma única vez, durante a 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

A manobra é uma clara demonstração de que o diretor de Cabra marcado para morrer (1964-84), Edifício Master (2000) e Jogo de cena (2008) não está nem aí para o que as pessoas esperam dele. Ao contrário, se arrisca como se esse fosse o primeiro – ou o último – projeto de sua vida. “De criativo ele não tem nada”, disse Coutinho, para cerca de 500 pessoas na noite de quinta-feira. “O princípio é da pilhagem. Tudo a certa medida é plágio, cópia, referência. A figura do artista original é uma farsa romântica”.

A exclusividade do evento, aliado ao prestígio do realizador, culminou em sala lotada, mesmo que nem uma linha, exceto as aspas acima, fosse antecipada sobre o que seria mostrado. O motivo da estratégia foi evitar qualquer possibilidade de Coutinho e equipe (liderada por João Moreira Salles) sofressem sanções legais por uso indevido de imagens.

TV no cinema – No fim da projeção, a colagem foi explicada e defendida pelos amigos Jorge Furtado e o montador Eduardo Escorel, que ressaltaram o princípio da descontextualização da obra original. Ao transferir imagens da TV para o cinema, surge o valor documental. De forma que esse “troço”, como o próprio Coutinho define, só não foi uma arapuca armada de forma maliciosa porque sim, remete a uma experiência interessante na medida em que potencializa as aberrações transmitidas diariamente para milhões de narcotizados.

Com os olhos bem abertos, assistimos programas e comerciais da Globo, SBT, Record, Band, Rede TV!, MTV, TV Brasil, zapeadas nas vésperas da escolha do Brasil como sede das Olimpíadas 2016. “Escolhi um período sem decisão de futebol, eleição ou grandes tragédias. Quando não acontece nada de relevante é que as coisas relevantes aparecem”, crê o diretor.

A edição começa com o telecurso e termina com o ritual do copo d’água às 2h da manhã. No meio do caminho, encontramos garotas seminuas caçando caranguejo, o cirurgião da moda ditando regras sobre o corpo feminino, propaganda do partido comunista e Wagner Montes dando a receita para se lidar com uma mulher rebelde: “Não precisa bater, basta segurar os braços”.

Durante o debate, Jorge Furtado demonstrou que foi pego de surpresa e estava tão consternado quanto outras pessoas da plateia. “Cinema e televisão usam a mesma linguagem. A diferença está na atenção que prestamos. A TV não foi feita para ser vista assim. No cinema ela grita, nos ofende. Jean Claude Carrière diz que o cinema ama o silêncio. Já a TV odeia o silêncio”. Na busca de caminhos, ele propõe uma via educacional para que alunos de universidades possam pensar a natureza do conteúdo televisivo. “Vamos contar quantas vezes se fala em Deus para ganhar dinheiro. Ou quantas vezes os pobres são humilhados pelos ricos”.

Já Coutinho não tem dúvida quanto à função social de tal programação. “Como máquina de despolitizar, a TV é perfeita”.

Mostra de SP // Caterpillar, de Kôji Wakamatsu

Com foco no patriotismo que sustentou a bravura japonesa durante a Segunda Guerra, o longa Caterpillar (Japão, 2010) olha para as mazelas provocadas por esse estado de espírito mantido até a eclosão das bombas de Hiroshima e Nagazaki. O filme de Kôji Wakamatsu foi exibido na quarta à noite na Mostra de São Paulo poderia ter contado com melhor projeção (a imagem digital estava um tanto opaca) mas isso não impediu que uma sala lotada percebesse sua alta qualidade.

A história começa cinco anos antes, durante a guerra Sino-japonesa, da qual o Tenente
Kurokawa (Keigo Kasuya) volta para casa sem braços, pernas, voz e audição. Sua mulher, Emi (Shinobu Terajima, prêmio de melhor atriz em Berlim) recebe a missão de cuidar do marido, nomeado pelo Império japonês como Deus da Guerra e heroi local.

Inicialmente considerada um fardo por Emi, a missão se mostra parcialmente vantajosa, já que a condição do marido atrai doações em comida, coisa rara durante a guerra, e reconhecimento social. A aparência de seu marido, apelidado de “lagarta” (caterpillar em inglês), aos poucos se mostra menos monstruosa do que seu passado, que volta em forma de alucinações e pesadelos.

Pelo tom ideológico antibélico e a inevitável analogia física dos protagonistas, Caterpillar dialoga com Johnny vai à guerra (Dalton Trumbo), também pelo impedimento físico decorrente da ação em campo de batalha. Outra referência imediata é a HQ Gen – Pés Descalços, de Keiji Nakazawa, desenhista que sobreviveu à bomba. Principalmente ao assistir dos que vão orgulhosos para a morte e a expressão de desespero de Emi enquanto canta o hino do país com a cabeça do marido no colo.

Mostra de SP // Metropolis, 2010

Uma única sessão de cinema foi capaz de reunir mais de doze mil pessoas no Parque do Ibirapuera. Como ignorar a projeção, na parede externa do auditório desenhado por Oscar Niemeyer, da cópia restaurada do clássico do expressionismo alemão Metropolis (Alemanha, 1927), de Fritz Lang? A singularidade do programa o tornou irresistível e atraiu diferentes tribos e gerações.

Sincronizado com o som da Orquestra Jazz Sinfônica, que interpretou o music score original composto por Gottfried Ruppertz, o filme de 248 minutos teve sua primeira exibição na América Latina, promovida pela Mostra Internacional de Cinema. Era uma noite de domingo fria e úmida, o filme-evento teve dois intervalos para descanso da orquestra, mas o público resistiu até o fim. E aplaudiu de pé.

Foi um cenário e tanto. Árvores escuras, em contraste com o céu monocromático, poderiam ser a extensão em 3D do da distopia futurista criada por Lang. Oitenta anos depois, em silêncio, a metrópole assiste a si mesma. Entre os convidados do evento estava o diretor alemão Olav Saumer, que participa da mostra competitiva com seu longa de estreia, Clube do suicídio. “Nunca imaginei que sairia da Alemanha para assistir Metropolis no Brasil. A última vez que assisti esse filme foi em VHS”.

A quantidade de pessoas e a quietude da sessão poderia supor uma liturgia, mas cigarros acessos e garrafas de vinho não permitiriam tanto. Bicicletas deitadas na grama, pessoas idem. Algumas trouxeram animais de estimação, como a estudante de arquitetura Luana Teodoro. “Foi uma grande ideia dos organizadores da Mostra. A sessão de hoje entrou pra história de São Paulo”, disse, ao lado de seu dálmata.

Metropolis foi restaurada pela Fundação Murneau em Wiesbaden, após a descoberta de um negativo em 16mm no Museu do Cinema de Buenos Aires. Promovida pela Mostra Internacional de Cinema, a sessão no Ibirapuera teve os mesmos moldes da realizada durante o Festival de Berlim, quando a versão completa do filme foi projetada no Portal de Brandenburgo.

(Diario de Pernambuco, 26/10/2010)

Mostra de SP // Visões do paraíso

As infinitas sessões da 34ª Mostra Internacional de Cinema podem ser uma visão do paraíso. No entanto, antes há o purgatório da escolha, que passa por optar entre uma retrospectiva nórdica com presença do diretor norueguês Bent Hammer ou a oportunidade de assistir aos clássicos de John Ford numa sala de cinema. A filosofia do evento é trazer para o país filmes que dificilmente viriam de outra forma. Daí se entende situações insólitas como filas para assistir filmes da Armênia, Sri Lanka, Estônia, Haiti, Eslováquia, Ucrânia, Vietnã e países da antiga União Soviética.

Hoje à noite, o dilema é entre a cópia restaurada de Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, e o novo corte de 280 minutos feito por Wim Wenders para Até o fim do mundo (1993). Convidado de honra do festival, Wenders estará na sessão e também abrirá o evento Os filmes da minha vida.

Na última terça-feira, o diretor alemão inaugurou exposição de fotografias Lugares, estranhos e quietos, que ocupa o primeiro andar do Masp. Ao longo dos anos, Wenders lançou seu olhar de viajante ao redor do planeta e o resultado está nessa mostra inédita. As imagens variam entre landscapes como a que mostra enorme cratera provocada por um meteoro na Austrália ou recortes da realidade, que como em seus filmes, revelam o que há de insólito ou fantasmagórico numa casual esquina urbana. O cruzamento de ruas, aliás, simboliza bem o espírito da busca de Wenders. Não se sabe muito bem o que iremos encontrar ao tomar um dos caminhos e isso é um estímulo e tanto para a imaginação.

Wenders também esteve na cerimônia de abertura, na noite de quinta-feira, em que a atração principal foi o novo longa de Manoel de Oliveira, O estranho caso de Angélica. Como o diretor português (introduzido no país pela própria Mostra, em 1979) não pode vir, mandou um vídeo pela internet, onde se diz desolado pelo impedimento de seu médico, que o fez trocar de marcapasso antes de viajar para a mostra. Por isso, ainda há a expectativa de que o mestre de 102 anos ainda possa estar entre nós.

O estranho caso de Angélica é de uma poesia sem fim. Sem a preocupação de parecer moderno ou de honrar suas várias décadas de experiência, Oliveira faz um cinema sem pressa, de tempo próprio. No filme, coprodução Brasil-Portugal, ele assume como alterego um fotógrafo (Ricardo Trêpa), um coletor de imagens munido de câmera mecânica. A história começa quando uma família importante o chama para fazer a última foto de Angélica, bela filha que morreu, mas mantém misterioso sorriso nos lábios. Há um quê de Blow Up de Antonioni quando, através do dispositivo ótico da câmera fotográfica, a falecida volta à vida, tamanho é o mistério das imagens.

Outro momento especial da abertura foi a presença de Teruyo Nogami, que trabalhou por mais de 50 anos ao lado de Kurosawa e trouxe para o Brasil exposição de desenhos (storyboards), lançados em livro pela CosacNaify. Ela disse emocionada que imaginou um encontro centenário entre Kurosawa e Oliveira, e saber que o diretor português estaria no país a motivou a fazer a viagem aos 83 anos de idade.

(Diario de Pernambuco, 23/10/2010)

Um festival, 400 filmes


O estranho caso de Angélica, de Manoel Oliveira, abre a Mostra hoje à noite

Com mais de 400 filmes na programação, a 34ª Mostra Internacional de São Paulo começa hoje à noite, com a exibição de O estranho caso de Angélica, novo filme de Manoel de Oliveira. O centenário diretor português viria para a abertura, mas precisou fazer uma operação de emergência para troca de marcapasso. De acordo com Leon Cakoff, organizador da mostra e coprodutor do filme, o cineasta está bem e deve comparecer para a cerimônia de encerramento.

A partir de hoje, o Diario estará no evento cuja grandiosidade só é superada pela qualidade da programação. A começar pelos clássicos, Metropolis (1927) de Friz Lang será projetado em parede externa do auditório do Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer. Será a primeira exibição clássico restaurado com cenas inéditas e musicado ao vivo pela Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo.

Presente no evento, Wim Wenders inaugura exposição inédita de fotos, também publicadas em livro editado pela Mostra e terá retrospectiva de filmes emblemáticos como O filme de Nick, Asas do desejo, Paris Texas e Até o fim do mundo, este em nova edição de 240 minutos. O cinema alemão também está representado pela presença de atriz Hanna Schygulla, a preferida de Fassbinder. Outro convidado especial é Alan Parker, que preside o júri e terá mostra com O expresso da meia-noite (1978), Pink Floyd The Wall (1982) e Mississippi em chamas (1988).

Os 100 anos de Akira Kurosawa são lembrados com exibição de Rashomon (1950), Madadayo (1993) e exposição de 80 desenhos originais do mestre, organizada em parceria com o Instituto Tomie Ohtake. É a primeira vez que a coleção será exposta fora do Japão.

A grandiosidade da mostra que mobiliza equipe de 500 pessoas e custa R$ 6,2 milhões só é superada pela qualidade da programação de filmes aplaudidos em Cannes, Berlim, Veneza e produzidos em países díspares como Tailândia, Haiti, Coreia do Sul, Palestina e Noruega.

A capacidade de se renovar permite que nomes consagrados como Woody Allen, Sofia Copolla, Zhang Yimou e Jean Luc Godard convivam com novos realizadores como o pernambucano Gabriel Mascaro, que já participou da Mostra com KFZ -1348 (dele e Marcelo Pedroso) e agora volta com o desafiante Avenida Brasília Formosa.

“Não tem megalomania, é amor ao cinema”, diz Cakoff, por telefone. Para marinheiros de primeira viagem na Mostra, como este repórter, a dica é simples: “Sabe nadar? Mergulha”.

(Diario de Pernambuco, 21/10/2010)