Cineastas fortalecem cineclubes


Patativa, sua esposa e Cariry, em cena do filme cedido para circuito cineclubista

Desde o começo do mês, os documentários Patativa do Assaré: ave poesia (2008), Rosemberg Cariry, e Chama Verquete (2001), de Luiz Arnaldo Campos e Rogério Parreira estão circulando em sessões gratuitas em todo o Brasil. Os realizadores abriram mão dos direitos de exibição pública em prol do fortalecimento de uma rede alternativa de exibição de filmes, formada por cerca de duas centenas de cineclubes do país. A programação segue até setembro.

Em Pernambuco, o filme de Cariry será exibido primeiro no Cineclube Amoeda Digital. A sessão será hoje, às 18h, no Bar Central (Rua Mamede Simões, 144 – Boa Vista). Além do Amoeda, oito cineclubes pernambucanos participam do circuito: Centro Escola Do Manguê (Recife), Cine Califórnia (Recife), Cineclube Alternativo São José (Afogados da Ingazeira), Cineclube da ABD-PE / APECI (Recife), Cineclube da Associação Quilombola Conceição das Crioulas (Recife), Cineclube do Bom Jardim (Bom Jardim) e Cineclube Iapôi (Goiana). Para saber o dia e hora de cada sessão, ou inscrever um cineclube no circuito, é preciso consultar o blog da Federação Pernambucana de Cineclubes (Fepec): www. fepec.blogspot.com .

O Circuito Patativa / Verquete é a primeira ação de um projeto que visa democratizar o acesso a filmes brasileiros, promovido pelo Conselho Nacional de Cineclubes, em parceria com o Cine Mais Cultura, do Governo Federal. Para Antônio Claudino de Jesus, presidente do CBC, esta é uma demonstração da força nacional do movimento. “Os cineclubes funcionam separadamente. O circuito serve para manter a unidade territorial, pois assim garantimos uma identidade de ação conjunta”.

Coordenador do Cineclube Amoeda Digital e presidente da Fepec, Gê Carvalho atribui a realização do circuito à generosidade dos realizadores. “Cariry não liberou o filme dele, que ainda está em cartaz em cinemas comerciais, por ser uma pessoa legal, mas porque tem consciência de que o problema do cinema nacional é a falta de janela”.

Cariry, que é presidente do CongressoBrasileiro de Cinema, não só cedeu o filme Patativa do Assaré, como forneceu várias cópias para o acervo dos cineclubes. “Qualquer ação como esta merece total apoio. A indústria do audiovisual brasileiro está produzindo atualmente cerca de 100 longas e centenas de documentários e curta-metragens que muitas vezes sequer encontram espaço para serem lançados publicamente. Este fato além de frustrar os realizadores, inibe o desenvolvimento da indústria nacional”.

Carlos Reichenbach, João Batista de Andrade e Gustavo Dahl são outros cineastas que cederam suas obras para exibição nos cineclubes. Claudino diz que esta ação cumpre uma a missão de defender os direitos do público e do cinema independente brasileiro. “A produção nacional quase não tem espaço nos cinemas de shopping. O público tem o direito a assistir a esses filmes e essa é a razão da existência do movimento cineclubista. Mais de 90% dos filmes nacionais são feitos com dinheiro público. Nada mais justo do que eles retornem ao público, gratuitamente”.

Eterno Patativa

Há 100 anos nascia Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. O timbre trêmulo de sua voz se findou em 2002, mas o agricultor cearense que se tornou um dos maiores representantes da cultura popular nordestina continua na memória dos que o conheceram e se inspiram em sua obra. Em sua terra natal, as homenagens começaram desde 1º de março, e chegam hoje ao ponto máximo com queima de fogos, café literário, cantorias, programa de rádio, missa, shows de Dominguinhos e Fagner, e a inauguração da reforma da casa de taipa onde nasceu, na Serra de Santana, a 12 km de Assaré, agora aberta à visitação.

Sua vasta produção literária, ao contrário do que ocorre nas efemérides de escritores consagrados, não foi relançada em edições de luxo. Primeiro, porque isso iria contra a própria essência de Patativa, que optou por viver de forma simples, mesmo após o reconhecimento dos acadêmicos europeus. Segundo, porque seus livros, constantemente reeditados, nunca deixaram de frequentar as livrarias. Por outro lado, as declamações em áudio não estão acessíveis – e vale perguntar por que.

Em termos atuais, Patativa seria considerado analfabeto funcional, pois sabia ler e escrever com alguma dificuldade. No entanto, assim como ocorreu com Angenor de Oliveira, o Cartola, sua incrível habilidade com as palavras o tornou um dos maiores poetas brasileiros.

Órfão aos oito anos, o pequeno Antônio não teve vida fácil. Com a ajuda do irmão mais velho, sustentou a família na roça. Frequentou escola por apenas quatro meses. Aos 16 anos, comprou seu primeiro violão e passou a cantar de improviso. Aos 20, um tio o levou para a capital, onde foi apresentado ao escritor José Carvalho de Brito, que começou a chamá-lo de Patativa. Nos anos 50, com a ajuda de José Arraes de Alencar, publicou seu primeiro livro Inspiração nordestina, pela editora Borçoi.

Não bastasse ter perdido a visão ainda criança, em decorrência de mazela popularmente conhecida como dor-d’olhos, aos 64 anos Patativa foiatropelado ao atravessar uma avenida em Fortaleza. Foi para o Rio de Janeiro na busca de um melhor tratamento, mas foi hospitalizado como indigente, até ser reconhecido por um médico residente que era do Crato, e conheceu o poeta anos antes, na casa da mãe do ex-governador Miguel Arraes, outro cearense do Araripe.

Outro golpe veio em 1993, com a morte de Dona Belinha, a esposa a quem sempre se declarou e atribuiu ser fonte de sua alegria. Morreu aos 93, rodeado de familiares e amigos, que íam visitá-lo em caravanas.

No entanto, sua voz continua a ecoar no trabalho de artistas por ele inspirados, como Luiz Gonzaga (que gravou A triste partida), Fagner (Vaca estrela e boi fubá, depois gravada por Rolando Boldrin, Sérgio Reis e Pena Branca e Xavantinho). “Quando tinha 10 anos, eu adorava ouvir Patativa no rádio, eu imitava aquela voz matuta. Já adulta, descobri um livro dele na casa de um amigo, e vi nele o nosso rap-repente. Quis musicar isso”, disse a cantora Daúde, que no seu disco de estreia gravou Vida sertaneja.

Lirinha, que teve nas estrofes de Patativa uma das inspirações para sua performance com o Cordel do Fogo Encantado, esteve com o poeta em mais de uma ocasião. “A primeira poesia que declamei profissionalmente foi Espinho e fulô, em 1987, no 4º Congresso de Cantadores do Recife. Patativa entrava nos intervalos dos cantadores mas, diferentemente dos outros declamadores, ele improvisava na estrofe falada, que a gente chama nesse meio de glosa, e passava 15 minutos falando com as pessoas da plateia”, lembra Lirinha.

“Aprendi com Patativa que a poesia pode falar dos problemas sociais. Tenho com ele uma relação afetiva, de respeito e identificação por perceber que ele é moderno antes de tudo” – Daúde, cantora

“Patativa foi uma das minhas primeiras inspirações. Dos 12 aos 17 anos, eu queria fazer aquilo que ele fazia. Minha escola foi o vazio do palco e o microfone, e desenvolvi a técnica de interpretar longas poesias a partir dele e outros grandes declamadores” – Lirinha, ator, cantor e compositor

Costura de imagens raras


CARIRY, PATATAIVA E DONA BELINHA NOS ANOS 1970

“Ele era o nosso Pablo Neruda, o nosso Garcia Lorca, a voz e expressão dos brasileiros. Me emociono por saber que, mesmo com tanta miséria, o povo é capaz de gerar consciências tão profundas sobre nossa realidade”. Essa é a opinião do diretor Rosemberg Cariry, que esteve no Recife para a sessão de estreia de Patativa do Assaré – Ave poesia (2007). O documentário de longa-metragem será exibido até a próxima quinta, nas sessões de arte dos Multiplex Boa Vista e Recife (veja roteiro).

Em conversa com a reportagem do Diario, Cariry demonstrou carinho especial pelo projeto. “Conheço Patativa desde pequeno, quando frequentava o bar do meu avô, no Crato, e ia almoçar na casa dos meus pais”. Daí nasceu a amizade entre o cineasta e o poeta, que durante 27 anos, rendeu 100 horas de imagens em raros depoimentos. O material que não entrou no corte final (o filme tem 80 minutos), está em fase de restauração e digitalização para ser doado ao Arquivo Nacional. Outro produto é uma série de TV com cinco capítulos, que deve ser lançada em 2010 nas TVs públicas e em formato DVD.

As diferentes bitolas com que o material foi filmado (super 8, fita magnética, película e digital) fazem do documentário uma colcha de retalhos de diferente cores e texturas, o que faz um retrospecto da história recente do Brasil não somente no viés político/social (nos anos 50, Patativa apoiou com seus versos as ligas camponesas lideradas por Francisco Julião), mas também do próprio cinema e sua tecnologia.

Para chegar a tanto, Cariry costurou imagens raras de Patativa no roçado com trechos de Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, e a sequencia em que Luiz Gonzaga canta A triste partida com Viramundo (1964), de Geraldo Sarno. “É a história da minha geração”, afirma Cariry.

No debate após a sessão, pessoas que mantiveram relação de amizade com o poeta cearense revelaram-se entre o público. José do Vale Pinheiro Feitosa lembrou o episódio em que o poeta foi internado no Rio, e lá encontrou um médico conterrâneo. “Ele passou a visitá-lo diariamente, no que era acompanhado por colegas. Patativa fez tanto sucesso, que o movimento em torno do seu leito foi tamanho, que a direção do hospital providenciou a transferência para um apartamento e baixou regras disciplinando as visitas”, diz Pinheiro, que revelou ao Diario a resposta de Patativa em carta ao amigo Walmir Farias: “Eu ainda estou manquejando / Fora da linha pensando / Comigo mesmo a dizer, / Patativa que não voa / É um animal atôa / Não vale a pena viver”.

Pouco tempo depois, ele contou em carta para a amiga e poeta Ceci Alencar que já lida melhor com o impedimento. “Não pude obter a minha recuperação, ando com o auxílio de um aparelho ortopédico e uma muleta de alumínio. Porém, não lamento o meu estado, estou conformado com essa parcela de sofrimento que a vida me ofereceu”.

Pinheiro também lembrou a campanha eleitoral de 1986, em que Patativa veio a Pernambuco e se indignou com o marketing contra Miguel Arraes, seu amigo e parente (as avós eram primas), cuja publicidade mostrava Arraes como retrógado. Redigiu então a poesia Dois candidatos: “Migué Arraes de Alencá / É cidadão imzemprá / Com sentimento nobre / Nunca mudou o seu prano / É lutadô veterano / Amigo do povo pobre (…) Seu dotô Muço Montêro / Os seus cofre de dinhêro / O inleitorado não qué / Neste assunto não se meta / Fique com sua chupeta / Que a vitória é do Migué / Pra lutar cronta o Arraes / Você ta novo de mais / Meu fio, vá se aquieta / É mió pensá um pôco / Que quanto mais veio o côco / Mais azeite o côco dá”.

publicado no Diario de Pernambuco

Dois poemas de Patativa

Trecho de A triste partida, eternizado na voz de Luiz Gonzaga

…Sem chuva na terra
descamba janêro,
Depois, feverêro,
E o mêrmo verão
Entonce o rocêro,
pensando consigo,
Diz: isso é castigo!
Não chove mais não!

Apela pra maço,
que é o mês preferido
Do Santo querido,
Senhô São José.
Mas nada de chuva!
Tá tudo sem jeito,
Lhe foge do peito
O resto da fé.

Agora pensando
segui ôtra tria,
Chamando a famia
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
Nós vamo a São Palo
Vivê ou morrê…

O amigo Joaquim Pinheiro Bezerra de Menezes, que acompanhou de perto parte da trajetória de Patativa, lembra episódio em que D. Hélder Câmara queria denunciar a violência de que foi vítima o Padre Henrique, torturado e assassinado em 1969 por agentes da ditadura. “Como a censura limitava muito a divulgação dos fatos relacionados com esta truculência, ocorreu ao Arcebispo que a literatura de cordel não passava pelos censores. Assim, apelou a alguns cordelistas mas não aceitaram a tarefa. Recorreu a Patativa que não só se prontificou a fazer os versos como não quis se esconder sob pseudônimo. Tenho um exemplar, oferecido ao meu pai pelo poeta”
Gentilmente, Pinehrio transcreveu transcreveu 5 das 64 estrofes:

O Padre Henrique e o Dragão da Maldade

E, por falar em injustiça
Traidora da boa sorte
Eu conto ao leitor um fato
De uma bárbara morte
Que se deu em Pernambuco
Famoso Leão do Norte.

Padre Henrique tinha apenas
29 anos de idade,
Dedicou sua vida aos jovens
Pregando a santa verdade.
Admirava a quem fez
A sua fraternidade

Tinha três anos de padre,
Depois que ele se ordenou
Pregava a mesma missão
Que Jesus Cristo pregou
E foi por esse motivo
Que o dragão lhe assassinou.

Por causa do seu trabalho
Que só o que é bom almeja
O espírito da maldade
Que tudo estraga e fareja,
Fez tristes acusações
Contra D. Hélder e a igreja.

Pensando no triste caso
Entristeço e me comovo,
O que muitos já disseram,
Eu disse e digo de novo,
O Padre Henrique é um mártir
Que morreu pelo seu povo.