Corações e lentes sobre o brega

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À revelia das ilusões afetivas ou profissionais sustentadas por seus protagonistas, o filme “Amor, plástico e barulho” inicia com um episódio nada romântico. No banheiro de uma casa de shows da noite brega recifense, duas garotas vomitam nas instalações sanitárias, para então, cúmplices, retocar a maquiagem e voltar para a festa. Bêbadas, mas sem perder a pose. Eis a sórdida síntese com que a diretora Renata Pinheiro antecipa a mistura de purpurina e mal-estar promovida por seu primeiro longa de ficção, lançado em setembro, no 46º Festival de Brasília.

“Amor, Plástico e Barulho” saiu da mostra competitiva de Brasília com sua maior riqueza reconhecida, o trabalho com as atrizes Maeve Jinkings e Nash Laila – além do justo prêmio de melhor direção de arte para Dani Vilela. Apesar dessa divisão não ser tão clara na dinâmica do elenco, Maeve e Nash ganharam os prêmios de melhor atriz principal e coadjuvante, talvez mais como reflexo dos papéis que representam, respectivamente, uma cantora estabelecida no star-system local e uma aspirante que ambiciona a fama, já que os papeis são de igual importância para o equilíbrio narrativo da produção.

A doce vida dos profissionais do brega também é dura, diz o filme de Renata. O ponto de vista é o das mulheres, que colocam corpo e voz na linha de frente. Não é o caso de desmerecer o núcleo masculino de atores, formado por Leo Pyrata, Samuel Vieira, Rodrigo Garcia, Dedesso, Everton Gomes, Paulo Michelotto e Rodrigo Rizla. Mas de reconhecer a entrega e maestria com que Maeve encarna Jaqueline; a leveza e naturalidade com que Nash vive Shelly. No descompasso e tentativas de superação das duas personagens está a grande força do filme.

Ambas fazem parte da Banda Amor com Veneno, cujo empresário administra dentro da cartilha da exploração capitalista: muito trabalho, salários baixos e condições de trabalho sub-humanas. A princípio, isso não parece uma questão para as garotas. No entanto, conforme mapeia essa realidade, o filme justifica a amargura etílica e sem perspectiva de Jaqueline, que Shelly, no frescor dos 20 anos, sente, mas não consegue entender.

Não apenas pela tridimensionalidade com que as protagonistas são representadas, o elogio ao brega se faz presente em “Amor, Plástico e Barulho”, dos cenários ao figurino, do som estridente aos diálogos que reproduzem o imaginário popular. Se o mundo brega é cruel, é também colorido e estimulante. É um prato cheio para Renata Pinheiro, que vem de uma trajetória de destaque como diretora de arte, sendo o ótimo trabalho no longa “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, o mais recente. Renata demonstra competência, principalmente nas contagiantes sequências musicais, em bonitas coreografias e cenários de torpor e fantasia.

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A dimensão política do filme está na defesa da tese de que a cultura brega incomoda não por motivos culturais, mas sociais. É a música do povo, daí sua rejeição por elites de qualquer espécie. Isso fica claro na forma pouco sutil com que cenários do novo Recife são incorporados ao filme, como o Shopping RioMar (rebatizado RioMangue) e suas torres comerciais, o empresarial JCPM, pontos turísticos como o Parque das Esculturas ou o passeio de catamarã pelo Rio Capibaribe. Ricos também são excessivos e ostentam mau gosto.

A trilha sonora, composta por Yuri Queiroga e Hélder Aragão (DJ Dolores), radicaliza o conceito do filme ao se impregnar do gênero musical e, por vezes, promover releituras artísticas. Uma em especial evidencia de forma curiosa que o preconceito contra o brega não é de ordem estética. Durante um número romântico, a música muda de uma levada brega para um arranjo mais próximo ao disco dos anos 1970. O resultado é eletrizante. É praticamente a mesma música.

Vídeos do Youtube e programas televisivos são outros elementos que dão sentido político à obra, que busca refletir a forma violenta com que símbolos do consumismo são incorporados por meios desprovidos de outras fontes educativas ou de informação. Uma lógica que recai inclusive sobre o corpo, principal mercadoria a ser valorizada, usada pelas próprias mulheres como moeda de troca.

“Elas vivem esta realidade e nos aproximamos desta busca pela beleza e juventude como algo que faz parte de qualquer show business. De qualquer forma, não há inocência nestas mulheres, elas têm consciência do poder de seus corpos e são donas dos seus destinos”, diz Renata. “Se formos ver por outro lado, o mundo já foi muito mais moralista e fez com que a mulher escondesse seu corpo e sua sensualidade. Eu prefiro os dias de hoje”.

Renata vê na cultura brega liberdade e autovaloração sem preconceitos ou moralismos, além da capacidade de existir de forma alheia à cultura oficial. Com “Amor, Plástico e Barulho” ela se torna a primeira mulher a realizar um longa de ficção. Sobre sua estreia no formato, diz que “é preciso vencer os medos. Me senti preparada para este desafio. Tenho formação em teatro, atuei como atriz em espetáculos, em artes plásticas, onde realizei diversas exposições no Brasil e no exterior. Ingressei no cinema muito naturalmente, levando essa bagagem que já faz parte de mim”.

Renata e seu companheiro Sérgio Oliveira (produtor e roteirista) conceberam um filme que transita entre o experimental, dramático e musical, unindo imagens e texturas díspares. Ao almejar a arte, propor reflexão e procurar o diálogo com o público – a reação da plateia em Brasília foi um bom termômetro, “Amor, Plástico e Barulho” se torna obra atípica no atual cinema nacional que, para conseguir o seu quinhão de espectadores, tem produzido comédias rasas, apelativas e calcadas em celebridades televisivas. O resultado pode render dinheiro a alguns, mas é artisticamente desastroso. Cabe ao cinema independente encontrar um caminho.

(Revista Continente, novembro de 2013)

De plástico, barulho e seres humanos

Nash Laila e Leo Pyrata em cena romântica de “Amor, Plástico e Barulho” (foto: Toinho Melcop)

Desde a última segunda-feira, o terraço da boate Metrópole, no bairro da Boa Vista, serve de locação para as filmagens do musical “Amor, Plástico e Barulho”. É o primeiro longa de ficção de Renata Pinheiro, que com o marido Sérgio Oliveira na produção ou codireção, assinou os curtas “Superbarroco”, um dos mais premiados de 2009, “Praça Walt Disney”, eleito o melhor de 2011 pela Associação Brasileira dos Críticos de Cinema e o documentário “Estradeiros”, sobre artesãos nômades, pejorativamente chamados de “hippies”.

Agora Renata olha para outra cultura subestimada pelo preconceito: o brega. Não é a primeira vez que ela e Sérgio se dedicam ao tema. Em 2010, ele dirigiu com Petrônio Lorena o curta “Faço de mim o que quero”, projeto idealizado por Renata, que não pode estar à frente por estar envolvida em outros trabalhos. Ainda assim ela assina a coreografia final, em que os créditos estão marcados no corpo dos bailarinos, que Renata define como embrião do novo projeto.

Quando a reportagem chegou ao set, o terraço já estava transformado em casa de shows com pisca-piscas, luminárias recicladas no formato de abacaxis e folhagens de todo o tipo. A equipe converge seu trabalho para o palco, onde se apresentam Jaqueline (Maeve Jinkings) e Alan (Samuel Vieira, baixista da Mombojó). Juntos, eles fazem uma performance erótico-pornográfica, em que dançam e cantam uma música de DJ Dolores, composta especialmente para o filme.

Renata Pinheiro dirige atrizes; em primeiro plano, Maeve Jinkings (foto: Toinho Melcop)

Em conversa com a Folha, Renata diz que seu filme não trata somente do brega, mas das dificuldades e sucessos dos artistas da periferia, o que percebeu ao viajar com uma ban­da no interior paraense. “São pessoas que trabalham em um showbizz precário, periférico, feito de sonhos e decep­ções. A linguagem do musical surge quando o filme entra no mundo subjetivo de Chelly (Nash Laila, de “Deserto Feliz”), dançarina novata que deseja virar cantora”.

Natural do Pará, Maeve tem referências suficientes para encarnar a personagem. Rosto cada vez mais presente em filmes pernambucanos (“O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, e “Boa Sorte, Meu Amor”, de Daniel Aragão, são apenas os primeiros), em “Amor Plástico e Barulho” ela surge bem diferente do usual, com maquiagem pesada, vestido curto e tamancos de oncinha (o figurino é de Joana Gatis). Eis Jaqueline, líder da banda fictícia Amor com Veneno, inspiração maior de Chelly. Também no elenco está o diretor e ator mineiro Leo Pyrata, no papel de um DJ.

Renata afirma que não procura fazer juízo de valor e que busca com seu longa um meio termo entre o filme de arte e de apelo popular. “Gosto do brega porque ele estimula a sexualidade livre e busca uma sensualidade romântica no caos, contrariando as imposições de mercado”. Por sua vez, Sérgio vê semelhanças entre o brega e o “do it yourself” do punk rock, de acordes restritos e situações precárias. “É um filme político, pois questiona preconceitos da dita classe pensante e por tratar de música e relações descartáveis, que em pouco tempo são jogadas fora como lixo”.

Rodado ao custo de R$ 470 mil, “Amor, Plástico e Barulho” é uma co-produção Brasil (Aro­ma Filmes) / França (Neon Produc­tions) / Argentina (Milk Wo­od), realizada com recursos obtidos via edital do Funcultura / Governo do Estado. O set bilíngue é visto por Sérgio como a possibilidade de dialogar com outras cinematografias, além de abrir espaço para a circulação do filme em outros países.

(Folha de Pernambuco, 04/10/2012)