Entrevista // Marcelo Caetano: “O cinema pernambucano me recebeu muito bem”

Marcelo Caetano folha-1Nos últimos anos, o cinema pernambucano tem contado o olhar e a presença frequente de um cineasta mineiro radicado em São Paulo, que vem colaborando tanto em filmes de Hilton Lacerda, Leonardo Lacca e agora, de Daniel Aragão, como exibindo seus próprios trabalhos em festivais locais. Após deixar sua marca nos longas “Tatuagem” (estreia na próxima sexta) e “Permanência” (em fase de finalização), Marcelo Caetano está de volta ao Recife, onde trabalha em “Prometo um dia deixar essa cidade”, segundo longa de Aragão, que começou a ser rodado na cidade ontem (terça). Ano que vem, ele participa das gravações de “Valeu Boi”, novo projeto de Gabriel Mascaro.

Em entrevista, concedida durante a estreia de seu novo curta no 20º Festival de Vitória, onde foi eleito melhor diretor na sua categoria, Caetano fala sobre sua visão de cinema, sua trajetória premiada e a relação com Pernambuco.

Como tem sido trabalhar no segundo longa de Daniel Aragão?

É extremamente divertido trabalhar com Daniel Aragão. Tenho aprendido muito, observando Daniel dirigindo: ele é apaixonado por filmar, tem ideias o tempo todo e não tem pudor nenhum de mudar tudo para chegar a um resultado mais forte; opera a câmera quando sente necessidade de estar dentro do processo; se diverte com atores e equipe, muitas vezes tirando o chão das pessoas. Ele é muito intuitivo e consegue aplicar todas as suas paixões cinematográficas na mise-en-scène. Às vezes me sinto trabalhando com o (Samuel) Fuller pernambucano.

Você diz que se identifica mais com o cinema feito em Pernambuco do que com o de São Paulo. Quais os motivos?

Na verdade, o cinema paulista tem obras com os quais me identifico muito. Os trabalhos de René Guerra, Caetano Gotardo e Gustavo Vinagre são minhas grandes referências hoje em dia: a abordagem do corpo, os tons de interpretação mais distantes do naturalismo, a relação entre palavra e imagem. Ao mesmo tempo tenho me envolvido muito com o cinema pernambucano. Além de “Tatuagem” trabalhei com Leonardo Lacca no longa “Permanência” (em finalização) e no momento faço assistência para Daniel Aragão em “Prometo um dia deixar essa cidade”. No primeiro semestre do ano que vem trabalho com Gabriel Mascaro em “Valeu Boi”, novamente como assistente. O cinema pernambucano me recebeu muito bem e admiro a capacidade dos cineastas daqui de reunirem técnicos e atores de diversos estados, em um gesto bastante cosmopolita. Em “Verona”, tive a mesma iniciativa e reuni no filme técnicos, atores e cineastas de São Paulo, Rio, Ceará, Pernambuco e Minas. Foi uma troca intensa!

Meus filmes também sempre foram muito bem recebidos em Pernambuco, “Bailão” venceu o Cine PE e “Na sua companhia” a Janela de Cinema. Sempre em sessões muito emocionantes, o que me faz ter um enorme carinho com o público daqui, sempre muito interessado por curta-metragem e disposto a debater os filmes. Desde que comecei a trabalhar com cinema em 2006 eu era um grande admirador do cinema de Claudio Assis e do Hilton Lacerda e isso me aproximou muito do cinema pernambucano. E foi circulando por festivais com meus curtas que conheci os trabalhos de Renata Pinheiro, Kleber Mendonça, Tião, Gabriel Mascaro, Nara Normande, Marcelo Pedroso e tantos outros. Eu sou bastante obcecado e adoro fazer análises de tudo que vejo, então estar sempre indo a festivais me fez trocar muitas informações, conceitos e procedimentos com os cineastas da minha geração. Os festivais foram locais de formação para mim.

“Tatuagem” é um filme especial, principalmente pelo processo de produção e conceitos envolvidos em sua narrativa. Qual sua visão sobre o filme? Fazer parte da equipe deve ter sido algo marcante.  Como foi a experiência?

Cinco anos atrás Hilton me mostrou o argumento de “Tatuagem” e eu fiquei automaticamente encantado. Enquanto ele escrevia o roteiro, pesquisávamos e assistíamos filmes juntos, sempre colocando temas que nos eram comuns na pauta: como filmar o corpo masculino, como abordar a identidade sexual e principalmente como subverter aquilo que se espera de um filme com personagens homossexuais.

Com o passar do tempo, fomos estreitando também ideias de direção e ele me convidou para ser diretor assistente do filme. O diretor assistente é uma figura estranha no cinema, pois não tem a mesma autoridade criativa que tem o diretor e nem coordena a dinâmica de set como faz o assistente de direção. Mas foi como diretor assistente que pude me envolver na pesquisa do filme, na busca do elenco em três diferentes cidades, na preparação com os atores e Amanda Gabriel. Não só eu, mas toda a equipe tem uma sensação de ver seu trabalho no filme, ver um pouco de si. Isso é extremamente raro dentro de uma estrutura profissional de cinema, mas Hilton conseguiu criar um ambiente extremamente horizontal e participativo. E isto é mérito da sedução diária que Hilton fazia com todos nós. Foi com ele que aprendi que um diretor não é aquele que delega e orienta, mas sim aquele que atrai tudo e todos para sua visão.

Sobre o filme, acho que Hilton conseguiu uma operação rara: trazer impulsos de um cinema mais escrachado e marginal para um filme de enorme apelo popular. “Tatuagem” fala de subversão, mas seu grande mérito é ser um filme de mobilização do público, de conquista e de normalização daquilo que poderia ser subversivo. Pela chave do afeto, ele rompe a passividade do público e convida as pessoas a esquecerem seus próprios preconceitos e se emocionarem. É uma forma de se fazer cinema político e me lembra muito as ideias de “Trilogia da Vida” de Pasolini , por quem Hilton é apaixonado. Em termos conceituais, muito da pesquisa que realizamos está no filme: o desbunde do período pré-AIDS, as relações entre teatro e cinema, a construção de uma família não-convencional (tanto a de Clécio quanto a do Chão de Estrelas) e a fotografia inspirada no super-8 e no cinema de 16 mm dos anos 70.

Cena de " Verona", duas vezes premiado em Vitória
Cena de ” Verona”, duas vezes premiado em Vitória

 

Que motivações o levaram a realizar seu novo trabalho, “Verona”?

É uma mudança radical no modo como vinha construindo meus filmes. “Verona” foi um projeto escrito por mim e Hilton Lacerda nos meses que antecederam as filmagens do Tatuagem. Como trabalhávamos juntos há bastante tempo no longa “Tatuagem”, conversávamos muito sobre nossa parceria, sobre os processos criativos compartilhados e principalmente sobre as angústias de viver daquilo que amávamos, o cinema. O curta surgiu um pouco desse desejo de entender a melancolia do artista e a dificuldade de se estabelecer parcerias duradouras. De uma certa forma, o filme celebra a incompletude das relações e oscila entre a euforia e a melancolia, a gentileza e a ironia. Optamos por falar do universo musical e não do cinema, construindo a história a partir de um duo de dance music que teve um único sucesso internacional nos anos 90 e depois despontou para o anonimato. Eles se encontram dez anos depois do fim da banda para entender o que sobrou do fracasso e conflitos do passado.

“Verona” foi realizado logo após a minha decepção com os resultados do movimento contra Marco Feliciano que eu estava bastante envolvido e que eu acreditava que mobilizaria a sociedade em favor de um estado laico. Faltando algumas semanas para filmar, eu estava bastante melancólico com a permanência dele na Comissão de Direitos Humanos e preocupado com o fortalecimento dos evangélicos no planalto. Eu só pensava em me isolar e ficar um pouco distante do mundo, e essa necessidade de tempo e distância do mundo está muito presente no filme. Curioso que durante as filmagens, explodiram as manifestações de junho que dariam uma reviravolta no modo que eu olhava minha geração e a cidade de São Paulo.

Seu curta anterior, “Na sua companhia”, tem 25 minutos de duração e estreou em 2011 no Janela Internacional de Cinema do Recife. Já “Verona”, 35 minutos, vem a público pela primeira vez no Festival de Vitória, onde foi exibido com problemas de projeção. De que maneira a duração de um filme e o local de lançamento podem influenciar a sua trajetória?

“Na sua Companhia” estreou no Janela, assim como “Verona” estreou em Vitória, porque eu perdi um pouco do apreço pelos festivais tradicionais. A primeira exibição do “Bailão”, em Brasília, foi muito emocionante, mas tudo que envolve esses grandes festivais me incomoda: a imprensa agressiva, a tensão entre cineastas, a competição por dinheiro. Tem também uma coisa muito mesquinha nesse planejamento de carreira dos curta-metragistas, que eu prefiro evitar e poupar esses filmes que são extremamente pessoais e intimistas.

Tanto “Na sua companhia” (no Cinema São Luis) e “Verona” (em Vitória) tiveram as primeiras exibições com problemas de projeção e acho que faz parte do batismo desses filmes passar por exibições traumáticas e depois ganhar fôlego. Acho que isso vai virar uma tradição minha e um grande aprendizado de desapego. A sessão seguinte de “Na sua companhia” no Cinema da Fundação foi ótima e o filme levou o prêmio de melhor curta. E o mais curioso tem acontecido com o “Verona” que foi mal exibido em Vitória, mas teve enorme empatia por parte do público, dos cineastas presentes e acabou ganhando o prêmio de direção e direção de arte.

Há muitos problemas de projeção nessa transição para o digital, nenhum festival está livre de que isso aconteça, só acho que temos que nos preparar para o inesperado, manter a calma e torcer sempre por uma boa exibição. É o que nos resta, por mais terrível que seja essa sensação de impotência nas salas de projeção.

(Folha de Pernambuco, 13/11/2013)

Os 20 anos do Festival de Vitória

Festival de Vitória - Folha de PE

Terminou no último sábado o Festival de Vitória, realizado há 20 anos na capital do Espírito Santo. A data redonda foi marcada com um grande encontro de realizadores, alguns deles, apresentando trabalhos inéditos como “Verona”, de Marcelo Caetano, que pelo trabalho foi eleito melhor diretor do festival. O melhor curta eleito pelo júri de Vitória foi “Os irmãos Mai”, de Thaís Fujinaga, que aperfeiçoa a narrativa poética já vista em “L” ao acompanhar a jornada fraterna de duas crianças voltando da escola para casa, cruzando o caos urbano de São Paulo.

Nos últimos anos, Marcelo Caetano vem deixando sua marca também em filmes pernambucanos: foi diretor assistente de Hilton Lacerda em “Tatuagem” e atualmente trabalha com Daniel Aragão em seu novo longa, “Prometo um dia deixar esta cidade”. Ele faz parte de uma nova geração de cineastas da qual o Festival de Vitória se aproximou desde 2012, quando a curadoria foi assumida pelos críticos Erly Vieira Jr. e Rodrigo de Oliveira.

A nova curadoria trouxe ao evento uma aura positiva, sintonizada com o que há de melhor no cinema autoral contemporâneo, que vem se posicionando de maneira cada vez mais rica no território dos filmes de gênero. Tome como exemplo “Mar Negro”, filme de terror que orquestra um apocalipse zumbi no litoral capixaba, dirigido de forma precisa e apaixonada por Rodrigo Aragão, o mesmo de “Mangue Negro” e “A noite dos Chupa Cabras”. Ou os curtas paraibanos “Cova Aberta”, “O matador de ratos” e “O desejo do morto”, que praticam terror e suspense explícitos. Até pouco tempo atrás, filmes assim estariam restritos a eventos ou mostras temáticas. Em Vitória, eles participaram da mostra competitiva oficial.

A produção vencedora entre os longas-metragens foi “Avanti Popolo”, bela e melancólica composição de Michael Wahrmann, em que Carlos Reichenbach e André Gatti interpretam pai e filho, à espera do filho / irmão cineasta, desaparecido durante a ditadura militar. Também foram exibidos “Depois da Chuva”, de Cláudio Marques e Marília Hughes, “O Rio nos pertence”, de Ricardo Pretti e “Doce Amianto”, de Guto Parente e Uirá dos Reis. Com estreia marcada para o próximo dia 15, a produção pernambucana “Tatuagem” encerrou o evento, seguido de festa com DJ Dolores.

Em um dos debates com participação dos realizadores, falou-se sobre o estranhamento provocado pelo discurso otimista das vinhetas do festival e de seus patrocinadores, em contraste com o ceticismo dos filmes com relação à viabilidade humana. Onde se posicionar no atual contexto do audiovisual brasileiro, por um lado dominado pelo discurso publicitário e por outro pela riqueza e vitalidade do cinema independente? Eis a questão que paira tanto sobre o Festival de Vitória quanto sobre outros eventos surgidos nos anos 1990, como o nosso Cine PE. É preciso repensar conceitos, para que sejam relevantes em sua maturidade.

* viagem a convite do festival

(Folha de Pernambuco, 05/11/2013)